A aglomeração de assentamentos lhe causava arrepios. Apesar
do silêncio, era com se pudesse ouvir os clamores das entidades e seus cavalos
vibrando no entorno de cada uma das imagens. Enquanto abaixava-se em frente ao
seu guia, sentia os músculos da perna estremecerem, como resposta ao esforço.
Estava no limite das forças.
Assim que fechou os olhos ouviu ao longe, nas próprias
lembranças, o grito que dera antes do desmaio, seguida do domínio da
inconsciência sobre si. E a força da revivência lhe envolveu em desassossego.
Por medo, cessou a entrega, arregalou os olhos e encarou os olhos do santo:
nada fazia sentido. Era incapaz de compreender que o cumprimento de um destino
prescrito por uma consciência alheia seria a condição para a sua permanência.
Como numa íntima contradição, tal entendimento anulava sua própria razão da
consciência.
Contrariada, Paula se cansou de tentar uma oração que não se
justificava na ausência da crença. Levantou-se com esforço, observou o espaço,
deu uma volta em torno de si. Fora do eixo, pensou em sair, subir as escadas do
barracão, ir para a cozinha e por lá, junto da mãe e dos irmãos-de-santo,
tentar combater o desânimo recorrendo ao saciar da fome. Mas quando lembrou do
gosto que tinha cada uma das refeições, desistiu. Tudo o que ela precisava era
de um pouco de tempero, de sal, de cor, de força – enquanto que os pratos
possíveis tinham apenas dissabor. Diante da prévia insatisfação, foi alcançada
por uma resposta certeira que, mesmo não sabendo saber de onde partira, lhe
tomou: Esse lugar não é para você, menina. Fuja daqui.
A crença de que aquela voz não fora íntima a fez esquecer
dos rituais de confirmação e da representação de uma fé que nunca houve dentro
de si. Pegou a imagem de seu guia, a comida oferecida ao santo e foi embora,
sorrateira, escondida. Saiu do quartinho, assumiu o caminho do portão. Partiu em
busca de um lugar que amparasse não só as suas lidas; mas também as suas
escolhas. Paula foi embora, cabeça raspada, vestida de branco, rua adentro,
mundo afora.
Rejane Marques . O
avesso do espelho: Desassentada
redutonegativo.blogspot.com
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