Rodrigo Madeira
não, astolfo,
eu não diria "um pássaro de pano",
eu não diria isso. eu diria:
uma mosca.
uma mosca é mais terrível
que um botão de flor, que a campainha;
uma mosca (e outra mosca e outra ainda)
que pousasse, terrível
nos terríveis,
nos botões e nos gatilhos
em washington, cartago e hiroshima,
em troia e bagdá, em katyn
ou treblinka.
moscas dos verões berlinenses, entre
61 e 89,
passeavam – e livremente –
dos lixões ocidentais, onde
um braço decepado apodrecia,
às fezes semilíquidas
de burocratas do partido.
mosquinhas delicadas, idem:
roçaram os arames, os alarmes e vigias
e punham ovos
nos pomares de potsdam,
na árvore sem lembranças
em que enforcaram também suas crianças
os últimos nazistas.
mesmo ao lancetado cristo, quando
debandaram os apóstolos, é bem possível
que uma ou duas moscas
lhe fizessem companhia.
moscas mesmo sobre os corpos
de heitor e lincoln, menelau ou bonaparte,
aquiles, lênin, nixon.
e se ora elas põem ovos
no laquê de merkel, na lapela
dos financistas, nos bigodes
de todos os políticos,
na aposentadoria
de bush pai & filho & cia
– como antes
nas florestas da bolívia
pisaram sem coturnos
o rosto mais fashion
do socialismo –,
entortam, isso é certo, também a pose
de carla bruni (enésima-neta
de cesare, felipe – o belo)
supirando, ciciando uns versos
de emily dickinson.
e embora eu ame maiakóvski – o maior
poeta entre os políticos –
e me toquem mais que o claro enigma
as cartas de drummond a stalingrado,
nada impede que seja um pássaro
de pano imagem bem ridícula.
nada disso impede, astolfo,
que uma mosca seja a lira, dos homeros
a concisa, cantando aos mortos num campo de batalha;
nada impede
que uma mosca seja tanto
ou mais poética
que um avião de guerra, um helicóptero
sobre as torres de petróleo líbio:
pois se a mosca pousa e alça voo, astolfo,
acredita!,
também levanta os pós e as areias,
também encrespa as águas e cabelos,
espalha as páginas avulsas
dessa tua ilíada.
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