quinta-feira, 28 de março de 2013

inspeção da carcaça de um anjo por um destacamento de moscas sequiosas



 Rodrigo Madeira


não, astolfo,
eu não diria "um pássaro de pano",
eu não diria isso. eu diria:
uma mosca.

uma mosca é mais terrível
que um botão de flor, que a campainha;
uma mosca (e outra mosca e outra ainda)
que pousasse, terrível
nos terríveis,
nos botões e nos gatilhos

em washington, cartago e hiroshima,
em troia e bagdá, em katyn
ou treblinka.

moscas dos verões berlinenses, entre
61 e 89,
passeavam – e livremente –
dos lixões ocidentais, onde
um braço decepado apodrecia,
às fezes semilíquidas
de burocratas do partido.

mosquinhas delicadas, idem:
roçaram os arames, os alarmes e vigias
e punham ovos
nos pomares de potsdam,
na árvore sem lembranças
em que enforcaram também suas crianças
os últimos nazistas.

mesmo ao lancetado cristo, quando
debandaram os apóstolos, é bem possível
que uma ou duas moscas
lhe fizessem companhia.
moscas mesmo sobre os corpos
de heitor e lincoln, menelau ou bonaparte,
aquiles, lênin, nixon.

e se ora elas põem ovos
no laquê de merkel, na lapela
dos financistas, nos bigodes
de todos os políticos,
na aposentadoria
de bush pai & filho & cia

– como antes
nas florestas da bolívia
pisaram sem coturnos
o rosto mais fashion
do socialismo –,

entortam, isso é certo, também a pose
de carla bruni (enésima-neta
de cesare, felipe – o belo)
supirando, ciciando uns versos
de emily dickinson.

e embora eu ame maiakóvski – o maior
poeta entre os políticos –
e me toquem mais que o claro enigma
as cartas de drummond a stalingrado,
nada impede que seja um pássaro
de pano imagem bem ridícula.

nada disso impede, astolfo,
que uma mosca seja a lira, dos homeros
a concisa, cantando aos mortos num campo de batalha;
nada impede

que uma mosca seja tanto
ou mais poética
que um avião de guerra, um helicóptero
sobre as torres de petróleo líbio:

pois se a mosca pousa e alça voo, astolfo,
acredita!,

também levanta os pós e as areias,
também encrespa as águas e cabelos,
espalha as páginas avulsas
dessa tua ilíada.

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