sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Mulheres e homens desejam e são desejados (em todas as combinações possíveis a partir deste par), mas só as mulheres precisam se proteger do desejo dos homens. Ou serem protegidas. As mulheres também desejam, homens e mulheres, como é natural, mas não é comum que tomem providências para a satisfação do seu próprio desejo brutalizando a vontade de quem desejam. Os homens, sim, historicamente, sempre que há meios e oportunidades, deixam de ser meros sujeitos de desejos para se transformar em predadores sexuais. Não é por isso que em tantas sociedades meninas devem se casar o mais cedo possível, como modo de passar adiante, para a família dos maridos, a obrigação de protegê-las dos outros homens?

Dito assim, e em sociedades liberais do século XXI, este quadro parece se referir a outros tempos e a sociedades exóticas. De fato, é assim, mas toda sociedade é feita de muitos pedaços, sobras, restos. Se mesmo neste mundinho virtual que se acredita ser “melhor do que a média” da sociedade, há ainda quem tenha a ousadia de expressar o ponto de vista segundo o qual se as mulheres atiçam, mediante as roupas que vestem, os quereres dos machos à volta, têm parte na responsabilidade pelo que daí advém, o que mais poderia nos surpreender? No fundo, é a mesma crença de sempre: o desejo masculino é uma força da natureza e não pode (na verdade, “não deve”) ser contido; cabe então às mulheres, e àqueles que têm responsabilidade por elas, a obrigação de não oferecer motivo, meios ou oportunidades para que o desejo dos machos desabe sobre elas. É quase como dizer que qualquer homem “tem o direito” de levar ao conhecimento das mulheres em torno, havendo oportunidade, os meios e modos dos seus apetites sexuais, em geral para nada mais do que mera agressão. Oportunidades para a verbalização do desejo são fáceis, desde que a menina não tenha a “proteção” de outro homem ou não seja “propriedade” de outro. Com um pouco mais de sorte – e ausência de freios – aparece uma oportunidade para tocar, experimentar e perpetrar a humilhação tátil. A “encoxada” no ônibus, o beijo forçado, a masturbação exibicionista, o estupro são apenas graus neste continuum – as mulheres que tomem providências para nunca dar motivos, meios ou oportunidades.

É assustador que o argumento da “provocação feminina” (dar motivos) longe de ter desaparecido ou estar recalcado nos esgotos da alma ainda apareça saltitante nos comentários do Facebook ou nos rodapés de jornais online. Não, meus amigos, não se trata aqui apenas de mais uma ocorrência do “blame the victim phenomenon”. Trata-se de uma sacralização primitiva e bruta do apetite sexual masculino: os homens estão soltos, protejam as suas mulheres; os homens se aproveitarão de quaisquer oportunidades e meios para verbalizarem ou materializarem o seu desejo, as mulheres devem evitar qualquer coisa que os motive. Como é que uma forma tão primitiva de pensamento continue a ser sustentada em nossa época, repousa, para mim, no mais absoluto mistério.

Wilson gomes

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