Sou místico, acredito no sobrenatural, em Deus, em anjos,
fantasmas, duendes, rezo ao entrar no carro, faço sinal da cruz ao passar por
igreja, enxergo coincidências e sigo rituais.
Quando pequeno, queria ser santo. Hoje, percebo que é
difícil ser apenas um homem honesto.
Fiquei abalado pela história real de uma enfermeira mineira.
Foi a descoberta espiritual mais importante de minha vida. Não dormi por duas
noites seguidas relembrando as verdades ditas por aqueles olhos azuis enormes.
Ela trabalhou por 30 anos na Santa Casa de Misericórdia,
cuidando e socorrendo pacientes terminais.
Confessou que a pessoa morre como ela viveu.
Os mais alegres têm despedida leve, tranquila, independente
da enfermidade. Vão daqui para o outro lado sonhando. Não realizam drama,
tampouco articulam chantagem. Tamanha a suavidade, não dá para identificar o
último suspiro. Aceitam o destino, agradecidos pelo amor recebido.
Já os que estavam acostumados a reclamar de qualquer coisa
também definham contrariados. Atolados de culpas e dívidas, esbanjam esgares de
sofrimento, protestam pelas dificuldades adquiridas na doença, gritam a cada
arrepio, lamentam ausência de atenção; o hospital nunca é bom, a dor sempre é
insuportável.
Eles falecem com o rosto contraído, fechado, apunhalado. De
quem apanhou da morte. Uma feição tensa, de escultura inacabada.
Mas, então, a enfermeira revelou um hábito surpreendente de
sua equipe: conversar com o defunto.
Diante do morto sofrido, refratário e penoso, ela cochichava
conselhos em sua orelha. Pedia para que ele reconsiderasse sua raiva, que
desistisse da cara amarrada e emburrada, que se arrumasse para o velório e
abandonasse o ressentimento.
Explicava que os familiares esperavam com ansiedade para
vê-lo, que ele precisava se despedir bonito, que os parentes mereciam seu
perdão e não valia a pena comprar briga por orgulho e teimosia.
Com as palavras delicadas de incentivo, não é que o morto ia
soltando os traços e transformava a aparência na hora: libertava as bochechas,
alforriava a boca, relaxava por completo.
O morto incrivelmente escutava. Entendia a súplica da
enfermeira mesmo depois do seu fim. Atendia ao pedido e desinchava a amargura e
serenava o espírito.
Nossos ouvidos não terminam com a morte. Continuam ouvindo
onde quer que estejamos.
Fabrício Carpinejar. 30 Aug 2011
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