sexta-feira, 19 de junho de 2015

Frequentador de ilusões



A cada qual o seu paraíso. Eu tenho os meus, e é lá que me perco. Dia desses, por exemplo, numa rua sem nome e sem calçamento, no Capão Raso, fui tomado por uma tentação inédita, a milésima da minha vida. Inexplicavelmente, colhi dois galhos de um arbusto bonito, carregado de frutinhos amarelos, em cachos, e mais meia dúzia de longas plumas de um capim avermelhado, espigoso, que lembrava as penas de um faisão.

Sim, no Capão Raso, bairro da minha infância, ainda há desses becos secretos e floridos, onde os gatos domésticos, saudosos de uma selva em que jamais viveram, se iludem caçando saracuras entre as moitas de chuchu. Sou frequentador de uma dessas ilusões e se não dou a vocês a sua localização exata é porque sei que oásis não tem endereço.

Mas quero — ou preciso — contar das plantas que, impulsivo, colhi só por achá-las atraentes. Embalei-as em folhas de jornal e, com aquele arranjo delicado nos braços, preferi não encarar os 200 passageiros de um biarticulado. Peguei um táxi e para ir da periferia, onde me tornei adulto, ao Centro da cidade, onde envelheço, gastei R$ 30. É o tanto que me movi no mundo, em quatro décadas. Ao menos a carga chegou ilesa ao meu apartamento, na Ébano Pereira.

Em casa, larguei o buquê numa velha garrafa de azeite, vazia e sem rótulo, e o acomodei na mesa de jantar, vidro sobre vidro, em frente à sacada. Ali passamos 15 dias de tranquila convivência, as plantas e eu, até que, num domingo menos abafado, os frutinhos amarelos do arbusto amanheceram tenebrosamente murchos e escurecidos.

Os galhos estavam mortos, e o arranjo, embora ainda belo em seu exotismo, em sua rusticidade de terreno baldio, jazia desprovido de qualquer sentido. Me livrei dos cachos secos e carreguei para o terraço a garrafa com o capim remanescente. Lá fora, para minha surpresa, uma brisa morna começou a debulhá-lo sem encontrar resistência alguma, como se soprasse um dente-de-leão. E centenas de sementes voadoras se lançaram do meu prédio, feito paraquedistas sobre uma cidade em guerra.

Era muito cedo, não passava das oito, mas, lá embaixo, o sábado ainda não havia acabado para muita gente. Aos domingos pela manhã, o Centro de Curitiba visto de cima mais parece um fim de feira. Diante das boates da região da Cruz Machado, os últimos notívagos tomam sol como quem bebe fogo num drinque barato, uma saideira mágica, porém compulsória. Não se deixaram consumir pela voracidade de mais uma madrugada, e este é o único prêmio a que têm direito: um raio de luz atravessado na garganta.

Naquele domingo, como de costume, uns dormitavam nas calçadas, outros discutiam à porta das casas noturnas, cada um defendendo suas dores numa língua particular, perfeita em sua incomunicabilidade. E nenhum deles, mesmo o menos lúcido, seria capaz de adivinhar que, àquela hora amarga, uma esquadrilha de renovação já sobrevoava suas tragédias rasteiras, em busca de terras férteis, um solo bom de bombardear. Aquela gente e aquelas sementes perseguiam mais ou menos a mesma coisa e com as mesmas chances, baixas, de sucesso.


Mas e se alguém, ou alguma semente, num golpe de sorte, conseguisse driblar o asfalto, o concreto, a sarjeta, as pedras portuguesas, e pousasse num lote mínimo e acolhedor de vida? E se ele ou ela encontrasse condições de se agarrar a esse chão, e nele criasse raízes, e crescesse para curvar-se apenas ao vento, e nunca aos pés de ninguém? Já não seria uma vitória, apesar de temporária?

Luiz Henrique Pellanda
Gazeta do Povo. 02/02/2015

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