Passei uma parte considerável da minha vida olhando ou ouvindo a chuva em
Guaratuba. Até poucos anos atrás, sempre que ia à cidade, eu me instalava numa
velha casa de veraneio, típica dos balneários paranaenses, metade em madeira,
metade em alvenaria, erguida lá por 1950. Toda a minha memória da chuva foi
construída naquele vago endereço, que o tempo e a especulação imobiliária já
vão tornando espectral.
Ali, os dias chuvosos se atropelavam sem trégua, desalojando os gambás do
forro da casa. Impossível dormir com o tropel dos bichos incomodados, ou
esquecer as goteiras da madrugada, as corridas noturnas com baldes e rodos, o
banheiro povoado de rãs e pererecas.
Esse litoral pantanoso exasperava o menino que fui. Mais crescido, aprendi a
relevar as inundações, e até a apreciá-las por outros ângulos, menos rasos.
Deixava morrer minhas tardes numa cadeira de praia, na varanda semialagada,
fumando meus cigarrinhos de moço. Acho, inclusive, que aquelas chuvas
guaratubanas, se não me ensinaram a pensar, me habituaram à contemplação
forçada das coisas do mundo. Sou grato à nobreza dessas águas.
Aliás, sempre me fascinou um verso simples – e nem sei se conhecido — de Jorge
Mautner, que dizia ser a chuva "uma princesa que cai do céu". Não me
perguntem o que significa; o verso nunca me pareceu muito claro, mas é de uma
beleza estranha e poderosa, que me obrigava a procurar na chuva alguma
humanidade que nos irmanasse, ou uma realeza que jamais pude apreender direito.
Hoje, quando venho a Guaratuba, vejo a chuva do alto de um prédio, e tudo é
novo. Percebo sua aproximação minutos antes de sua chegada, aquela cortina
d'água esvoaçante que vem correndo, em bloco, do oceano à areia. Ela bate
pesado, feito um chicote de brilhantes, nos morros e nos edifícios; castiga a
cidade que infelizmente se verticaliza, sua autoridade calando tudo diante
dela: o trânsito, os pássaros, os veranistas, os cães, saudosos do luar, e os
carros de som, anunciando luaus e liquidações.
Passo horas na sacada, observando o voo baixo dos helicópteros sobre as
ondas escuras, contemplando essa chuva antiga que insiste em amordaçar nossa
alegria. Daqui ainda avisto, num pedaço mais distante do mar, a quilômetros da
costa, grandes áreas ensolaradas, lotes luminosos de água e nada mais, talvez
do tamanho de cidadezinhas.
Esta aí uma bela ironia meteorológica: naquelas regiões remotas é que o
verão acontece. Lá no mar é que ele é pleno, intenso e lindo, mas só para os
peixes, as aves e, quem sabe, os milhares de afogados que já nos deixaram,
depois de tantas e tantas temporadas e tempestades.
Não, ainda não encontrei na chuva a princesa triste de Mautner, mas posso
imaginá-la, e também ouvi-la cantar à noite, e garanto que sua voz de sereia
está cada vez mais atraente e perigosa.
Semana passada, por exemplo, numa madrugada quase fria em Guaratuba, me
deixei embalar pelo batuque hipnótico do temporal em minha janela. O som — que
às vezes lembrava tiros, às vezes tambores, aplausos, ou a fala alienígena de
muitas pessoas, umas risonhas, outras lamuriosas — foi me sugerindo novas
ideias, histórias e devaneios, até, aos poucos, ir se misturando a um sonho.
Dormindo, senti que a chuva também poderia ser um livro que cai do céu, um
texto que lava as ruas e os restos de nossa civilização, uma narrativa fluida,
disforme e com vários sentidos a percorrer, embora destinada a sempre terminar
numa boca de esgoto. Podemos lê-la, secos, do topo de nossas fortalezas, mas o
ideal é que seus leitores se deixem levar por aí, náufragos encharcados, bravos
navegadores de meio-fio, bueiro abaixo.
Luiz Henrique Pellanda
lhpellanda@gmail.com
Gazeta do Povo .. 10 de fevereiro de 2015