1
Não me interessa mais se devo fumar meu segundo cigarro. A
satisfação perdeu o sentido depois de tantas mortes, de tantas perdas, de
tantas imagens deixadas no fundo da última gaveta da memória. O peso da idade
aparece exatamente quando não conseguimos esquecer o que realmente valeu a
pena. Sim, Cícero nos ensinou sobre as estantes de Borges. Não, não sou
profeta! Sequer sou advinha. Não gosto de jogos de azar, não faço apostas, não
brinco de ser Deus. Vivo no mundo que me permite andar sem contas com o tempo.
Sou consciente do que devo: nunca quitarei meu débito com o relógio. Tenho dias
cinzentos, sabe! Mesmo quando faz muito sol, eles são assim: cinzentos. Não
reconheço esse que me leva pela mão. Não reconheço esse anjo da guarda de quem
se fala como alguém impregnado de responsabilidades. Ou posso mesmo entender
que, caso eu o tenha, ele deve estar cansado, muito cansado. Tão cansado que me
acompanha apenas com os olhos baixos, à distância.
A cada dia, sinto-me feito muito mais de osso e de vertigem
do que de qualquer outra coisa. Olho para os lados, estudo a região que agora
me tem. O céu está aberto entre o azul e a luz perpétua. Ao longe, uma casa
abandonada e a cortina de calor no fim do asfalto. Neste campo de veredas, há
um norte guardado no estirão, dentro do peito. E involuntário é seu legado de
rezas: os lábios pronunciando senhas sob a égide do sol (Grão-Mogol,
Jequitinhonha, Paracatu!). A estrada avança! Há tapetes de soja no sul do
Piauí. A madeira deita, o gado dorme. Pisca os olhos, derrama uma gota de dor
em seus incêndios espontâneos, esporádicos. O cerrado é terra de vidas
retorcidas como retorcidas são suas árvores, suas odes, suas belezas. É terra
de esperança indefinida como indefinida é sua nobreza.
Limpo a testa com o braço esquerdo, respiro o ar quente e
esfumaçado. Sinto o coração aquietar. Paro por um instante e penso: “estou em
casa!” O céu está povoado de urubus; o céu de poucas cores. Há nuvens
amareladas de fumaça. Contemplo tudo por alguns minutos, e uma mulher de idade
indecifrável passa, na outra margem da pista, com uma lata cheia de castanhas,
na cabeça. Ela leva uma criança. Um menino magro, pescoçudo. A camisa faltando
na cintura, as pernas franzinas, um pouco bambas. A mulher olha-me,
rapidamente, com o canto dos olhos. A estrada está vazia. Guardo no bolso um
terço que um dia eu recebi de presente de minha mãe como joia de proteção. O
menino olha para trás, a mãe grita alguma coisa com ele. Teresina cresce à
minha frente. Ah, como cresce! Ah, como isso me machuca! Mas a cidade fica a
uns mil quilômetros e eu não tenho pressa. Não tenho mais ninguém e isso não me
deixa saber quem de nós é a mira ou o alvo. No mais, somos balas perdidas, sem
medo ou culpa. Eu só preciso fazer o Sinal da Cruz e subir a minha escadaria
particular. Ponho a minha mão direita sobre meu peito. Não chove há muitos meses
lá fora. Não chove há muitos séculos aqui dentro.
Todos os dias, ao acordar, vejo uma grande extensão de
pradaria (desabitada e cinzenta), e uma faixa de terra crua e avermelhada, onde
alguns cães brincam com alguma coisa para esquecer a fome. Eu tentava chegar a
uma cidade esquecida pelo tempo. Não havia muitos buracos na estrada. O
percurso exigia paciência. As carretas carregam soja, minério de ferro, madeira
para construção, bois taciturnos, homens de barba e isso retarda a viagem.
Descanso meu braço direito sobre minha perna e sinto o terço guardado no bolso.
Eu estive nos confins do Maranhão, sentado na calçada, numa noite em que o
horizonte capturou as minhas vistas, enquanto meu pai dormia numa rede amarela
como o ouro.
Dez anos depois, lá estava eu, sentindo a fumaça de óleo
diesel, contemplando as árvores semitransparentes daquela paisagem de pouca
vida. Sinto-me atraído pelo desconhecido. Pela solidão do desconhecido, não
pelo alvoroço de sua cegueira. A pista me chama!
Mas eu estou aqui, no interior do Piauí, respirando aquele
ar seco e quente. As coisas quase sempre estão ausentes de vento por aqui.
Retorno à pista e ouço um disparo de espingarda vindo do meio da mata rasa.
Nenhum pássaro se espantou. Eu preciso chegar antes do anoitecer. Olho para o
leste procurando não olhar para o lado do Maranhão. Percebo meus olhos brancos
e um pouco mortiços. O vento esfria. Eu penso em parar para sentar e respirar
um pouco melhor, mas fico com receio de que alguém possa se aproximar. Acaricio
o terço por sobre a calça, mais uma vez. Por baixo do banco, eu guardo um
revolver 38 de cano curto com cabo de madeira encerada. Tenho porte, fiz curso
de tiro. Tudo certo! O movimento fica menor, as horas avançavam e uma leve
brisa anuncia o fim do dia. Resolvo olhar para o horizonte à minha esquerda. O
crepúsculo me massacra! O asfalto parece um tanto cinza-chumbo. Não ligo o som.
Sinto meus olhos ardendo, a aurora cinzenta. Atravesso uma longa região
totalmente queimada. Tudo está desbotado pela ação do tempo. Um homem que está
sentado em uma rocha, de corpo magro, com correntes de prata no pescoço, que
mais parecia um vulto cinzento, acena para mim.
A estrada chega a seu ponto mais alto. Ouço novamente um
tiro de espingarda. A brisa esfria um pouco mais. Olho mais uma vez para o lado
do Maranhão e suspiro os mais profundo que eu posso. A região é de colinas nuas
com casas cobertas de telhas escuras. Os vultos se escondem por detrás das
árvores e das rochas. Um trovão ronca do inesperado. Olho para o céu. Não há mormaço
algum. O Maranhão de meu pai está ao meu lado. Eu não sei o que pensar diante
de tanta dor e de tanto vazio, no entanto, alguma coisa me diz que eu não devo
saber. O trânsito fica novamente lento. O número de carros na pista aumenta
bastante. As luzes se intensificam. Comprimo os olhos para ler o que está
escrito nos outdoors que ficam no acostamento, à esquerda, um pouco
despedaçados. “Seja bem-vindo!”, é o que dizem.
2
Eu durmo pouco. Sinto pouca fome. Sinto fome de culpa! Tomo
apenas um pouco de água gelada pela manhã. As senhoras me cumprimentam, são
simpáticas, mas alguma coisa em seus sorrisos fáceis me incomoda. Vejo um
caminhoneiro baixo, barrigudo, meio calvo, branco, quase avermelhado, de
meia-idade, de passagem entre o caminhão e um banheiro improvisado por trás de
umas mangueiras.
Ele tem um dos joelhos um pouco inchado, e se arrasta, sem
camisa, com a toalha no ombro, em direção ao banheiro. Há uma ampla sala com
paredes amareladas, cheia de cadeiras de espaguete, de mesas e cadeiras de madeira,
e um velho sofá marrom perto do aparelho de TV. Um corredor comprido liga a
sala à cozinha. À esquerda do aparelho de TV, um altar improvisado sobre uma
mesinha de madeira, com dois castiçais de prata e algumas imagens de santos.
Nada neste ambiente me parece interessante. Uma garota brinca com uma boneca de
pano sentada no sofá. Chove há duas horas, um chuvisco monótono. Uma mulher
grita para que a menina feche as janelas da sala. Um carro de som anuncia uma
festa, mas o barulho infernal não me deixa compreender com clareza onde seria.
Pouco importa! O que eu quero é superar a noite e partir para casa. Mas minha
casa é o cerrado contorcido, a língua áspera banhada no pó queimado. Confiro o
revólver deixado na mala. O vento faz a janela bater na grade e isso dura a
noite toda, todas as noites. No quarto, há um guarda-roupa de cerejeira
artesanal, uma cama de solteiro, um cabide e um espelho de meio-corpo. A única
coisa que se movimenta nas ruas são os pedaços de papelão que o vento arrasta.
Acompanho um pouco o que se passa através de uma das brechas da janela.
Um menino olha em minha direção, do outro lado da avenida.
Paro de respirar por um instante e meu coração se acelera. O cerrado respira
alto, a cidade se agita, há fogos e rajadas de alegria desvairada. Atiram na
cabeça do menino. Dois tiros. É tudo muito rápido. Eu apago as luzes do quarto,
procuro minha bolsa, a arma. Mesmo no escuro, consigo encontrar o revólver. Uma
chuva tímida torna a cidade mais abafada. Meu suor está frio. Minha fome é de labirinto
e fuga. A noite é de lua minguante. Eu preciso dormir, sonhar. Mas eu não ouso
fechar os olhos ou desviá-los do alvo. E o alvo é o cerrado, devastado, irado,
carcomido.
Acordo com as primeiras luzes do sol. A luz crua do dia
entra pelo teto. Olho mais uma vez pela brecha da janela. Ainda consigo ver
alguns resquícios da mancha de sangue no chão lavado pela chuva. O dia está
pouco nublado. Sinto um cheiro intenso de fumaça de borracha queimada pairando
sobre a estrada. Eu penso em uma criança morta há menos de vinte e quatro
horas. O que ele teria imaginado um minuto antes de seu fim? Teria sonhado ou
desejado algum brinquedo? Ele cumpriu uma missão? Não, não vejo seu rosto. Não
sei seu nome. Não penso em dogmas, não acelero a respiração de Deus. Mas o
menino está lá: a cabeça sobre a poça de sangue. A mãe, silenciosa como uma
pedra sobre o sol, agachada ao lado do corpo.
Não julgo o mundo! Aprendi a temê-lo e a sorrir de forma
inesperada. As árvores na beira da pista parecem saber o que eu estou pensando.
O céu se abre um pouco. Um trovão ronca baixo e breve.
Do livro inédito de contos (OMURA), de Nathan Sousa.
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