De que me vale a saudade, afinal?
Caminho entre os escombros silenciosos de uma civilização
que agora não tem sequer o direito de se dizer arrependida dos erros que
cometeu. Já não há mais do que se arrepender. A memória já não alcança longas
distâncias no passado. As derrotas brutais sofridas. A imensa dor obscureceu os
olhos, calou os corações. O passado agora não faz sentido. Agora é viver ou
viver. Morrer está fora de questão. A eternidade é o agora. A longa jornada do
dia é interminável e parece ligeiramente maior no dia seguinte. E ontem. E
ontem… pareceu ter sido tão…
Há pedaços por todos os lados. Espalham-se e amontoam-se
desesperadamente nas ruas vazias. O vento assobia sombrio entre os vãos. Tudo
lá no alto, nas grandes janelas de vidro é solidão. Ainda se pode ver os sinais
de uma grande ideia que não deu certo nos pedaços de papel que chovem pelas
janelas. Para que serviam aqueles papéis? Não é possível chegar a entender
isso. Não agora. Agora é viver ou viver. Morrer está fora de questão.
Ainda ontem… me recordo de passar por esta rua. O cheiro. O
cheiro talvez. Não. É a luz! Me recordo de virar a esquina ali atrás, caminhar
alguns passos e perceber o reflexo da luz do sol em um pedaço de metal caído no
chão, uma lata, talvez. Não cheguei a verificar o que era. No entanto, esse
medo, esse receio me fez dar um ou dois passos para trás, olhando para aquele
reflexo hipnotizante da luz do sol, me distanciando, curvando o corpo para trás
até o ângulo de onde não o veria mais. Assim que o reflexo sumiu da minha
vista, notei a parede alaranjada do outro lado da rua onde uma trepadeira
escalava, voraz. A cor era chocante. Iluminava aquele trecho da rua e é
exatamente onde estou agora.
Estou aqui há muito tempo. Não sei dizer ao certo quanto
tempo. Sinto minhas pernas cansadas. Meus pés se arrastam. O calçado que uso já
não dá mais conta de protegê-los. E é por isso que estou aqui. Ontem… vi nesta
rua a vitrine milagrosamente intacta de uma loja. Uma loja de sapatos, pensei.
E hoje receio que não terei mais como esperar. Terei que ser discreto,
silencioso. Arrombar a porta fazendo o menor barulho possível para não chamar a
atenção.
Mas ontem… não consigo deixar de procurar o brilho. Parecia
vivo. Parecia me chamar para perto dele. E me chamou, pude ouvir a voz suave. E
quis me entregar. Mas a parede alaranjada me salvou daquela voz, daquele canto
de sereia. Mal dormi pensando nisso. Pensando onde me levaria aquela luz. É a
solidão, eu sei. É estar sozinho há muito tempo sem ouvir uma voz, sem ver um
rosto humano. Sem saber se estou sozinho e ter certeza disso.
O que eu fazia naquele dia? O que aconteceu naquele dia?
Quando dei por mim tudo estava assim, exatamente como agora. Agora é viver ou
viver. Morrer está fora de questão. Sobre mim havia uma coluna de concreto que
por poucos centímetros não me tocava. Tudo estava escuro. Não sabia se podia me
mover, se era seguro tentar sair dali. Por horas achei que aquele era o fim. O
meu fim. Fantasiei centenas de possibilidades na tentativa de esclarecer o que
me ocorria. Lá estava eu, deitado no chão, cheio de escombros à minha volta,
cadeiras e mesas de escritório e uma coluna de concreto, que pesava algumas
toneladas, a poucos centímetro do meu tórax.
Não ouvia um só ruído. Não havia o que pudesse produzir som.
Duvidava da minha capacidade de produzir qualquer som. A primeira tentativa foi
um fracasso. Minha garganta tremeu e uma espécie de grunhido se formou ali, mas
fraco, incapaz de escalar até minha boca e libertar-se. As tentativas seguintes
foram bastante promissoras. No entanto, todas inúteis. Especialmente aquela em
que a palavra “socorro” cruzou os ares, percorreu vãos, ecoou em salas vazias,
sem atingir um único ouvido.
Mais um passo, um só passo e estarei em frente a porta da
loja de sapatos. Já posso ver uma bota de couro marrom que parece ser bastante
resistente. Espero que tenham o meu número. Meu plano é procurar por um par de
reserva. Vejo agora que é uma loja grande, dessas de equipamento e vestuário
para caminhadas em montanhas, não só um aloja de sapatos. Eles devem ter
mochilas e roupas resistentes contra o frio. Não consigo descansar meus olhos.
Procuro insanamente pelo brilho de ontem… Fecho e abro os olhos rapidamente na
tentativa de me centrar, de focar no que me trouxe até aqui. O horário é o
mesmo, o sol está no mesmo lugar e na mesma intensidade. No entanto, o brilho
não está ali. Esqueço da loja e me dedico a encontrar o lugar exato, a posição
precisa onde eu estava ontem… ontem…
Do ângulo em que estava, eu não podia ver onde começava e onde
terminava a coluna de concreto. Suponho que ela tenha rasgado as paredes vinda
de outro lugar e suas duas extremidades estejam repousadas em algo tão forte e
pesado quanto ela mesma. Resolvi colocar todas as minhas fichas nessa teoria e
me arrastei para fora dali. Havia um grande espaço ao meu redor e pude
confirmar a minha teoria sobre a coluna. Encontrei uma porta tateando na
escuridão. Abri-a e pude notar uma luz fraca que vinha do fim do corredor.
Segui pelo corredor tropeçando em escombros, talvez alguns corpos. A ideia de
ter corpos pelo chão me amedrontava e apertei o passo. Ao fim do corredor, uma
porta à esquerda levava para a rua. Aqui, uma pequena escada de seis degraus. E
as ruas estavam desertas.
Uma grande catástrofe ocorreu, concluo. Algo de proporções
imensas se abateu sobre a face do planeta, sem aviso prévio. Creio que, em
questão de horas, a paisagem se tornou esta que está diante de mim, ao meu
redor, dentro de mim. Imagino que devo ter ficado inconsciente por muito tempo.
As pessoas abandonaram as cidades ou foram todas mortas na catástrofe? Quantos
iguais a mim ainda estão por aí, em subterrâneos, inconscientes, sob toneladas
de concreto, sem voz?
Caminhei por dias sem encontrar uma só alma viva. Sequer
encontrei corpos humanos ou de animais. Nada. Não há um ser vivo por aqui além
de mim. Calculo que meu tempo aqui, nessas condições, não será muito longo. Já
não sou mais um rapaz cheio de fôlego. Já não era. Não há luz elétrica ou água
potável. Há um cenário horrendo de destruição no qual minha sobrevivência é
insignificante.
Há uma luz que me chama e que não está mais ali.
O mundo acabou e eu sou o único sobrevivente? Penso na bota,
na parede alaranjada e na luz para não pensar em mais nada. Agora é viver ou
viver. Morrer está fora de questão.
E a trepadeira escala a parede, voraz.
Já é noite. A temperatura caiu alguns poucos graus. A luz
não apareceu para mim hoje. Estará lá amanhã? Forcei a porta da loja sem
sucesso. Não consegui abri-la discretamente, então catei uma pedra do chão e
quebrei a fechadura com uma única pancada. Como ainda era dia, pude dar uma boa
olhada nos produtos da loja e fiz umas boas compras. Um par de botas de
montanhista, uma barraca pequena, um colchão inflável, alguns cobertores e
sacos de dormir e algumas ferramentas. Roupas leves e pesadas. Coloquei tudo
dentro de duas mochilas grandes e saí para a rua. Com passos rápidos, caminhei
sem olhar para trás, pensando na luz, no brilho. Ao dobrar a esquina, não pude
me conter e voltei para trás e procurei mais uma vez por ela. Nada. Ontem…
Ontem ficou para trás mais uma vez. Não me é permitido
pensar no que me ocorreu ontem, desde o fato mais importante à coisa mais
insignificante. Ontem já era e com ele a luz e a parede alaranjada e a
trepadeira voraz e a loja de sapatos e aquela rua pela qual nunca mais andarei.
A memória deve ser curta. Foi para isso que fomos preparados durante séculos,
para que nossa memória seja prática, seja específica e útil no agora. Em tempos
como este, não me serve lembrar de nada que não me seja útil. E,
gradativamente, sinto-me primitivo. Me privo e sou privado de minha história.
Tento consolo para a solitude na saudade. Tento recordar, mas a memória é vaga
agora. Sem motivos para chorar, as lágrimas secam em meus olhos, o coração bate
sem razão. Agora é viver ou viver. Morrer está fora de questão.
Hugo Guimarães
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