segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Transformista




Pior do que romance xerocado
--- existe alguma coisa mais sem charme? ---

é o livro que se toma por empréstimo
a um amigo, ou à biblioteca,

depois do implacável "esgotado".
Habituado a sublinhar o texto,

o leitor, impedido de fazê-lo,
quer seja por pudor, ou obscura

certeza de que nada adiantaria,
percebe alguma coisa lhe escapando

--- e não são as idéias, anotadas
em fichas, mas o próprio livro, que

(diante dessa falta ele conclui)
por isso no limite se rabisca:

para se ter a ilusão de olhar
o livro na estante e, ao mirá-lo,

pensar bem satisfeito --- "já o li" ---
mantendo-o, entretanto, bem fechado,

pois um instante apenas bastaria
para na página se espelhar

um rosto totalmente deformado,
e o sonho da estante viraria

o pesadelo da biblioteca,
não fosse o fato de que o próprio sonho

seria um pesadelo, se verdade:
a casa cheia de espelhos planos

(pensa o leitor, e súbito deseja
vestir-se de mulher no carnaval).

De Francisco Bosco, 

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