Por detrás da fechadura existe o circo
e o lugar comum é agora a nossa cama.
Os ouvidos do mar, a trança dos incêndios, tudo ali
se move. Pressinto filigranas e anjos desajeitados
com uma presença obscura e obstinada.
Aguentar-me só é a ordem que não desejo cumprir.
Fico surpreendido esperando a manhã amendoada
vendo que em vez do sol surgem crianças,
bandos de crianças vindas de planetas distantes
que abriram as portas do céu com mãos colegiais
cheirando a sabonete e com uma alegria
cheia de coelhinhos brancos,
e olham para Rute, a minha meiga Rute,
como se quisessem trocá-la com a lua
envolvendo-a em sorrisos próximos e ágeis antes
do primeiro gesto.
Agora estou a caminho de domingo de manhã,
o único passageiro afastado da janela
desinteressado por cães e borboletas.
Toda a noite sonhei com beijos e uma tempestade,
atravessei uma ponte por cima de peixes tristes
e precisei de beber. Fiquei a olhar para mim
e a humidade caiu e abanou as árvores,
fumei longos cigarros encostado à minha porta
enrolando folhas lentas.
Cresci para as casas ameaçando entrar
para um país cheio de salas de jantar
com toalhas brancas, magnólias e
mãos, apenas mãos servindo às mesas
enquanto por corredores limpos uma dor latejava
e crescia indignada.
Em tudo o que busco,
há um pouco de mim e uma claridade
sem resposta. Ando
à procura de Deus
sob as pedras
nas praias
nos cartazes de propaganda
nos restos de conversa
nos filmes de espiões
nos restaurantes
nos becos
nos livros
nos amigos
nas prateleiras
nas latas de feijão
nos beijos
na luta de classes
na imprensa
nos olhos acocorados de alguns empregados
de escritório,
nas fábricas
nos frutos,
não sabendo o que fazer das mãos
que apresentam ainda cintilações de uma noite branca
onde as dúvidas poisam
como corvos.
Não sei se o que me basta
me basta. É preciso ir até ao fundo.
Pela minha relação comigo passam todos os outros: eu
não abaterei nunca uma árvore com um verso
não farei nunca um pão de uma metáfora
não retirarei carvão da minha escrita
não pescarei nenhum atum com a caneta.
Sei a cor das cerejas, é verdade,
e faço um poema louco cheio de cerejeiras
no cimo das quais posso colocar um bando de melros
e matar os melros todos com dois tiros
ou com um simples risco sobre o verso
onde eu os tinha poisado.
Por vezes sinto que tenho frio e acredito nas coisas
pela maneira prolongada de as olhar.
A surpresa trago-a nos dentes e tem o sabor
de uma carne rosa. Detesto a minha culpa. E vejo-a
como se nunca lhe tirasse os olhos de cima.
O mar vem por aí às terças e às quintas,
tirando partido de uma paz frágil
e também me faz acreditar no ignorado local
que fica atrás de nenhuma porta
onde se casam a ternura e o ódio e
às vezes acontece um pouco de felicidade inesperada,
mas que sempre ali esteve e ali voltará a ficar
retida para sempre.
Que vou eu fazer
com as minhas mãos?
*
Joaquim Pessoa
in A CASA DE VERSOS,