terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Notas de um diário que não escrevi:



Eu queria sentar perto daquele mendigo - redundante designá-lo sujo, enquanto escrevo as linhas deste meu diário invisível. Sentaria perto de ti, mendigo, não fosse o que deixas exalar das tuas entranhas e dos teus farrapos. O odor é de fracasso.// Todo abandono é um mendigo. Mendigo, portanto, é quem deixei boiando em minha cama de afeto-puro-incolor. Como quando se abandona uma criança que não se teve tempo de amar.// Presto honra com fidelidade de cão vadio; de quando em vez escrevo a história do mendigo, e a minha: penso nas versões de cada uma delas.// Ele dorme a poucos metros de mim. Seus pés já não são pés, são patas. Aquele casco um dia foi tão macio quanto os pés da menina linda que brinca no parque. Tudo ou quase tem um mesmo início.// Isso me faz entender que ninguém é mais puta na santidade que Santa Maria de Deus, que sempre se deu à humanidade. Nunca enxerguei diferença na água benta e no esperma, no fato de matar ou ser morto, amar um homem ou uma mulher.// Escrevi e não me contive! Gargalhei tão alto que a criança no colo daquela linda mãe negra chorou. Depois da noite de ontem, só poderia vir aqui me redimir.// Alguém ouve Rapsódia Húngara num volume ensurdecedor. Certamente algum vizinho que sobreviveu ou vai se matar. "Ninguém ouve Rapsódia se não estiver em seu momento definitivo", penso eu. De repente eu entendo porque certas mães atiram filhos contra os carros.// Comprei uma água de coco e vim assistir as meninas em suas cordas de pular. O sol emplacou e os óculos que eu trouxe finalmente ganham serventia de óculos. Ganham vida na minha cara descarada. De onde estou, já não vejo o mendigo, diviso o homem que ele não foi.// São nove e meia da manhã. A menina mais linda do mundo chuta uma bola muito maior que ela. Por um momento, o mundo todo é dela.// A menina mais linda do mundo, muito gananciosa, quer segurar o mundo com as mãos. Mas a bola é tão grande, que a menina cai. Bem feito, aprendiz de ditadora! Ela já sabe agora que nada é pra sempre, muito menos um desejo, uma pretensão. Caprichos de meninas vergam e o mundo escapa de pequenas mãos.// Eis a linha derradeira deste diário, vez última em que eu, a menina e o mendigo, habitamos um mesmo espaço.

Roberta Tostes Daniel
in Sede em Frente ao Mar

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