quarta-feira, 23 de maio de 2018


            
A aglomeração de assentamentos lhe causava arrepios. Apesar do silêncio, era com se pudesse ouvir os clamores das entidades e seus cavalos vibrando no entorno de cada uma das imagens. Enquanto abaixava-se em frente ao seu guia, sentia os músculos da perna estremecerem, como resposta ao esforço. Estava no limite das forças.

Assim que fechou os olhos ouviu ao longe, nas próprias lembranças, o grito que dera antes do desmaio, seguida do domínio da inconsciência sobre si. E a força da revivência lhe envolveu em desassossego. Por medo, cessou a entrega, arregalou os olhos e encarou os olhos do santo: nada fazia sentido. Era incapaz de compreender que o cumprimento de um destino prescrito por uma consciência alheia seria a condição para a sua permanência. Como numa íntima contradição, tal entendimento anulava sua própria razão da consciência.

Contrariada, Paula se cansou de tentar uma oração que não se justificava na ausência da crença. Levantou-se com esforço, observou o espaço, deu uma volta em torno de si. Fora do eixo, pensou em sair, subir as escadas do barracão, ir para a cozinha e por lá, junto da mãe e dos irmãos-de-santo, tentar combater o desânimo recorrendo ao saciar da fome. Mas quando lembrou do gosto que tinha cada uma das refeições, desistiu. Tudo o que ela precisava era de um pouco de tempero, de sal, de cor, de força – enquanto que os pratos possíveis tinham apenas dissabor. Diante da prévia insatisfação, foi alcançada por uma resposta certeira que, mesmo não sabendo saber de onde partira, lhe tomou: Esse lugar não é para você, menina. Fuja daqui.

A crença de que aquela voz não fora íntima a fez esquecer dos rituais de confirmação e da representação de uma fé que nunca houve dentro de si. Pegou a imagem de seu guia, a comida oferecida ao santo e foi embora, sorrateira, escondida. Saiu do quartinho, assumiu o caminho do portão. Partiu em busca de um lugar que amparasse não só as suas lidas; mas também as suas escolhas. Paula foi embora, cabeça raspada, vestida de branco, rua adentro, mundo afora.


Rejane Marques .                O avesso do espelho: Desassentada



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