terça-feira, 3 de setembro de 2019

Nove variações sobre um tema de Jim Morrison



"You know the day destroys the night
Night divides the day."

1.

A tarde devora o dia
que já estrebucha entre nuvens.
É noite.

Manhã engole essa noite
encaroçada de estrelas.
É dia.

2.

O dia levanta a cabeça
num gargarejo fatal:
a tarde lhe rasga a carótida.
Noite.

A noite segrega projetos
de mundos magros, sem cor.
E vem o dia com seu préstito:
manhã.

3.

Nada como a tarde, trapos encardidos
enxugando os restos de uma luz já suja,
recolhendo as manchas de sol desmaiado
com a complacência de um apagador.

Nada como a manhã, com seus dedos de feltro,
flanelas metafóricas de pura indiferença,
a estender sobre o escuro a realidade plena
de um dia ainda há pouco de todo inconcebível.

4.

Por que é que essa tarde desmancha e desmaia e
sufoca o que o dia erigiu por um triz?

Por que é que a manhã como esse estrépito todo
dissipa o que a noite a tal custo ajuntou?

5.

Boçalidade da tarde:
porque afinal o dia custou tanto
a se investir, a instalar no teto
a gambiarra cara e trabalhosa
do sol, a despejar anil no céu
como um tintureiro alucinado.

Artimanhas da manhã:
despipocar todo o lençol da noite
e detonar tantos penduricalhos
de luz laboriosamente espetados
e acendidos um por um, com desvelos
obsessivos de monomaníaco.

6.

Manhã, que nunca pensas duas vezes
antes de atamancar com tua fórmica
banal a tapeçaria da noite,
como és enorme!

Ó tarde, que tens a desfaçatez
suprema de garrotear sem pejo
o pescoço fino e alvo do dia:
como te invejo!

7.

A cara desta tarde
é muda e austera, cara de quem
assiste, não de muito perto, à morte
prolongada e silenciosa de alguém
que não conhece, e nem
deseja conhecer.

O rosto da manhã
é o rosto frio e indecifrável
de quem contempla apático a morte
de alguém desconhecido, rosto
de quem, fora a licença poética,
rosto não tem.

8.

Se por acaso esta noite se extinguir
no féretro aéreo da alvorada,
tal como o dia ainda há pouco se esvaiu
na crua hemorragia de um crepúsculo,

será a comprovação esmagadora
do triunfo do real insensível
sobre os sonhos sublimes e inefáveis
dos nossos mais insignes metafísicos.

9.

Todo todo é menor que a menor parte,
muitos mundos cabem numa avelã.
Não há dia que não morra numa tarde,
nem noite que não se acabe em manhã.

De PAULO HENRIQUES BRITTO

Nenhum comentário: