Duas da madrugada. Sono que é bom, nada.
Alguma coisa estranha me incomoda muito.
Um cheiro doce invade o quarto e chega junto
como se à pele se aderisse outra camada.
Me sentindo quase uma criatura alada,
fico leve, num transe hipnótico profundo,
como um zumbi, quase vivo, quase defunto,
assombrando a mim mesmo e a minha alma penada.
Mas foi no clima dessa noite mediúnica
que eu percebi uma oportunidade única:
-Ah, meu Deus, a que devo a honra da visita?
Justo eu que fui sempre pessoa esquisita.
Roubei uns trocadinhos da capelinha,
eu fiz malcriação, matei passarinhos,
menti, falseei, entre tantos outros pecadinhos,
que o Senhor deve ter grifado em Sua listinha.
Dos quatro cantos do meu quarto, soa a voz
que nunca ouvi mais rouca: “Meu poeta, escuta!
Pra Deus, nada adianta ser ou ter. Nem nós,
desvendamos desígnios de Sua batuta.
Anjos, como eu, sofrem, como tudo mais.
O livre-arbítrio não é flor que se cheire,
foi criado por Deus e fim. Mas ai daquele,
que em plena primavera não leu Seus sinais.”
Mais tímido que noivo virgem, argumento:
-Mas se demônios e anjos também pagam penas,
Deus criou este mundo como farsa apenas.
Somos todos uns burros? O que quer esse Jumento?
Resolveu pregar peças e se divertir
às nossas custas? Tem cabimento esse troço?
Caído, o anjo teve ganas de subir.
O problema não era só meu, e sim, nosso.
“Bem lembrado. Cristo mandou baixar a crista.
Porém Deus, todos sabem, vive nas alturas
e lá do alto não se lê as Escrituras,
ao pé da letra. Deus também é um artista.”
Irônico, escarneço: - Ah, sim, só faz arte.
E o anjo enfurecido: “Todos tem problemas.
mas choros, dores, não são os únicos temas
a serem resolvidos. Deus é uma parte!
Contudo, em toda parte está ainda inteiro.
No sofrimento ou alegria, dia e noite,
faz uso do Seu bálsamo ou do Seu açoite
e sem querer saber se é lobo ou carneiro.”
Retruco: - Então tanto faz o que fiz, né?
E o anjo perdendo a paciência comigo:
“Será que nada existe além do teu umbigo?
A mão que bate pode fazer cafuné!
Saiba, é teu pensamento inferno ou paraíso.
Em tua voz interior, Deus fala certo,
mas parece que está pregando no deserto.
É por isso que eu olho bem onde piso.”
Eu, um tanto confuso, ainda tento a última:
-Pelo que entendi a alma é como um rádio,
a gente sintoniza até a do diabo,
as estações são muitas, tipo escolha múltipla.
O anjo então sorriu-se todo: “ Agora sim,
falaremos de igual pra igual, seu animal!
Pense em Deus como uma extensão de ti em mim
e, por todos os séculos, nem bem nem mal!"
Foi, assim como veio, e eu fiquei só olhando...
asas de par em par, abrindo e fechando...
Foi tudo um sonho e só estou meio maluco
ou Deus é quem me espreme pra beber o suco?
antonio thadeu wojciechowski
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