domingo, 28 de junho de 2015

Em um Mapa sem Cachorros


Em um dia fúnebre
Antes da hora
Do Mês dito Agosto
O prato do pranto
Foi a flor que chora
Frio e nunca no ponto
O meu verso é dessa
Forma: fugidio inexato
O sangue não é lágrima
Mas bóia no mesmo prato
E eu de mim tudo perdi
Ao olhar inconformado
Os dias no calendário
Rasgados e putrefatos
Para dizer do tempo: venci
E nunca de fato
Ter o tempo segurado
Umas vezes ele me prendia
Nas outras me degolava
E o sangue doce foi
Uma mesa vazia
De esperar e embaraço
Tudo o que eu antes dizia
Hoje me olha estupefato
Frangalhos meu sonho inútil
Outroras meus simulacros
Nem fingir mais eu sei
De tanto que me zombaram
E se o verso me verte algo
Me exaspera ser: enfático
Sou a metade do caminho
De um fim que nunca sabe
A que veio aonde termina
se depois de tanta armadilha
Compensa todo vil pedaço.


Julio Almada
 In Em Um Mapa Sem Cachorros

Mare Nostrum


“men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave,
and row quickly away”
- Marianne Moore, “A grave”

Estive hoje no banco,
e com hinos,
sacrifícios e libações,
apaziguei os deuses
das finanças.
Estão pagos os impostos,
Angela. Preferiria tê-los
enviado aos gregos,
para lá do Mare Nostrum,
digo, vostrum.
Vossa antiga rua
de mão única
e agora vala
comum que sequer
requer pá, enxada.
Angela, diga-me,
ainda brilham
os diamantes
de Lüderitz?
Esse mundo,
eu sei, é todo
vala comum.
Que o digam
as areias do Namibe
onde jazem hereros
e namaquas.
Quanto a Cameron,
que lhe parecem hoje
os Cameroons?
Seguem retas as réguas
que traçaram, europeias,
eficientes, tão simétricas
linhas por onde passaram
em África e Oriente?
De Bruxelas a Berlim,
tapam-se com mãozinhas
enrugadas os olhinhos
assustados,
já que desde
tataravô e tataravó,
ninguém
mais da família
pôs os pés
naquele continente.
Algum tio-avô, talvez,
engenheiro em Suez.
Nada sabemos do Congo,
mas como são belas
as estátuas de Leopoldo.
Mandatos e protetorados,
Síria, Palestina,
Iêmen, et alia.
Agora, que se virem
na Itália
– se lá chegarem –
como se reviram as coisas
e corpos nas correntes
submarinas,
“neither with volition nor
consciousness”.
Esse mar, que já carregou cruzes,
hoje não suporta lápides,
e limpa-se, como um gato as patas,
sempre pronto para os turistas.

Ricardo Domeneck

Súplica


Me ames.
Farias
o inevitável
se o amor ponderado
não fosse
o imponderável
se o amor
não fosse
o temporário
se o impossível
não fosse
o necessário
se meu sempre
não fosse
o embora.

Julio Urrutiaga Almada

METAFÍSICA - I


Desisto. Não há explicação.
Ou você faz um verso em que resume tudo
– “minha alma é um sulco aberto no universo” –
ou você enche a cara
e vai dormir na rua.

Otto Leopoldo Winck

METAFÍSICA - II


Quem sabe a lua,
se der as caras, te explique a vida,
citando Wittigenstein:
o que não se pode falar, deve-se calar.
E tu, calado, resmungue:
– Grande bosta...

Otto Leopoldo Winck

O ENTERRO DO LOBO BRANCO

"Haverá um tempo em que as palavras serão plenas em significados e esqueceremos as catacreses não teremos que passar noites em claro em busca de vocábulos perfeitos a imperfeição será banida dos dicionários seremos todos convictos e feitos de carnes ossos e verdades os gênios não mais caminharão em direção aos abismos esqueceremos as paixões pelos hologramas os homens não mais endurecerão seus paus por casos passageiros ou bonecas infláveis os amores germinarão em buracos sagrados o ódio será enterrado em cova rasa nenhum esperma será jorrado inutilmente as vacas beijarão solenes as bocas das santas e as santas roerão os ossos ocos dos indigentes" 

Márcia Barbieri

O ENTERRO DO LOBO BRANCO

"cocei e tirei um pouco de cera não para escutar melhor mas para me distrair daquele discurso fúnebre Estela não era ruim você precisava ter conhecido era uma pessoa boa e ele ousava dizer isso logo para mim que a conhecia como ninguém que corri cada centímetro tenebroso do seu corpo porque ela também se fingia de noite de pedra de pó de abismo se camuflava atrás das árvores frondosas e quantas vezes não me vi estuprando e fecundando uma flor no lugar de sua buceta precisei voltar ao pé do caixão e me certificar de que falávamos da mesma pessoa sim com toda certeza era ela tudo bem que agora ali naquele lugar estendido nessa caixa de madeira não me parecia a fisionomia de Ester a mesma roupa o mesmo calçado a mesma boca que tantas vezes chupou meu pau e cuspiu minha porra" 

Márcia Barbieri
Esta Inominável Arma de Guerra.
E coragem de apagar-se como estrela

Bárbara Lia
-Fiquei chateada com alguns personagens do seu livro, falavam muitos palavrões.
-Querida leitora , parabéns pelo seu discernimento ,pela diferenciação que fez do autor e suas personagens, mas tomo a liberdade de pedir desculpas em nomes deles. tenho certeza que não tiveram a intenção de ofende-la.
-Aceito, mas reafirmo, fiquei chocada, não deveriam falar palavras de baixo calão.
-Entendo , porém quero que considere a liberdade de expressão, não posso censura-los, sou democrático, cada personagem se expressa de acordo com seu modo de ser, de sua cultura ... Mas vou fazer uma reunião com eles e discutir a respeito.
-Então, nunca se sabe quem folheia o livro, pode cair na mão de uma criança ou de uma pessoa religiosa que se sentira ofendida pela linguagem chula.
-Senhora!!! Minhas personagens, não estão engessadas, mas ainda assim pelo que acompanhei não são malcriados, se ouve das bocas de alguns palavrões deve ter escapado no calor do momento da ação, dentro do contexto!
--Mas tinha um que falava do inicio ao fim grosserias.
--Se é assim, sabe de qual conto ele é? Qual pagina ele está? Vou passar um corretivo nesse desbocado filha da puta do cacete!. Passar bem, leitora reprimida !.


JDamasio Rascunho

O MISTÉRIO DA VIDA


Foi na praia. Uma lua enorme
nascia dentre as ondas negras.
O vento trazia o teu cheiro
junto aos teus cabelos
e a areia, sob os nossos pés descalços,
registrava um itinerário de fugas
e espantos. Não havia dúvidas nem certezas: o próprio medo
era feito de esperança. Se eu acreditasse em Deus, exclamaria:
a terra onde pisam as palmas de meus pés é santa.
De repente, as estrelas todas
caíram do céu e nas rudes canoas dos pescadores
o mistério da vida se refez: a areia, as algas, a noite, o brilho do farol
se fundiram numa concha branca
que eu recolhi na concha de minhas mãos em prece.
Admirei suas nervuras. Provei de seu mel,
bebi de seu vinho, surpreso de não haver desfalecido.
(A lua se erguera feito um estandarte de paz
e, na areia clara, nossas sombras azuis
lacraram um testemunho: perfeito na humanidade, perfeito na divindade,
conforme o augusto Concílio.)
Depois foi a escuridão, o precipício. E a convicção:
quando eu morrer – numa sexta-feira às três em ponto da tarde –
estarei pensando em você.

Otto Leopoldo Winck

sei que estou poluído de declarações, não sou tão alto quanto um deus qualquer em sua mudez perfeita. sou esta apoteose tão pequena quanto quem quer que também a seja. o prazer se compartilha, a dor não. a dor é uma coruja em vigília, olhos na maciça escuridão. estar só é ser o homem como ele é. e os nossos sentidos são uma ostentação, mas nem todos vão estudar música a esta hora, nem ler os livros que foram escritos só para mim. não há gente ao redor, porém, com o coração sincero, sussurro outra vez o espírito de um verso. de longe, o seu sim chega furando a noite. não hesito, abro a porta

Silêncio!... 

Luiz Felipe Leprevost

Imperfeição


Este céu caiu
Do alpendre de pedra
recolho cacos de setestrelas
e me recolho em chão de espantos.
À sombra do mistério sagrado quase me revelo,
refletido nas águas da noite.
(Este céu é para montar)
Márcio Davie Claudino
Lennon
Submarino no Mar da Liberdade
A emergir ao som de um mantra:
Imagine there's no countries


Bárbara Lia
Era uma vez...
Era uma vez... O homem
Quanto mais horizonte
Maior dor e servidão
Cada estrela que nasce
Uma muralha no chão
Diante de raras telas
A negar pentimentos
Olhar primário e tosco
Sem deslumbramento
Era uma vez... O homem
Milênios descartados
A ouvir qualquer "profeta" da laia
Deste Silas Malafaia
Era uma vez... O homem
Afogado no limbo pequeno
Bebendo auroras descartadas
Tendo ao alcance dos dedos
O maravilhoso mundo inacabado


Bárbara Lia

Carregando a literatura nas costas


Pelas andanças ao interior do Paraná, depois de um trabalho gratificante em um colégio, saí para conhecer a cidadezinha. Já era meio da tarde quando entrei em um bar; tinha sede, queria um suco, mas pedi água mineral. A mocinha veio me atender com um sorriso de boas-vindas e depois do pedido ela sorriu novamente, as covinhas nas faces dela e seus lábios carnudos molduravam seus dentes brancos. Ao pegar a água e servir meu copo, um novo sorriso. Pude apreciar aquele belo sorriso de outro ângulo. Maliciei, sorri de volta e dei uma piscadinha; ela me servia com a mão direita, então eu não sabia que era casada e nesse momento nem lembrava que eu também era. Mas foi uma piscadela de um olho só! Vendo no dedo da mão esquerda a aliança, fiquei sem jeito. Quando tomava meu primeiro gole de água, do nada me aparece um homem de faca na mão, como esses maridos ciumentos aparecem do nada. Não tive tempo de argumentar, nem saberia o que falar, na verdade. Ele veio em minha direção e eu tinha apenas uma garrafa de água para me defender, garrafa de plástico. Fui rápido e ágil, corri e pulei a mesa de sinuca. Mas fui idiota, porque corri para o lado errado: havia eu e a parede da janela pela qual eu poderia me jogar e um marido ciumento com faca na mão para enfrentar. Resolvi conversar: “Calma aí, foi um mal-entendido, sua esposa riu de mim, não para mim, mas não fiquei chateado, estou acostumado, tenho essa mania de piscar”. Eu piscava rapidamente com os dois olhos e um de cada vez para ser mais convincente. Ele me ouviu e riu da minhas piscadas. Vendo que as coisas ficaram calmas: “Agora com licença, vou pegar minha água, estou com a boca seca e vou embora; antes, porém, sou escritor, queria apresentar para vocês meu novo livro de contos, são histórias de vários temas, algumas engraçadas outras trágicas". Continuava piscando. O homem comprou meu livro e pediu dedicatória. Eu fiz: "Para o casal querido com carinho e todo respeito." Quando saí, da porta olhei, a moça sorriu de novo. E estava piscando com os dois olhos, quase que peguei o tique nervoso. Do outro lado da rua, quando lembrei de um conto que estava no livro de um marido traído e ingênuo, andei mais depressa. Porque, no final das contas, não era por causa de uma piscadela de um olho só que fecharia meus olhos de vez.

J.D
No fue de madrugada
como tu tango quería
pero toda hora de este día
de madrugadas llora
porque tus duendes amaban la noche
y esta, primera del verano
será por siempre
tuya.


Letra de um tango de  Horacio Ferrer

Ela Era Só uma Maria, Maria da Luz, que Morreu Esperando o Atendimento do SUS



Ela era só uma Maria, Maria da Luz
Que morreu esperando o atendimento do SUS
Ontem, também, faleceu um cantor famoso,
Talentoso, garboso e formoso

Bem nesta fria e gelada madruga
E a população ficou toda alvoroçada
Porém, na mesma hora, ao mesmo tempo
Uma senhora, no SUS, buscava atendimento

Ela desmaiou em frente ao posto de saúde
Mas, ninguém quis tomar uma atitude
A Dona Maria da Luz
Fez a via-sacra como Jesus
Ela carregou uma pesada cruz

No seu nome ela, também, tinha chagas e santos
Porém esta doente ficou no frio sem mantos
Esperando um digno atendimento
Mesmo assim, faleceu ao relento!

Ela era só uma Maria, Maria da Luz
Que a vida dura retirou todo o brilho
Ela morreu esperando o atendimento do SUS
Nos braços do seu marido e do seu filho.

Luciana do Rocio Mallon

Quem Possui Respeito Tem Peito Duas Vezes


                                                                                      
A pessoa que tem respeito
Possui duas vezes peito
Pois é preciso ter consideração e coragem
Para não colocar pedras na passagem

Onde o próximo precisa caminhar
Ás vezes um moralista conselho
Pode poluir qualquer tipo de ar
Pois, se vier de um pentelho
Tem o perigo de atrapalhar!
Há gente que não se olha no espelho
Mas, a vida do outro deseja sabotar!

A pessoa que pratica o respeito
É um verdadeiro querubim
Pois tem duas vezes peito
Tirando tudo o que é ruim!

Quem respeita qualquer limite
Não perde tempo dando palpite
Porque tem noção do real respeito
Compreendendo que o mundo não é perfeito!

A pessoa que tem respeito
Possui duas vezes peito
No seu busto existe a medalha
Da paciência, que nunca falha

Ela sabe respirar com a força do vento
Simplesmente porque tem duas vezes peito
Ela inspira com emoção e sentimento
Levando forças para quem está no leito.


Luciana do Rocio Mallon

sábado, 27 de junho de 2015

Rita Medusa

febre das montanhas
melodia contraditória
nenhuma delicia terrena
é tão nervosa
quanto o som dos teus cílios
no apelo íntimo
da montanha- russa da palavra

onde a abelha rainha
colhe gritos engraçados
para o festival de excentricidades
das energias triunfantes
escuta a música das escadas
aquele que se oferece
ao histórico dos passos
de cada degrau
.


O vento e as máscaras




que alívio
o vento
trouxe
um aviso
as máscaras
cedo ou tarde
caem
e o rosto
velho
não expõe rugas
mas cicatrizes
que o homem
a si mesmo fez

cicatrizes são como ruas
nuas
e o caminho não se sabe bem
por isso inventaram o espelho
e assustaram Narciso
que até hoje procura as chaves
que ninguém tem.


‎Monique franco

escriturasmoniquefranco

Os Haikais de Yana Fujita.


(...)
VI
guarda-chuvas sem chuva
sombras particulares
aguardam tempestades
.
VII
rios em movimento
o olho reflete
águas passadas

fonte : revista saúva 
Rita Medusa

Então eu não queria estar mastigando as flores que você me deu em 1997 e tudo tão excêntrico meu amor passeando desonras no desfiladeiro, derretendo ao som da maquina de pólen, das primeiras letras a serem vividas, deturpando a aparência das flores porque queria ingerir o perfume das tuas mãos desenhando caixinhas de música para minha confusão,
o móbile que você nunca me deu, os diários de Kafka, chorando de vontade de você nos corredores vazios da biblioteca escolar, te enquadrando nos sebos, levitando de desejo no cinema, febre regida por "crime e castigo".
a literatura entra na minha história com o amor chutando as portas, abrindo passagem num sussurro violento, essa escrita tem a ver com a selvageria de amar e quando assim não o for é fim de jogo pra mim

11)


Arranca do galho esta febre de asas,
quando o frio alcançar teus arrimos,
quando a dor a varejo agendar seu
nome no dilúvio que inunda tua ceia.
Teu pão vem dessa fome que arbitra
o salário das aves, ó louco das vielas
perdidas! Um eco que vem do sol
te alume por dentro. Com a chama
do magma e dos rubis. Poesia é fazer
cantar a pedra.

SALGADO MARANHÃO

(Do livro Avessos Avulsos)



quarta-feira, 24 de junho de 2015

VISITA POÉTICA

Visitei como de costume, a alma das divinas inspirações 
E fiquei desnorteada, sem saber o que ia, hoje, poetizar...
Imensidão de riquezas poéticas são guardadas por lá!
Oh, que indecisão!
Mas poesias nascem com endereços certos!
Ainda bem!!
Nas prateleiras, versos mil a me chamarem...
Versos lindos a acenarem pedindo-me para vida lhes dar.
Não queria desagradar a nenhum deles,
pois são amigos íntimos da minha Poesia
E para ela e por ela vivem de noite e de dia...!!
Parei entre eles e comecei a meditar atentamente
Sobre qual tema minha alma iria poetizar
Assim, ficaria mais fácil convidá-los para no meu coração
se organizarem...se enfileirarem... e comigo viajar!!
E os versos, ali, a me olharem em silêncio...
Olhares tão sublimes ...
Olhares de suspense...
Quais entre tantos sairiam, hoje, de lá?
Quais iriam a minha Poesia bordar?
Nem eu sabia!
Então para não desapontá-los, dei um beijo em cada um,
Coloquei-os para dormir mais um pouquinho,
Fechei bem devagarinho as portas dos seus aposentos
E pedi para a inspiração, com novos versos me presentear.
Não entendi bem, o que aconteceu!
Meu coração, então, se enterneceu...
E para minha surpresa ouvi dentro de mim
Uma linda e suave melodia,
Um som que me trouxe pelas mãos da inspiração
Novos versos com vigor e maestria,
Então elegantemente e sem demora,
Vomitei versos de uma nova poesia.
Fabiane Paranhos 

24/06/2015 - Direitos autorais reservados

domingo, 21 de junho de 2015

Quando ele caiu em si...caiu de tão alto que não houvera como despregá-lo .Do barro sobre a pedra só o rubor de uma lápide anunciando o paradeiro de um desengano.Da argila dos lustros gerara do esquecimento, alma mascarada em falsa porcelana .


Wilson Roberto Nogueira

Últimas explicações

EXPLICAÇÃO DE RICARDO REIS

Os rios amo, lídia, lentos
E largos sobre o solo.
Que em um dia as crianças se banhando neles
Se enxugam ao sol e correm.
E pela velocidade podem
Aos astros comparar-se.


EXPLICAÇÃO DA ESPERA

Quando me sentarei ao sol
Despido
Líquen vivendo
Da inclinação dos ramos?

Quando crescerei como nuvem
Mão leve sobre a fronte
Da doença?

Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência?



EXPLICAÇÃO DO POETA

Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço


Explicação do amor e do orvalho

Uma fogueira no meio da noite cercada
Por um homem com os olhos rasos de água



EXPLICAÇÃO DO JUGO

O homem no corpo da mulher
Puxou todo o dia o arado
Do choro dela
Beberam os bois
E à noite
Morreram ao seu lado


Daniel Faria | Últimas explicações
● depois de todo esse amanhecer meu sancho ●
● basta caminhar entre macieiras entojadas de maçãs ●
● maças maduras e podres q caem como agua da chuva ●
● caminhar ate q o peso cesse e os olhos se acostumem ●
● porq tão longe meu sancho o mar parece uma mulher ●
● sempre muito nua sempre muito louca risonha e nua ●
● mordendo maçãs como quem passeia por um campo ●
● sempre plantado inda não satisfeito com a colheita ●
● apodrecendo por esquecimento doença ou desalento ●
● sem olhar covas rasas sem mirar isso bem demais ●
● como se tudo e mais fosse apenas o q toda coisa é ●
● passagens onde cães e gatos se dissolvem sem saber ●
● mas não ha campo nenhum meu sancho nem mulher ●
● nem maças podres ou tão maduras q seja so das moscas ●
● sem abelhas e sem mel depois da ruina e da destruição ●
● não meu sancho não ha mesmo nada em nada disso ●
● mas o q ha é muito pior q um campo de maçãs podres ●
● um campo de macieiras abandonadas antes do deserto ●

*
alc
sou uma dessas hienas ●
● q sonham com carcaças de elefante ●
● enquanto o deserto se estreita e cede ●
● é possivel nos ouvir rondando ●
● mesmo antes do sol sumir nas dunas ●
● antes do cheiro covarde dessas noites ●
● fui o mais velho duma grande familia ●
● de hienas famintas e agora definho ●
● nesse oasis sabendo mais q vc ●
● não esqueça q sou uma hiena ●
● q graceja com musculos e tendões ●
● q gargalha de alegria e bom gozo ●
● rimos porq nem todos sabem cantar ●
● essa é a maior e mais dura confissão ●
● não é a toa q morremos sem o riso ●
● não é a toa q tenho andado no escuro ●
● q tenho me desleixado da essencia ●
● como fazem nossos moribundos ●
● basta um corpo perdido ●
● assim como vc agora entre nos ●
● entre margens fontes e tamareiras ●
● sei e sabemos muito disso tudo ●
● com roupa de vendedor perdido ●
● rifle sem balas e essa pobre faca ●
● sei q vc ta com muita fome ●
● sei e sabemos todas nos as hienas ●
● q sua fome é maior q a nossa ●
● porisso mesmo devo me retirar ●
● enquanto minhas vorazes irmãs ●
● morderão porq não tenho forças ●
● sou agora uma dessas hienas ●
● q aos poucos se retira da luta ●
● a q vive dos bagaços do resto ●
● gente como vc demora pouco ●
● sei tambem q tudo doi e queima ●
● sei q vc tem pedido a morte ●
● vc acordara q matar a fome ●
● de todos q sentem essa fome ●
● sua e de todas nos é uma honra ●
● agora vc sabe q sua morte ●
● como a vida q carregou ate aqui ●
● não foi em vão e sera um encanto ●
● lembre dos grandes imperios ●
● aqueles q sumiram sem rastros ●
● nem as palavras nem os ossos ●
● agora somos nos e nossas noites ●
● não leve a mal se me retiro ●
● ali o velho whisky me espera ●
● sou das hienas q conhece ●
● o sublime malte e se lambe ●
● ate a pontas das garras no gozo ●
● vejo q reconhece tudo isso ●
● vejo mesmo q deseja participar ●
● dessa onda q vem cada vez maior ●

*
Alberto Lins Caldas
de camões arranquei a musa amada
em cabral decidi o verso duro
os amores refiz do quase nada.
quando todos souberem da poesia
que bebi pelas noites destas ruas
ao rever tua carne que eu comia
saberão que morri da dores tuas."

RR
Luiz Felipe Leprevost


tem o momento em que ela para de falar, e aí eu paro de falar. então fica mexendo a colher na xícara vazia, e eu desenhando abstrações no guardanapo. de repente ela diz algo como "entre filósofos e amestradores de baratas de comercial de inseticida, fico com a segunda opção". é isso, tem esse jeito alegre da gente ser triste. tem o compromisso de querer que doa. tem todos esses papeizinhos amarelos da Redcard esquecidos na carteira. e as 208 caronas que ela tá me devendo. os pedaços da torta que comemos dividindo a colher. e ela sempre dizendo coisas do tipo "repara como as moscas esfregam as mãos antes de chupar o doce"
● os ratos escapam das casas ●
● os ratos saem pra trabalhar ●
● os ratos vigiam os ratos ●

● os ratos atropelam os ratos ●
● os ratos devoram os ratos ●
● os ratos esperam os ratos ●

● os ratos passeiam nas praças ●
● os ratos produzem o mundo ●
● os ratos vivem nos mercados ●

● os ratos se rebelam os ratos ●
● os ratos rezam os ratos ●
● os ratos estudam os ratos ●

● os ratos e o deus dos ratos ●
● os ratos e a loucura dos ratos ●
● os ratos e o desespero dos ratos ●

● os ratos e a musica dos ratos ●
● os ratos e a arte dos ratos ●
● os ratos e a palavra dos ratos ●

● os ratos suam no trabalho ●
● os ratos gritam de fome ●
● os ratos se deixam viver ●

● os ratos governam os ratos ●
● os ratos roubam os ratos ●
● os ratos torturam os ratos ●

● os ratos adoram os ratos ●
● os ratos são mais q ratos ●
● os ratos morrem como ratos ●

● os ratos sempre e so os ratos ●
● os ratos nada mais so os ratos ●

● os ratos e a ilusão dos ratos ●

Alberto Lins Caldas

PEQUENOS EXERCÍCIOS FUTEBOLÍSTICOS


COPA DE 50
O apito final não põe fim
ao desamparo. O silêncio
cortou a língua do Brasil.

COPA DE 2014
Imagine na Copa: aeroportos,
estádios, manifestações.Cães
Ladram mas a caravana passa

BRASILxMÉXICO
Passe certo. Passe errado.
A bola rola e não me olha

Zero a zero. Que merda!!!

Rubens Jardim

COLÓQUIO CONTÉM-PORRA-NEO




loucura pouca é bobagem
ternura muita é chantagem

qual é a cissura?

vantagem


Samantha Beduschi Santana

DESAPRENDIZADO



se
si
consiga

te
ti
cantiga

nós
nos
com isso?

e
a voz?
vos consigo


Samantha Beduschi Santana
160- Promoveu a joaninha comandante de seu barco de papel, na poça da chuva de sua rua, Imaginava a embarcação rumo ao alto mar. JDamasio
Vcs maldizem Curitiba, mas a autofagia urbana, é uma das inexorabilidades de um mundo que se quis pós-moderno. Sou carioca, nasci e me criei na cidade do R.J., não tenho lá muito gosto de voltar para minha cidade, exatamente por ser testemunha que o Rio de Janeiro é um dos lugares mais agredidos a despeito do que foi e do poderia ainda ser. Hoje, se encontra num estado de confisco geral (sobrevive na prostituição de uma Rede Globo),e cada vez mais arruina a sua natureza, sua cultura e sua urbanidade.

O domingo é um presságio da segunda-feira em todos lugares, e o destino de Ctba de se diregir no próprio alimento, é o destino do ser humano que se rendeu a plástica do cotidiano, por isso (não à toa) se intoxica.

Valeu!


T.S.

panorama da ponte que partiu



eu tinha lá minhas dúvidas
naquele tempo nada mais normal
passaram toneladas cúbicas
debaixo da ponte sobre o rio tao
guardo ainda uma ponta de súbitas
o tempo teima em não me fazer mal
ideias doem, algumas ainda úmidas
vai, água suja, ardo mas digo tchau


(Roberto Prado)
Perdi o molho
Estavam todas lá
a chaves dos meus acessos
e agora José ?
Sua pensão
vai dormir no chão
na calçada e alguém ainda vai dar risada
e os armários , e  a cozinha
vai ficar aí José gastando um dinheiro que não tem
na cibercafé a vida não dá refresco
vai ver o sol nascer  e rezar para o molho aparecer.


Wilson roberto Nogueira
“Uma migalha de mim”
Teço
Um ego-vidraça
Para que enxergues
Meu Eu

Teço
Uma nuvem lassa
Cortina que qualquer mão
Atravessa

Teço
Um hímen de fumaça
Sobre a virgem essência

- tudo o que sou Eu.

Bárbara Lia

 (A flor dentro da árvore - página 11)
 o teu silêncio me grita
porque te amo
e amo não tem nome
pele ou sobrenome
e não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus oróprios códigos e segredos
mas não tenha medo
pode ferir pode sangrar fundo
mas é razão deestar no mundo
nem que seja por segundo
por um beijo mesmo breve
porque te amo no sol no mar na neve
arturgomes


veracidade
por quê trancar as portas
tentar proibir as entradas
se eu já habito os teus cinco sentidos
e as janelas estão escancaradas?

um beija flor risca no espaço
algumas letras de um alfabeto grego
signo de comunicação indecifrável
eu tenho fome de terra
e este asfalto sob a sola dos meus pés:
agulha nos meus dedos

quando piso na Augusta
o poema dá um tapa na cara da Paulista
flutuar na zona do perigo
entre o real e o imaginário:
João Guimarães Rosa Martins Fontes Caio Prado
um bacanal de ruas tortas

eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta
o correto deixei na cacomanga
matagal onde nasci

com os seus dentes de concreto
São Paulo é quem me devora
e selvagem devolvo a dentada
na carne da rua aurora

Artur Gomes SampleAndo

http://artur-gomes.blogspot.com/

MEU



Decerto, os meus poemas
São lunáticos
Visto que descerram a vida
Dos seres apáticos
Não precisam de palmas
Para subirem à tona
Vermelha é a cor da chama
Que flamba o coração do homem
Que simplesmente ama
E com o impulso da alma
Plana.


(Adelaide N.)
é a solidão
que me carrega
no dorso da palavra
até a beirada do obscuro

onde me atiro
porque me assoma
desde sempre a vertigem
e me assombra mais o medo
do que acabar

e é na queda
que o hálito do abismo
aviventa minhas asas
de inventora do impossível

é a solidão
que empilha silêncios
até emparedar meu grito
e eu, simbionte,
tomo sempre num hausto
o ultimo fôlego
e cavo frestas
a lápis e caneta
até eclodir o verso
onde respiro


Iriene Borges

Matança


Menores matando menores.
Maiores matando menores.
Menores matando maiores.
Maiores matando maiores.
Maiores e menores se matam sem preocupação com a maior ou a menor idade.

JD
chá quente e hacai
no crespúsculo do inverno
aquecem Iandê

Andréa Motta


21.06.12

poemas à revelia

um verso que fosse o universo
e ao mesmo tempo nada
porque caminham juntos
de mãos dadas
perdidos quais andarilhos
de um trilho sem fim
fosse a autora feita de abismos
e não haveria dia
a noite trajada de negro
devoraria a multidão insone
que caminhão e não lhe sabe para onde
mas como pressentir a queda
e se livrar desse poço sem fundo
chamando mundo


 Rafael Walter, edição do autor, 2014

sábado, 20 de junho de 2015



A libélula púrpura flana acima do véu pendente do teto a envolver a cama de madeira rústica. A libélula destoa do ambiente. Chão sujo, cheiro acre de suor masculino no ar. Manuela não sabe o significado daquela aparição... Não sabe que as libélulas chegam para ensinar a romper com as ilusões, atravessá-las e abraçar o que buscamos. Elas vêm para dizer que as limitações físicas são ilusões, podemos atravessá-las. Podemos. A libélula pousa no véu e fica ali por alguns minutos. O corpo de Manuela está dolorido. Os músculos das pernas ressentem dos dias de caminhada excessiva. O ambiente é estranho. Aquela pequena cabana de madeira está encravada meio ao matagal. Ela ouve barulho de panelas. Quer sair dali. Suas mãos estão amarradas à cabeceira da cama. Precisa continuar sua viagem. O rapaz surge na porta, sem camisa. A calça de tecido rústico marrom. As botas de montaria. Ele tem os cabelos desgrenhados, ela percebe, agora que ele tirou o chapéu. O cabelo suado adere à sua testa. Ele a olha por alguns segundos e depois a conclama:

— Tem arroz com charque, tem frutas e leite. A moça precisa comer.

Nas manhãs ele saia e voltava à tardinha com um animal morto. Era estranho ficarem ali, as janelas e portas fechadas com ferrolhos enormes. Disse a ele que precisava ir ao Rio de Janeiro. Era como se, súbito, o rapaz a controlasse com seu olhar de ferro. Era como uma lâmina fria o olhar dele. O olhar dele dava ordens. Fazia com que Manuela ficasse estática, sem coragem de seguir sua caminhada, tentar uma fuga.

Bárbara Lia

As Filhas de Manuela

Menção Honrosa na primeira edição do - Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz (Portugal)
sobre o romance inédito:

Ambientado de 1839 aos dias atuais, com cenários que vão de Paranaguá ao Rio de Janeiro, passando por Paris e por Arraial D’Ajuda, um mosaico de vidas que insistiram nesta tal felicidade, sem pieguice ou fantasias, e em amores distanciados dos contos da carochinha. Traz o estranhamento de estar vivo, meio a um enredo quase surreal, onde um homem amaldiçoa uma mulher e toda a sua descendência, com ódio tão extremo e com o desejo de que todas sofram tanto que até suas sombras sangrem. O livro relata como elas lidaram com esta absurda herança.


O VINHO TINTO


Agora eu não sonho mais
nem menos
do mesmo tanto
Agora sim
eu me espanto
e canto quando te sonho
(...e te sonho por todo canto!!!)
e um tanto tonto
me encanto
No entanto...
eu não sonho mais
te sonho do mesmo tanto.

Altair de Oliveira – In: O Embebedário Diverso




Deixem a linguagem se sujar
Porra!
Para que depois nós
(Não eles)
Possamos dizer:
Isso serve, isso não serve
Isso definitivamente
É sujeira.
Não deixem o brinquedo na caixa.
Não criem uma geração de colecionadores.
Os que dominam sistemas acordam
Imaginando você idolatrando
Um brinquedo que nunca
Poderá ser utilizado.
Vamos lá, criançada!
RASGEM o pacote do

Presente da linguagem!

Alexandre França

 “Só se ama uma mulher quando lhe tememos a pele e o cheiro”, Leio o pensamento de Antonio Maria, querendo lembrar-me do tempo – dos dias desprovidos de razão ou sentido para temê-la assim, quando nossos corpos e cheiros eram órbitas difusas, intocadas e de improvável e quase absurda condição de proximidade – e lembro ou concluo, não sei bem, senti o cheiro dela, o desespero, a sofreguidão, a morte do que eu fui antes, no exato momento em que nossos olhos se tocaram.


Julio Almada

Dança do tempo


A liberdade dela não cabia nos limites da vida de uma pessoa só.
Cabelos soltos, corpo sem excessos e excessivo no mover.
A face impenetrável. A mente desenhando na pista, o amor performático, com seu parceiro feito sob medida.
Cabelos crescendo sem direção.
As luzes intrépidas e esvoaçantes, não lhe faziam sombra. A mulher musicalmente conduzindo o desejo dissolvido em um só ritmo.
Difícil imaginar o não encontro. Bailarinos nascidos para o encontro.
Par de um tempo que não há destino que possa desfazer.

Julio Almada

E a Glória?


78 anos. Nascido no Espírito Santo. Carioca há muito. Pé mutilado e fratura no fêmur: atropelamento. Agressões familiares. Ali estava à espera de uma conciliação judicial. Filha e Pai. Genro e Sogro.
Nadir Glória, a noiva com quem não se casou.
Glória, a esposa, que o fazia sofrer e lhe rejeitava.
Maria da Glória, a mulher que o acolheu em um adultério inevitável. Ele seu primeiro homem, aos setenta anos dela e setenta e quatro dele.
Adultério?! Já não tinha mais vida conjugal com a “segunda Glória”.
Teve Bons empregos. Táxi. O terreno antes muito para seus planos futuros, tornou-se pequeno, ocupado pelas construções do Genro.
Vida de Glórias?
Segundo ele de provações, confessava segurando a bíblia, envolta pelo saco plástico.
Quase morri, contou.
Dormi dirigindo o táxi e caí barranco abaixo, as pedras prenderam o carro na entrada do rio. Eu adormecido.
O carro afundava aos poucos, umedecendo a calça.
Algum parente o havia avistado. Coincidência?
A mão de Deus, afirmava.
Isso posso contar-lhe, apesar dos lapsos de memória, mas do anjo na beira da cama, me lembro bem, sorria.
Por alguma razão ainda estou aqui e saiu andando com a perna arrastada quando o chamaram.


Julio Almada

morte da Morte e a morte da Vida


Em assuntos de amor são os loucos quem tem mais experiência. Sobre o amor, não perguntes nada aos sensatos: os sensatos amam sensatamente, o que equivale a nunca ter amado.
(Jacinto Benavente)
Não se morre de amor perdido. Simplesmente não se vive. Uma existência de raízes, na terra seca, consumidas. Aceitamos o óbvio da vida, o cíclico repetir de algo que nos entendia e é muito comum. Assim tenho visto, a recusa do mais precioso e impreciso: O imprevisto do Amor, contendo todo o tempo não percebido.


Julio Almada

Máculas


“A virtude, como os corvos,
Faz seu ninho entre ruínas.”
Anatole France

Mordida de cachorro. Queda de montanha. Acesso de raiva. Queimadura. Agressão por objeto pontiagudo. Raspões. Ação de agentes corrosivos leves. Nenhuma bala havia deixado cicatrizes no meu corpo. A artilharia do destino se muniu de projéteis mais sutis: Desespero. Solidão. Amores camaleões. Rostos fingidos. Com o tempo tornei-me colecionador de cicatrizes interiores.

Julio Almada

Um Chapéu para o Crepúsculo


“Mas o que vou dizer da Poesia?
O que vou dizer destas nuvens, deste céu?olhar,olhar,olhá-las, olhá-lo, e nada mais.Compreenderás que um poeta não pode dizer nada da poesia. Isso fica para os críticos e professores. Mas nem Tu, nem eu, nem poeta algum sabemos o que é a poesia.”
Federico Garcia Lorca

Antônio ou Bernardo ou Miguel. Não lembro seu nome. Ele escrevia um poema há 30 anos e não o havia terminado. Faltava a percepção particular do momento secreto em que a madrugada, desnuda e ousada, pretendia vestir-se de amanhecer. Os amigos o chamavam de caçador de crepúsculos. Outros de maluco mesmo. Assim, quinta para sexta ou sexta para sábado ou desde qualquer madrugada suspeita de tresloucadamente converter-se em amanhecer, podíamos ver Antônio ou Bernardo ou João- já disse que não lembro o nome dele – entretido em conversas várias, menos sobre amanheceres ou fracas luminosidades, pois os seus amigos eram loucos de outra categoria, esperava a visão do que lhe faltava, para terminar o angustiado e reluzente poema. Não sei, se por ato contumaz, dos líquidos entorpecedores – destilados, fermentados, bebidas caseiras – ou por traição abusada do próprio corpo – consciente de que esperar um amanhecer é obra de propensos suicidas ou loucos pouco confiáveis – a verdade é que, o crepúsculo era testemunha do sono desesperado daquele homem e nem ele nem eu, poderíamos dizer se Antônio, Pedro ou Miguel sonhava com ninfas de beleza inebriante, com pacotes de dinheiro ou lingotes brilhantes de ouro ou com a fraca luminosidade que precedia o amanhecer.


Julio Almada

chamo deuses, homens
reclamo mulheres
me declaro cão
meus pecados, raros
nunca são bem claros
só escuridão."

RR

Sangue

Sangue
no pano da cena
Uma navalha risca
a arena
Homens castigam a terra
que os castiga
em omissão de águas
Cactos suspiram mortos
em paisagem assada ao sol
de Granada
Aqui jaz poeta e personagens
Três atos
sete quadros
vinte e uma covas em matemática andaluz
Depois, retirou
sutilmente a pele de todos
antes de os enterrar
Ele os pariu
orientou-os em tragédia
portanto pode assassiná-los
Espanha anunciada
no suicídio vermelho

de Lorca

 poema da Cristina Ohana

À primeira vista


Imã
Até aonde vou?
Até aonde sou?
Até onde vem
Até onde quer
Até onde é
Até aonde for.


Julio Almada, Livro dos Silêncios

Prisão Feminina

Prisão Feminina,
o Lar enquanto Prisão,
a Prisão enquanto Lar

*prêmio Marc Ferrez '97

DESCAMINHOS


Sozinho – e sem nenhum itinerário –
vou pelas ruas.
A lua grita no silêncio das vidraças,
tangendo a noite sem leme.
Já perdido de mim, sigo em busca de meus passos
e, em meio a tantos muros,
me vasculho inutilmente e insatisfeito traço
o caminho
que desfaço.
Sozinho – e sem nenhum itinerário –
sou meu rastro. E me contemplo
– Narciso morto – nas poças que a chuva deixou
entre o asfalto
e a sarjeta.

Otto Leopoldo Winck

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Frequentador de ilusões



A cada qual o seu paraíso. Eu tenho os meus, e é lá que me perco. Dia desses, por exemplo, numa rua sem nome e sem calçamento, no Capão Raso, fui tomado por uma tentação inédita, a milésima da minha vida. Inexplicavelmente, colhi dois galhos de um arbusto bonito, carregado de frutinhos amarelos, em cachos, e mais meia dúzia de longas plumas de um capim avermelhado, espigoso, que lembrava as penas de um faisão.

Sim, no Capão Raso, bairro da minha infância, ainda há desses becos secretos e floridos, onde os gatos domésticos, saudosos de uma selva em que jamais viveram, se iludem caçando saracuras entre as moitas de chuchu. Sou frequentador de uma dessas ilusões e se não dou a vocês a sua localização exata é porque sei que oásis não tem endereço.

Mas quero — ou preciso — contar das plantas que, impulsivo, colhi só por achá-las atraentes. Embalei-as em folhas de jornal e, com aquele arranjo delicado nos braços, preferi não encarar os 200 passageiros de um biarticulado. Peguei um táxi e para ir da periferia, onde me tornei adulto, ao Centro da cidade, onde envelheço, gastei R$ 30. É o tanto que me movi no mundo, em quatro décadas. Ao menos a carga chegou ilesa ao meu apartamento, na Ébano Pereira.

Em casa, larguei o buquê numa velha garrafa de azeite, vazia e sem rótulo, e o acomodei na mesa de jantar, vidro sobre vidro, em frente à sacada. Ali passamos 15 dias de tranquila convivência, as plantas e eu, até que, num domingo menos abafado, os frutinhos amarelos do arbusto amanheceram tenebrosamente murchos e escurecidos.

Os galhos estavam mortos, e o arranjo, embora ainda belo em seu exotismo, em sua rusticidade de terreno baldio, jazia desprovido de qualquer sentido. Me livrei dos cachos secos e carreguei para o terraço a garrafa com o capim remanescente. Lá fora, para minha surpresa, uma brisa morna começou a debulhá-lo sem encontrar resistência alguma, como se soprasse um dente-de-leão. E centenas de sementes voadoras se lançaram do meu prédio, feito paraquedistas sobre uma cidade em guerra.

Era muito cedo, não passava das oito, mas, lá embaixo, o sábado ainda não havia acabado para muita gente. Aos domingos pela manhã, o Centro de Curitiba visto de cima mais parece um fim de feira. Diante das boates da região da Cruz Machado, os últimos notívagos tomam sol como quem bebe fogo num drinque barato, uma saideira mágica, porém compulsória. Não se deixaram consumir pela voracidade de mais uma madrugada, e este é o único prêmio a que têm direito: um raio de luz atravessado na garganta.

Naquele domingo, como de costume, uns dormitavam nas calçadas, outros discutiam à porta das casas noturnas, cada um defendendo suas dores numa língua particular, perfeita em sua incomunicabilidade. E nenhum deles, mesmo o menos lúcido, seria capaz de adivinhar que, àquela hora amarga, uma esquadrilha de renovação já sobrevoava suas tragédias rasteiras, em busca de terras férteis, um solo bom de bombardear. Aquela gente e aquelas sementes perseguiam mais ou menos a mesma coisa e com as mesmas chances, baixas, de sucesso.


Mas e se alguém, ou alguma semente, num golpe de sorte, conseguisse driblar o asfalto, o concreto, a sarjeta, as pedras portuguesas, e pousasse num lote mínimo e acolhedor de vida? E se ele ou ela encontrasse condições de se agarrar a esse chão, e nele criasse raízes, e crescesse para curvar-se apenas ao vento, e nunca aos pés de ninguém? Já não seria uma vitória, apesar de temporária?

Luiz Henrique Pellanda
Gazeta do Povo. 02/02/2015

Suaves desistências

No calor, reduzo minhas caminhadas por Curitiba. Passo dias internado, só abrindo uma ou outra exceção para alguns passeios habituais que a maioria de nós julgaria extravagantes. Um deles me leva sempre a visitar certas árvores da cidade, espécimes que me cativam de um modo especial, por razões passionais e, portanto, insondáveis.


Gosto de árvores, ponto. Dia desses, li uma crônica em que Rubem Fonseca admitia ser um dendrólatra e, citando o poeta polonês Czeslaw Milosz, até dizia querer ser uma árvore, para crescer "sem ferir ninguém".
Bem, não creio na bondade arbórea, já vi árvores machucarem muita gente por aí (eu mesmo sou alérgico a aroeiras), e sei que as plantas também matam por espaço, água ou luz. Mas confesso me sentir bem próximo dessa tal dendrolatria, embora ainda esteja longe de ser um especialista. Por exemplo: só há pouco descobri que as palmeiras da Osório são jerivás, e não butiazeiros, conforme registrei, equivocadamente, em tantas crônicas. Paciência, sou um animal e cometo erros, coisa que os vegetais não fazem.

Mas quero falar das visitas. Semana passada, subi a Prudente de Morais só para checar a floração das quaresmeiras — ou seriam manacás? Carreguei comigo minha filha de cinco anos, e que, estando de férias, topa qualquer programa. Lá, avaliando aquela bela mistura de flores de coloração mutante, que varia entre o branco, o rosa e o roxo, a menina logo concluiu que algumas pétalas, caprichosamente, "desistiam" de uma cor em favor de outra.

Adoro esse uso suave do verbo desistir. Minha filha o inventou depois de examinar o rosto da irmã de um mês e meio e declarar que o bebê estaria "desistindo dos olhos azuis".

Perto dali, dois pés de hibisco já bem criados, os caules retorcidos, dividem a mesma copa. No início, ainda mudas, pareciam brigar, e algum morador da rua até os amarrou com um barbante, para que não fugissem um do outro. Hoje são duas serpentes de várias cabeças, presas no próprio abraço. E, na confusão de sua folhagem, as flores se embaralham incendiadas, umas vermelhas, outras amarelas, nos dando a impressão desatinada de que cada galho tem o condão de escolher a cor do fogo que penderá de sua ponta.

Também gosto muito de uma dupla de árvores, essa bem mais inusitada, que visito no Jardim Leonor Twardowski. Ao lado do Café do Estudante, grudados, crescem um mamoeirinho e uma jovem araucária, eternamente enfeitada com bolas e serpentinas de Natal. Um dia, a araucária será uma gigante indiferente, e os poucos que se derem ao trabalho de olhar para cima ao passarem por ali se perguntarão quem foi o doido que a escalou para decorá-la.

Ótima árvore, sei que iluminará nossas noites nubladas. É uma ilusão que o acaso germinou no deserto urbano, uma miragem desprezada, apesar do brilho de seus penduricalhos. Uma araucária — quem sabe um pinheiro australiano — que é também um monumento à nossa excentricidade.

Outra trilha que costumo percorrer margeia o Passeio Público. Foi nela que, certa vez, flagrei um bêbado dormindo na grama, à sombra dos jacarandás-mimosos. A dois passos dele, uma grande garça o observava. Perplexa, a ave curtia a chuva de pétalas que o soterrava devagar, fazendo-o sumir feito um montinho de pó que a natureza varresse para debaixo de um tapete violeta.

Aliás, esse homem evanescente me lembrou de um conto de Dalton Trevisan, tão recente quanto certeiro, dedicado aos ipês da Tiradentes. Nele, o narrador nos pergunta: "Quem aproveita, neste céu de cinza, os ipês floridos na praça?".

Bem, eu tento. E aproveito também para convidar a cidade, mesmo que amortecida, a desistir do cinza. Suavemente.

Sim, seria, até que o tempo viesse de novo lhe podar os galhos, as flores, as hastes e os frutos, para com eles enfeitar o vazio de uma garrafa.

Luiz Henrique Pellanda

Gazeta do Povo 26/01/2015

Livro do céu

Passei uma parte considerável da minha vida olhando ou ouvindo a chuva em Guaratuba. Até poucos anos atrás, sempre que ia à cidade, eu me instalava numa velha casa de veraneio, típica dos balneários paranaenses, metade em madeira, metade em alvenaria, erguida lá por 1950. Toda a minha memória da chuva foi construída naquele vago endereço, que o tempo e a especulação imobiliária já vão tornando espectral.


Ali, os dias chuvosos se atropelavam sem trégua, desalojando os gambás do forro da casa. Impossível dormir com o tropel dos bichos incomodados, ou esquecer as goteiras da madrugada, as corridas noturnas com baldes e rodos, o banheiro povoado de rãs e pererecas.

Esse litoral pantanoso exasperava o menino que fui. Mais crescido, aprendi a relevar as inundações, e até a apreciá-las por outros ângulos, menos rasos. Deixava morrer minhas tardes numa cadeira de praia, na varanda semialagada, fumando meus cigarrinhos de moço. Acho, inclusive, que aquelas chuvas guaratubanas, se não me ensinaram a pensar, me habituaram à contemplação forçada das coisas do mundo. Sou grato à nobreza dessas águas.

Aliás, sempre me fascinou um verso simples – e nem sei se conhecido — de Jorge Mautner, que dizia ser a chuva "uma princesa que cai do céu". Não me perguntem o que significa; o verso nunca me pareceu muito claro, mas é de uma beleza estranha e poderosa, que me obrigava a procurar na chuva alguma humanidade que nos irmanasse, ou uma realeza que jamais pude apreender direito.

Hoje, quando venho a Guaratuba, vejo a chuva do alto de um prédio, e tudo é novo. Percebo sua aproximação minutos antes de sua chegada, aquela cortina d'água esvoaçante que vem correndo, em bloco, do oceano à areia. Ela bate pesado, feito um chicote de brilhantes, nos morros e nos edifícios; castiga a cidade que infelizmente se verticaliza, sua autoridade calando tudo diante dela: o trânsito, os pássaros, os veranistas, os cães, saudosos do luar, e os carros de som, anunciando luaus e liquidações.

Passo horas na sacada, observando o voo baixo dos helicópteros sobre as ondas escuras, contemplando essa chuva antiga que insiste em amordaçar nossa alegria. Daqui ainda avisto, num pedaço mais distante do mar, a quilômetros da costa, grandes áreas ensolaradas, lotes luminosos de água e nada mais, talvez do tamanho de cidadezinhas.

Esta aí uma bela ironia meteorológica: naquelas regiões remotas é que o verão acontece. Lá no mar é que ele é pleno, intenso e lindo, mas só para os peixes, as aves e, quem sabe, os milhares de afogados que já nos deixaram, depois de tantas e tantas temporadas e tempestades.

Não, ainda não encontrei na chuva a princesa triste de Mautner, mas posso imaginá-la, e também ouvi-la cantar à noite, e garanto que sua voz de sereia está cada vez mais atraente e perigosa.

Semana passada, por exemplo, numa madrugada quase fria em Guaratuba, me deixei embalar pelo batuque hipnótico do temporal em minha janela. O som — que às vezes lembrava tiros, às vezes tambores, aplausos, ou a fala alienígena de muitas pessoas, umas risonhas, outras lamuriosas — foi me sugerindo novas ideias, histórias e devaneios, até, aos poucos, ir se misturando a um sonho.

Dormindo, senti que a chuva também poderia ser um livro que cai do céu, um texto que lava as ruas e os restos de nossa civilização, uma narrativa fluida, disforme e com vários sentidos a percorrer, embora destinada a sempre terminar numa boca de esgoto. Podemos lê-la, secos, do topo de nossas fortalezas, mas o ideal é que seus leitores se deixem levar por aí, náufragos encharcados, bravos navegadores de meio-fio, bueiro abaixo.

Luiz Henrique Pellanda
  lhpellanda@gmail.com

Gazeta do Povo .. 10 de fevereiro de 2015



NAMORADOS


— Vamos dar uma voltinha, meu bem?
— Aonde pensa em me levar?
— Vamos até a nossa praça, sentar num banco, minha menina.
— Só?
— Só... E também conversar um pouquinho.
— Se você não querer me bolinar, vamos.
— Você está uma delícia de vermelho!
— Abusado...! Você não cresce mesmo... Então vamos!
No meio do caminho, ele sobe num muro e se contorce todo para pegar uma rosa branca do jardim de um vizinho. Ela fala:
— Pare com isso, deixa de ser peralta, é feio pegar sem pedir. Isso é roubo.
— Quando se quer dar a rosa a quem se ama, chega a ser até bonito roubá-la.
— Obrigada, meu garoto. Eu também te amo. Mas, você não cresce mesmo!
Eles vão de mãos dadas, chegam à praça e sentam num banco embaixo de uma pereira. Ele beija o rosto dela, depois o pescoço. Ela se esquiva, falando:
— Olha as pessoas passando aí.
— Todos têm de ver como o amor se manifesta!
Paulo pega no joelho de Luíza. Ela, com o sorriso maroto, diz:
— Olha a mãozinha boba! Isso já é...
— Ó, minha menina! Boba seria minha mão se ela não procurasse as suas pernas...
— Você não tem jeito...!
— Veja nossa árvore como está florida, terá muitos frutos esse ano.
— Ela, com sua sombra, tem sido o abrigo do nosso amor!
— Quero tanto fazer amor com você, minha lindinha!
— Você sabe que não podemos. Não é hora de pensar nisso.
— E se tem hora pra se pensar em fazer amor, que não seja a hora que desejamos?
Com um sorriso sensual ela diz:
— Há muita gente em casa.
— A gente faz baixinho, igual fazíamos no porão da casa de seu pai, quando éramos noivos. O som do nosso prazer era abafado, e retido todo ele dentro do nosso ser.
— Meu safadinho adorável.
— Quando você morde os lábios, meu desejo aumenta mais.
— Temos de ir, meu bem. Está esfriando e você não trouxe o seu cachecol, pode pegar um resfriado desse jeito. Talvez nossos netos nos façam uma surpresa.
— E também não é todo dia que se comemoram cinqüenta anos de casados. Bodas de ouro, minha menina.
— Bodas de ouro! Há cinqüenta anos, a vida me presenteou com você.
— Até parece que foi ontem que plantamos essa árvore. Lembra que essa praça era deserta, e uma noite nós...
— Posso te pedir uma coisa?
— Claro! Peça todas as coisas.
— Não cresça nunca, meu menino. Vamos?
Ele rindo:
— Vamos, vamos meu amor!.

JDamasio / A compota de Pimenta e outros Contos "puramente" Picantes 2009