domingo, 29 de novembro de 2015

  E escreveu , Luís Vaz de Camões em Os Lusíadas, obra publicada em 1572.

“Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.”

No rastro dos Calangos

"No rastro dos Calangos
tem sonhos
coragem
ousadia
inquietação
No rastro dos Calangos
tem história
arte e educação
No rastro dos Calangos
nossa cultura
sem fronteiras
para a imaginação
No rastro dos Calangos
tem Sumé
visionária cidade
onde tudo acontece
sem tirar o pé do chão."

(Ricardo Peixoto)

Coletivo Calangos Livres 2015 - 9ª seCas.



EU FRACTAL DE MIM

Há átimos de tempo vivido por mim,
Nos quais não sei ao certo quem sou,
Sou inteiro em alguns momentos,
E apenas partes em outros instantes.

Em lentas caminhadas evolutivas,
Vejo-me sob uma constante luz clara,
E nas rápidas fugas mundanas,
Perco-me na escura sombra projetada.

Quando estou na minha integridade,
Sei-me suficiente para não vacilar,
E se me fraciono de alguma maneira,
Sinto-me fraco por pensar-me bipolar.

Há aqueles pensamentos que passam,
E em fugacidade deixam registros,
Há presenças que perene se mantém,
E melhor seria se não deixassem marcas.

No agora fugaz que o pensei presente,
Que de pronto se postou perene passado,
Penso, ou pensei, talvez..., pensarei,
No que é, e já foi, ou talvez ainda, será.

Quando não sou tudo..., sou nada,
Mas, é justamente quando me sinto nada,
Que me percebo como tudo que me sei,
Parte integrante do todo desconhecido.

Assim o são..., o Micro e o Macro,
O Universo e dois versos do anverso,
No que é lado, côncavo e convexo,
Na Poesia o verso com quem converso.

Um desses muitos duos plurais,
Em singular sem o outro não existe,
A ilusão teimosa ao sonho seduz,
Mas a vida valorosa, a tudo subsiste.

Concluo..., contudo..., na dúvida fico,
Se sou..., inteiro..., parte..., ou sou meio,
Impar, dual, factível, verossímil ou falho,
Completo, incompleto, vazio ou repleto.

Sei que como 'Ser'..., na senda evoluo,
Que como 'Humano'..., na vida me poluo,
Sei que nada existe, entretanto, tudo acontece,
Como sei que a sombra..., não existe sem luz.


Olinto Simões - 26/11/2014

Há brechas


Poros por onde respira o mundo em nós
E ele suspira toda vez que escuta "quem?"
(a cada suspiro, cigarros são
acesos, garrafas tomadas -
antidepressivos sono e solidão
e etc, etc, etc...)
Há gênios, como, sei lá, Ovídio
Que ultrapassam essa asma
Tediosa.
Pois é essa a posologia
Para os olhos humanos:
Cagar para certas pessoas é
Em muitos casos
Voltar para a realidade

De todos.

Alexandre França

sábado, 28 de novembro de 2015



Ser autêntico exige um alto preço -- preço que pouquíssimos estão dispostos a pagar. Você pode ser linchado pela opinião pública (como Zola no caso Dreyfus), você pode ser vítima de atentado (como Sartre na Guerra da Argélia), você pode tomar cicuta (como Sócrates), você pode ser crucificado (como Jesus). Ou então você muitas vezes vai ser obrigado a andar sozinho, nadar contra a corrente, dar murro em ponta de faca... Nem todos estão dispostos, na hora do cafezinho, numa reunião familiar, numa festa de amigos, a serem vistos como estranhos, exóticos, excêntricos -- sobretudo quando não há glamour nessa excentricidade. Mas beleza, eu entendo, é mais seguro andar na mesma direção do rebanho. Só não se queixe se você for classificado naquela categoria que Fernando Pessoa chamou de "besta sadia", "cadáver adiado que procria"...

Otto Leopoldo Winck
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga

Escreve-se por excesso ou por lacuna. No primeiro caso, a vida extrapola a vida e é necessário pôr este plus no papel. A vida transborda e este transbordamento vira literatura. É o caso de Rimbaud, dos beats... No segundo, escreve-se porque "a vida só não basta", como disse Pessoa. Nesse caso, escreve-se para se criar outros mundos ou para suprir este mundo das coisas que faltam. O melhor exemplo é o próprio Pessoa. Mas todos os românticos e os simbolistas, e boa parte dos modernos, podem ser colocados aí. A vida é pouca, é insuficiente, e se escreve para preencher esta falta, este vazio. Mas tanto num caso como no outro não há coincidência entre vida e literatura. Sempre há uma assimetria, uma não-identidade. Superávit ou déficit. A literatura nasce dessa incontornável dissonância.

Otto Leopoldo Winck

Somos reféns de nossas angústias diárias

Somos reféns de nossas angústias diárias
Todos os dias morremos um pouco
Esquecemos, perdemos, desistimos
Procurando por algo que está dentro de nós
Difícil manter-se a salvo de tanta dor
E que remédio poderia curar tantas feridas
Já não acreditamos no tempo
E muito menos em nós mesmos
Sufocar sonhos se tornou uma rotina
E preferimos sempre aquela cômoda mentira
É mais quente e seguro aqui
Nos braços de nossas velhas desculpas
Devemos tantas satisfações ao mundo a nossa volta
Que mal temos tempo pra mudar de direção
É o convencional, o metódico, desviando nossa atenção
As pessoas te dizem: "Não saia do riscado"
Covardes somos e muito caro pagamos
O que sacrificamos por um pouco de aceitação
Muito mais valeria empregado em novas buscas
Algo que certamente nos traria mais motivação.

Evandro Sugahara

ESTRANHO CAIS


Estranho cais,
volto a ti
sempre que o oceano
me cansa.
Tenho por ti
estranho apego,
apesar da paixão do horizonte,
da vertigem do azul.
Na noite do mundo
foste o meu porto.
Se volto hoje a ti,
depois da alvorada,
é que não compreendi
o meu caminho
e te pergunto pela rota, pelo norte, pela luta.
Estranho cais,
de tantos ais
e vozes tantas ancestrais,
sempre que o oceano
me cansa -- e como cansa! --
eu volto a ti,
ó meu começo.

Otto Leopoldo Winck

Estive certo?


Medi limites, mudei de ares
Criei, destruí, menti, desmenti e caí
Fui a lona, levantei mais uma vez
Mas a troco de que? Em nome de quem?
Fiz por amor, por dinheiro ou por orgulho
Errei, reconheci e errei de novo
Duvidei, confiei, acreditei e perdi a fé
Mas ainda estou aqui sem saber pra onde ir
Nunca deixei de questionar
A contestação esteve sempre no meu destino
Nada saiu do lugar e ainda perdi muitos amigos
Me dê uma boa razão pra continuar
Começo a crer que estou no caminho errado
Que fiz as escolhas erradas
E que vou pagar caro, o preço é alto
Duro admitir, mas os outros que estão certos
Minhas razões já não valem nada
Visto que nunca estive certo
O correto é baixar a cabeça e ser mais um
A submissão é uma forma de felicidade
Em meio a um circo de piadas sem graça
O que me resta é rir com os demais E bater palmas pra quem me manipula do picadeiro
Pois o show tem que continuar.

Evandro Sugahara
Luiz Felipe Leprevost

o meu amigo secreto está debruçado no parapeito do abalo sísmico de si mesmo


Luiz Felipe Leprevost


o meu amigo secreto é muito estranho, ele não consegue lembrar se fugiu de uma prisão de segurança máxima privatizada (pagando por fora), ou se de uma Igreja Evangélica (trepava com pastor), ou se de uma edição do BBB (agora é dono de uma rede de hamburguesia)

SONETO

A causa imaculada do juízo
abana a golpe lento a casa toda,
acera a comichão, provoca o riso
entre as hordas da gente visigoda.

Arrebata os rebites da chateza
e recita de cor a bandeirada.
Inventa e desinventa a sobremesa
conforme o peixe serve à caldeirada.

E ruboriza a face mais amarga
se ao sentir um bafo na ilharga
reconhece o da besta que sabuja.

Do caldo ontem bom, hoje entornado,
diz quando em penitência do pecado:
"Reparem como eu bebo a água suja."

*

Joaquim Pessoa in SONETOS PERVERSOS
Luiz Felipe Leprevost


o meu amigo secreto se chama Esperança, e ele está prenhe dos pavores gelados da morte. Esperança Esperança, este serzinho menor que uma pulga

AGUDIZAR CONFLITOS



Agudizar conflitos: tal e qual.
Deste modo julgar contradições
fazendo-o de maneira não formal
e sempre tendo em conta as rejeições

do texto que se opõe ao próprio texto
naquilo em que se mostra mais preciso
e assim mais vulnerável. O pretexto
é o sujeito estar tão indeciso

que todas as palavras se revelem
um mapa de água tão polarizada
que até sinais contrários se repelem.

Em física do texto enviesada
um sábio vale o que as palavras valem
e sabe que as palavras valem nada.

*

Joaquim Pessoa in SONETOS PERVERSOS.
a resistência ao fácil:
a densidade do breve:
um dos raios de shiva
caiu de sua mão
não a velha ilusão
de ordenar o caos: não
a ditadura do sentido:
tudo é forma: e flui
essa luz antecipada
nada vê mas inventa:
o pássaro calcula
casa ar pedra semente
o estranho dom
de ampliar o vivido
nas dobras do tempo:
não caber no limite
(do barco na garrafa
alguém livre navega

além do vidro)
Carlos Moreira



o meu amigo secreto é tão incoerente quanto alguém que não gosta de azeitona mas adora azeite (é isso mesmo, produção?). ah, não exatamente... até poderia dizer dele então você prefere o efeito à causa, mas ele responderia, sagaz que só, ele responderia eu não reduziria o azeite, sangue bom da oliveira, a um mero efeito

Luiz Felipe Leprevost

NOITE BRANCA

Por detrás da fechadura existe o circo
e o lugar comum é agora a nossa cama.
Os ouvidos do mar, a trança dos incêndios, tudo ali
se move. Pressinto filigranas e anjos desajeitados
com uma presença obscura e obstinada.
Aguentar-me só é a ordem que não desejo cumprir.
Fico surpreendido esperando a manhã amendoada
vendo que em vez do sol surgem crianças,
bandos de crianças vindas de planetas distantes
que abriram as portas do céu com mãos colegiais
cheirando a sabonete e com uma alegria
cheia de coelhinhos brancos,
e olham para Rute, a minha meiga Rute,
como se quisessem trocá-la com a lua
envolvendo-a em sorrisos próximos e ágeis antes
do primeiro gesto.

Agora estou a caminho de domingo de manhã,
o único passageiro afastado da janela
desinteressado por cães e borboletas.
Toda a noite sonhei com beijos e uma tempestade,
atravessei uma ponte por cima de peixes tristes
e precisei de beber. Fiquei a olhar para mim
e a humidade caiu e abanou as árvores,
fumei longos cigarros encostado à minha porta
enrolando folhas lentas.
Cresci para as casas ameaçando entrar
para um país cheio de salas de jantar
com toalhas brancas, magnólias e
mãos, apenas mãos servindo às mesas
enquanto por corredores limpos uma dor latejava
e crescia indignada.

Em tudo o que busco,
há um pouco de mim e uma claridade
sem resposta. Ando
à procura de Deus
sob as pedras
nas praias
nos cartazes de propaganda
nos restos de conversa
nos filmes de espiões
nos restaurantes
nos becos
nos livros
nos amigos
nas prateleiras
nas latas de feijão
nos beijos
na luta de classes
na imprensa
nos olhos acocorados de alguns empregados
de escritório,
nas fábricas
nos frutos,
não sabendo o que fazer das mãos
que apresentam ainda cintilações de uma noite branca
onde as dúvidas poisam
como corvos.

Não sei se o que me basta
me basta. É preciso ir até ao fundo.
Pela minha relação comigo passam todos os outros: eu
não abaterei nunca uma árvore com um verso
não farei nunca um pão de uma metáfora
não retirarei carvão da minha escrita
não pescarei nenhum atum com a caneta.
Sei a cor das cerejas, é verdade,
e faço um poema louco cheio de cerejeiras
no cimo das quais posso colocar um bando de melros
e matar os melros todos com dois tiros
ou com um simples risco sobre o verso
onde eu os tinha poisado.

Por vezes sinto que tenho frio e acredito nas coisas
pela maneira prolongada de as olhar.
A surpresa trago-a nos dentes e tem o sabor
de uma carne rosa. Detesto a minha culpa. E vejo-a
como se nunca lhe tirasse os olhos de cima.
O mar vem por aí às terças e às quintas,
tirando partido de uma paz frágil
e também me faz acreditar no ignorado local
que fica atrás de nenhuma porta
onde se casam a ternura e o ódio e
às vezes acontece um pouco de felicidade inesperada,
mas que sempre ali esteve e ali voltará a ficar
retida para sempre.

Que vou eu fazer
com as minhas mãos?

*
 Joaquim Pessoa

in A CASA DE VERSOS,
William Teca


quando eu fazia lá os créditos de meu mestrado, tive um grande amigo, o olavo, que é angolano, que só tinha duas grandes peculiaridades: ele gostava de tomar conhaque às sete da manhã, e apanhava da mulher (porque bebia conhaque às sete da manhã), graças ao olavo, conheci um povão africano que veio estudar por aqui - tudo gente boníssima (mas bebiam pacas e era sempre melhor estar à frente deles, na fila do r.u., pois se eles chegassem antes, era perda total). minha família é de imigrantes (meu avô veio da sicília, caiu em minas e depois veio cá para o norte do estado). creio, que assim como eu, boa parte das pessoas que conheço, tem um pezinho na senzala ou na imigração. vi, à pouco, uma postagem a respeito de um haitiano que foi segregado no ônibus, o que me deixou envergonhado desta porra de cidade. e, quanto a mim, que nasci aqui, mas dou bom dia, creio que quanto mais miscigenação, melhor.
--Preciso falar com você!
--Fala amorzinho!
--Então, estava limpando seu carro e encontrei um envelope de preservativo embaixo do banco. o que significa isso?
--Significa que não se pode ser generoso, o Gustavo na hora do almoço me pediu o carro emprestado alegando que sua mãe estava doente e precisava leva-la ao medico, Patife!! O envelope estava aberto?
--Estava sim, amor. Mas não fique nervoso.
--Mas como não poderia ficar, isso é foda!! Agora vou mandar o carro pra lavar, sei lá o que esse abusado andou fazendo nele.
--Calma , amor! Não fique assim, tire a camisa que vou fazer uma massagem pra relaxar.
--Está bem.
--Amor que arranhão é esse no seu ombro?
--Não te falei, a gata da vizinha entrou no nosso forro, fui tira-la e não é que peguei nas patas traseiras, com as dianteiras ela me arranhou, não gosto desse bicho, amor.
--Nossa, ficou feio, vou passar uma pomada , senão pode inflamar, você tem outro aranhão nas costas.
--Esse nem vi quando ela fez, esse bicho é arisco mesmo, morzinho. Qualquer hora vou levar essa gata e deixa-la num bairro bem longe daqui.
--Temos que ver por onde ela esta entrando no nosso forro, morzinho.
--Sim, vou chamar alguém pra consertar isso.
--Amor, o que é isso no seu pescoço. parece um..
--Uma picada, amor. Abri a janela do carro indo pro escritório, não sei que diabo de inseto era aquele que entrou, pensei até que fosse uma abelha me ferrando, fiquei com o pescoço dolorido todo o dia, mas nem falei nada para não te preocupar.
--Está inchado demais, vou pesquisar na internet me falaram que gelo é bom, pera amor.
--Sim, amada.
--O que é isso seu safado, canalha! Quem é essa mulher que curtiu sua foto do perfil no face, nunca vi ela antes, e tem cara de quem está procurando um homem, diga lá! Não acredito você compartilhou uma publicação dela!!!!
--Calma, amor, nem conheço a figura, na verdade nem sei de quem esta falando, se for uma de cabelos loiros, pinta no canto dos lábios, parece que é uma conhecida de um conhecido do meu cliente, não lembro, e o que compartilhei foi uma boa causa, publicação de proteção aos gatinhos abandonados, amor. Não chore!
-- Então, você tira essa foto do perfil e coloca uma nossa.

--É claro, meu amor, vou colocar uma que estamos nos beijando! JD

43)


Declamo esses jardins que brotam em
minha boca sob a pele ancestral.Esses
palácios de mortos insurrectos, com
suas flores de éter. Sou do barro onde
crescem as vinhas para a utopia sem
dor. Vim cardando estes relâmpagos
de acender palavras, ante a nudez das
estações; vim cortando a memória aos
pedaços para servi-la aos famintos.
De longe ouvi as matracas e os tambores
ávidos. E era em minha carne que
tocavam. Na gramática da promessa,
só os desejos não dormem.

SALGADO MARANHÃO
William Teca


acordar é sempre uma experiência traumática - sobretudo, nos fins de semana, sobretudo para trabalhar (aliás, outra experiência traumática); me sinto saindo do útero. feliz é o bebê da vizinha que intercala momentos de sono o choradeira, entre mamadas e evacuações. como eu era feliz na infância. agora, minha vã esperança é ficar velho, de vez, para poder dormir e ser admirado pela minha sabedoria e paciência.

PAPO VIRTUAL


(de Gustavo Magno)

Palavras, sonhos, pensamentos.
Cada cabeça é um um mundo, um universo, sem saber decifrar tanto mistério,
entender tanto caminho.
Em naves, em nuvens, sementes germinam.
Em novas mentes, sentimentos falam,
tentando decifrar tanto mistério,
tentando entender tanto caminho.
Querendo saber um pouco mais sobre nós mesmos.
Conhecer um pouco mais os nossos nós.
Encontrar a exata solução pela linha telefônica.
Abrir o que é real - o coração - num bate-papo virtual.
Descobrir o mundo, fazer contato, encontrar novo canal.
Completamente marciano, marginal,
ET exposto aos códigos do mundo,
continuo um poptrovador
vivendo a ilusão dos filmes de paixão.
Continuo um poeta sonhador
vivendo o clima dos filmes de terror.
Sou estrangeiro lá e cá,
vivo entre o sonho e o destino.
A TV diz ter tudo a ver comigo.
Não vejo meu rosto refletido na tela.
Pela janela, quero ver uma estação espacial.
Coisa do século XXX é minha comunicação com as estrelas.
Coisa de outro planeta.
Um contato imediato e natural.
Querendo saber um pouco mais sobre nós mesmos.
Conhecer um pouco mais os nossos nós.
Encontrar a palavra mais certa nas páginas de um velho dicionário.
Abrir o que é real - o coração - dizendo uma frase original.

Descobrir o mundo, fazer contato, encontrar novo canal.

PAPILLON

Daniela Vieira 

Leva em tua alma
Meu pequeno poema.

Das essências que saem
de meu incenso, lágrimas
escorrem de minha face.

Ergo meus olhos ao infinito
e chego a delirar de tristeza.

Te roubaram o fôlelgo.
Me roubaram tua voz
Mas deixaram tua lembrança.

Deste poema tão extremo
Da pena que não sabe o que fazer.

Transcrevo minha dor dilacerante

Em nome de teus olhos fechados.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

poeta:
luta
matuta
labuta
que a arte é longa
e a vida curta


Otto Leopoldo Winck

Aparição de Rimbaud na Oficina

Não foi sobre a nuvem
que o anjo apareceu, nu
seu busto, jasmim e maçã
curvado sobre a máquina
e a tinta da noite
tingia seus dedos
Dentro dos olhos uma borboleta
Rio de luar desciam os cabelos
Desde a aparição, que temo
e procuro
perdi-me da terra, anseio
nebuloso acorre-me
a cada instante, vivo
de pressentimentos
Porém longe do espaço
o anjo tem o céu na terra
e me sorri calado
entre sonho e carne

entre a tinta e o ferro

Glauco Flores de Sá Brito
de todas
as estrelas do céu
a que eu queria te dar
é aquela que caiu ontem
e ninguém viu
de todas
as conchas do mar
a que eu queria te dar
é aquela que ontem à noite
recolheu minhas lágrimas
e ninguém soube
o poema
que eu queria de dar
é o que eu escrevi na areia
e o apagaram as ondas
(as melhores dádivas
são sempre aquelas
que
nunca
são dadas)


Otto Leopoldo Winck

Um pedaço de bolo


Na padaria do português Carlos, havia, além dos pães, doces e bolos maravilhosos. Minha pequena filha se deliciava com os pedaços de bolos de abacaxi. Apesar de ser cliente da padaria, nunca tive nenhuma conversa com o Carlos além dos pedidos que fazia. O padeiro me parecia uma pessoa desinteressada em fazer amizades. Devo reconhecer que se sua cara não era boa, sua mão era divina.
Mas minha menina parou de saborear aquelas delícias. Não que houvesse enjoado, o motivo foi outro. Eu passava por dificuldades financeiras, havia dois anos que estava desempregado. Vivia de bicos. O que ganhava era o suficiente para vivermos, porém, não o bastante para adoçar a boca da minha querida filhinha com aquelas guloseimas da padaria.
Em uma manhã, quando eu juntava moedas para comprar cinco pãezinhos e um leite, minha filha pediu para ir junto à padaria. Eu falei:
— Queridinha do papai, não adianta ir. Papai não tem dinheiro para comprar nenhum doce, não vai sobrar nem para uma balinha.
Como sempre, fazendo-se de compreensiva, ela falou:
— Fique tranquilo, papai, não vou pedir nada, nem mesmo aquele bolo de abacaxi que eu adoro. No tempo em que o papai trabalhava, comi tanto que até enjoei.
Mentira dela! Mas acabei convencido de levá-la comigo, não porque ela havia enjoado dos doces, mas porque ela não desistiria enquanto não fosse comigo.
Ela entrou na padaria olhando para cima, despistando os olhinhos. Pedi os pães e o leite. Tranquilizei-me ao ver que na vitrine não tinha o bolo de abacaxi de que ela tanto gostava. Deveria já ter acabado. Juntei as moedas e paguei. Faltaram alguns centavos, pois o pão havia aumentado de preço. O padeiro, sempre sisudo, deixou passar. Ao pegar os pacotes e virar para sair, vi minha menina estática, não mais olhava para o teto, estava imóvel olhando para o pomposo bolo. Parecia até que os morangos do bolo também olhavam para ela. Chamei-a:
— Vamos, filha, vamos.
Ela não me ouviu, continuava petrificada. Agora não eram só os olhos a denunciá-la, mas também sua postura. Inclinava-se para frente e sua língua tentava umedecer os lábios secos com a saliva insossa.
Observei o padeiro, que de soslaio também olhava a minha menina. Meus olhos se voltaram para um cartaz, que tinha as escritas cuidadosamente desenhadas: “Cá neste estabelecimento não vendemos fiado. Por favore, não insista”. O português continuava a atender sua clientela. Pensei: “A falta de sensibilidade não permite que certas pessoas ouçam o pedido silencioso de uma criança”. Voltei meus olhos para minha filha e fiquei olhando para o bolo também, imaginando um generoso pedaço na mesa de casa, servido para o café. Ela recobrou a consciência e me flagrou olhando o bolo.
— Vamos, papai, vamos — disse, puxando-me.
Peguei-a pelos braços carinhosamente. O padeiro nada falou.
Saí dali com a garganta embargada. No caminho de casa, tentei disfarçar as lágrimas que não pude evitar. Antes que chegássemos à nossa casa, ela ainda me perguntou:
— O papai tava com vontade de comer um pedaço de bolo? Não fique assim. Se o senhor não arrumar trabalho, logo eu cresço e começo a trabalhar, e daí eu vou comprar um pedaço inteiro só pro papai.
Já em casa, preparei um pão recheado de açúcar e dei à menina. Marcinha comeu-o de olhos fechados, talvez imaginando... Com os lábios crispados de açúcar, ela exclamou:
— Papai, esse pão tá tão gostoso, até parece com o gosto do bolo da padaria! Experimente.
Meu coração partiu mais ainda com aquelas doces palavras. Antes ela batesse os pés fazendo birra. Ao beijá-la, percebi que sua face estava pálida e seus olhos foscos. Passadas algumas horas, já era tarde da noite, ouvi o bater à porta. Atendi com estranheza. Pros-trado em minha porta, vi o português Carlos, com dois embrulhos, um em cada braço.
Sisudo, mas carinhoso, ele me entregou os volumes. Não era um pedaço nem dois pedaços de bolo, eram dois bolos inteiros: um de abacaxi, outro de morango. Tentei lhe falar, mas não tive palavras. Ele, com certeza, ouviu meu silencioso agradecimento. A minha me-nina teve seu rosto repentinamente corado, e seus olhos com um novo bri-lho. Seu Carlos se foi, fiquei a olhá-lo. Virou-se e percebi um maravilhoso pequeno sorriso de canto de lábios.
Ficamos amigos. Tão logo minha situação melhorou, procurei pagá-lo. Foi aí que ele me disse: “Cá neste estabelecimento, não vendo fiado. Por favore, não insista”.


JDamasio


 Oração de um quase descrente. 2009
Meu jovem, você quer mesmo ser escritor? Ou quer só likes nas redes? Porque são duas coisas bem diferentes, essas duas... Ser escritor (não no sentido de escrivão, redator, digitador de mensagens meigas), mas no sentido daquele que assume o seu papel como uma missão sagrada, uma vocação profética, ser o porta-voz de um deus morto e no entanto belo e terrível, ser escritor nesse sentido é fugir das luzes das vitrines, buscar as sombras mais doentias, andar nas vielas mais sórdidas de uma existência obscura, desprezar o senso comum dos jantares familiares, odiar a mediania da classe média branca, escalavrar a carne da própria angústia e ter a lúcida clareza de que tudo isso é em vão. Você quer mesmo ser um escritor assim? Está disposto a pagar o preço? Sabe que ser um escritor desse naipe exige renúncias? E a maior renúncia não é nem mesmo a da felicidade? Então prepara-te para o escárnio, a cruz, o patíbulo, a solidão, a incompreensão, a via dolorosa da maldição em vida... Pois depois de Baudelaire já não é possível poetas sorridentes. O Ocidente está podre e desta podridão não podem brotar senão flores do mal.


Otto Leopoldo Winck
de alguma forma
morrer um dia:
de luta armada
de mulher
ou de poesia."

RR

Falar sobre arte é uma coisinha complicada; por mais que você estude e aprenda a argumentar - arte tem a ver, justamente, com o antiargumento - se você for ler bachelard, verá que beira o alan kardec - porque no íntimo lugar do sagrado, é onde a arte habita. não estou falando de trabalhos acadêmicos, isso é relativamente fácil - sobretudo na minha área (ou não área) que é a literatura (nesse campinho, o benedito nunes defendeu um futebol impecável, só pra citar um grande mestre); falo da vida - donde se raciocina a arte, mas não se a racionaliza (como me ensinou, outro grande mestre, paulo venturelli). e fazer a ponte entre hendrix e van gogh, meu velho, é foda. cá perdido entre meus labirintos epistemológicos, fico pensando que a escola foi uma grande vilã, nessa história toda - todo bom professor (para ser competente) carrega um lastro de mediocridade - os meus foram pífios (exceto na universidade, o que me lembra que se eu ensinasse gramática gerativa pra guris do ensino médio, seria mais legal para a análise da sintaxe), e as palavras de leminski ganham um sentido maior: artista é o sapato torto, e com tal sofreguidão me levanto retilíneo, para fazer alguma coisa direita nesta minha vida.

William Teca

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Se Você não Achou a Metade da Laranja, Existe Crush



Tem pessoas que vivem atrás
De um romance para trazer paz!
Da sua laranja, querem a metade
Em busca da sonhada felicidade!

Mas, às vezes, a alma apaixonada
Faz papel de idiota, boba e otária
Quando a paixão não vale nada
Vira laranja de conta bancária
Quanto a gata é estelionatária

Quando a laranja fica difícil de encontrar
Porque mais parece uma estrela distante,
Sem pensar em álcool, vá correndo para um bar
Escolher um substituto refrigerante

Pegue um Crush, que é uma bebida
Feita de laranja, sem o bagaço
Ela é uma paixão calada e escondida
Um amor platônico sem estilhaço

Cada garrafa tem sua tampa
Crush é mais antigo que Fanta
É difícil o vidro cair e quebrar
Um amor em silêncio desafia o ar.

Luciana do Rocio Mallon

O Preconceito Contra Repentistas Mulheres


Meu nome é Luciana do Rocio Mallon, resido em Curitiba e sou repentista, que é o poeta que faz versos de improviso com as palavras que as pessoas pedem na hora.
Descobri este dom, já no jardim da infância, numa brincadeira em que um aluno dizia uma palavra e outra criança deveria fazer um verso com este tema. Eu usava este jogo somente em círculos de amigos. Mas, em 2003, passei a frequentar saraus e eventos onde eu mostrava esta minha habilidade. Porém numa apresentação de repentes, um senhor de idade exclamou:
- Repentista mulher?!
- Como pode uma coisa destas?!
- O repente não admite meninas e elas não foram feitas para isto. Pois moças devem contar historinhas para as crianças e não fazer poemas de improviso.
Naquele instante resolvi ignorar aquele senhor. Depois fui às bibliotecas, à Internet e fiz entrevistas com professores para pesquisar a origem do repente. Logo, descobri que este jogo de fazer poemas com as palavras na hora, tem origem nas mulheres da Grécia. Naquela época, as moças gregas ficavam num lugar chamado Gineceu que era um espaço exclusivo para as mulheres. Lá elas exerciam várias atividades, compartilhavam conhecimentos e brincadeiras, um destes jogos era fazer versos com a palavra que outra moça pedia já que, naquela época, uma mulher além das prendas domésticas deveria saber Poesia e Música. Quando elas recebiam visitas de estrangeiras costumavam passar esta cultura para estas outras amigas. Assim a arte do repente foi se espalhando pelo mundo. Como a sociedade grega era muito rígida e preconceituosa, as mulheres viram a suas poesias, criadas no Gineceu, como um método de libertação.
Portanto, o repente, foi criado por mulheres e nada mais justo do que haver moças que exerçam este tipo de Arte, nos dias de hoje.
Quanto ao preconceito de ser uma repentista mulher, ás vezes, enfrento esta situação até hoje. Mas procuro esclarecer as pessoas de que Literatura e Poesia não tem sexo, pois a Arte é universal. O interessante é que através de pesquisas, descobri uma repentista do sexo feminino, de Portugal, da região do Alentejo, seu nome é Maia Rosa Madalena. Porém, não consegui mais informações sobre ela. Já, com relação ao Nordeste do Brasil, encontrei nomes como Maria Soledade, Mocinha da Passira, que também é bailarina folclórica, Zefinha do Chambocão e Minervina Ferreira. Porém acredito que o número de moças que exercem o repente seja bem maior. Espero que elas se manifestem cada vez mais porque só desta maneira é possível acabar com o preconceito. 

Luciana do Rocio Mallon

Lenda do Fantasma da Foto Fake


Paulo era um jovem bonito, porém muito tímido. Por isto, ele apenas namorava através da Internet. Ele gostava de entrar em comunidades digitais virtuais atrás de fotos de mulheres sensuais. Mas apesar de ter mais de 2000 pessoas do sexo feminino no seu perfil, este rapaz se sentia sozinho porque apenas três mulheres bem mais velhas falavam com ele pelo computador.
Um dia, lendo mensagens num grupo virtual machista, este homem viu a dica de que uma das melhores táticas para conquistar meninas no mundo cibernético era criar um perfil fake feminino fingindo ser lésbica.
Paulo, não perdeu tempo, criou uma personagem chamada Rosa Violeta e procurou no Google a foto de uma moça loira. Assim ele foi adicionando mulheres, mas vários homens queriam falar com sua nova personagem. O interessante é que Paulo passou a ser paquerado, na vida real, logo depois que inventou esta personagem falsa na rede social. Tudo estava bem até que uma garota com um perfil misterioso, chamada Branca Esmeralda, solicitou amizade cibernética com Paulo. Conversa vai e papo vem, ele notou que seus gostam combinavam. Até que o jovem pediu para que a moça se mostrasse na CAN, porém ela só aparecia do pescoço para baixo.
Num feriado, seus pais resolveu viajar para o sítio no interior e Paulo permaneceu para cuidar dos negócios da família on-line. Mas como a procura estava baixa, ele passou o feriado inteiro falando com a namorada virtual. Então ela deu o seu endereço real para que ele fosse visita-la. Quando Paulo chegou ao local, uma senhora atendeu e o rapaz perguntou-lhe:
- A Branca Esmeralda, está?                                                   
A idosa respondeu:
- Esta menina viajou.
O moço indagou:
- Viajou para onde?
A anciã respondeu:
- Para o céu!
O homem disse:
- Uma cidade chamada Céu?
A velha explicou:
- Para o Céu mesmo. Pois, ela morreu num acidente de trânsito junto com os pais há cinco anos.
- Aliás, quer ver uma foto dela para tirar esta cisma?
Deste jeito, a idosa foi para a cozinha e voltou com uma foto.
O moço olhou assustado e gritou:
- Mas, esta é a foto do meu perfil fake!
A anciã explicou:
- Não entendo destas coisas de Internet. Apenas sei que minha neta morreu com meu filho e minha nora num acidente, numa estrada, neste mesmo feriado. A coitadinha nem tinha namorado. Éramos apenas nós nesta família.
Paulo saiu correndo, entrou em sua casa e foi direito para o computador tentar contato com Branca Esmeralda. De repente, ele sentiu um calafrio atrás e quando se virou viu sua namorada virtual que comentou:
- Este é o destino dos homens que usam fotos fakes, de mulheres que já morreram, na Internet. Porém o problema foi que me apaixonei por você.
- Por favor, me dê a sua mão que eu levarei você para um lugar muito bonito...
Quando os pais de Paulo chegaram, o jovem estava morto na frente do computador. Mas havia um perfil de casal com a foto deste homem com uma garota na tela. O nome do perfil era: Paulo e Branca - Amor Além da Morte Graças a uma Foto Fake.

Luciana do Rocio Mallon
Pelos becos da vida , a sombra que me assusta, não é a minha. JD

--Vô, vamô joga videogame?
--Não! Estou ocupado.
--Poxa, vôzinho !
--Não seja teimoso, vai conversar com sua vó, menino!
--O que tá fazendo?

--Duas pipas pra gente soltar parque no final da tarde. Vai, vai lá despistar a velha, tenho que pegar dois carreteis de fios da maquina dela! JD

--Você é um louco!
--Não grite, louco é você. Eu sou artista!
--Também sou artista. Você é que está gritando!
--Eu? Nem falei nada, estava só pensando.
--Desculpe, eu escutei seu pensamento alto demais. O que estava pensando mesmo?
--Tudo bem, está desculpado. Na verdade não pensava, brigava com meus amiguinhos.
--Está louco, mesmo. Não se pode brigar com amiguinhos imaginários, eu brigo só com meus inimigos imaginários.
--Rapazes, inspirados? Hora de voltar para o atelier e tomar os remedinhos!

JD



Não há nada mais raso que o homem bem-sucedido. Ele tem dinheiro, ele tem um Camaro na garagem, ele tem fotos de Istambul, Katar e Orlando no seu Facebook. Ele só não tem profundidade. Quando abre a boca só sai vantagens. Pois pra ele a vida se resume a acumular milhas, mulheres e vantagens. Ele nada sabe dos lobos que uivam. Ele nada sabe da solidão das estrelas. Ele nada sabe dos mistérios da vida. Pra ele a vida é só epiderme. Só aquilo que pode ser fotografado e postado. Só aquilo que pode ser acumulado e contabilizado. Não, não há nada mais raso que o homem bem sucedido. Comparável a ele só mesmo a mulher do homem bem-sucedido

Otto Leopoldo Winck

zero a zero


UMA LINHA FECHA-SE EM TORNO DO VAZIO,
perdi-me de ti, deixei que me deixasses,
NA MATEMÁTICA CHAMAM-NA CÍRCULO,
parti, voltei, tornei a partir, amei outros, fiz-me outra
A CIRCULARIDADE PARECE-NOS INFINITA
e outra e outra, sempre mudando a cor dos cabelos e as expectativas
SE A LINHA GIRA CONSTANTE AO REDOR DE SI.
e voltando, cão correndo atrás do rabo, como dizem por aí.
AO VAZIO CONFINADO À CIRCUNFERÊNCIA
presa de mim, presa ao teu cheiro de notas cítricas, e ao teu rosto
PODEMOS IMAGINAR O NADA EM IMANÊNCIA,
nesta fotografia que pendurei atrás da porta do banheiro
UM OVO CEGO, O ZERO-MUNDO, A GRANDE DISTÂNCIA
como um ícone ao qual presto culto lambendo os batentes
ENTRE O RISCO E A LETRA, A LINHA E O AR
entrego os pontos (não é uma linha feita de pontos?)
e peço: deixe-me respirar, quero ar, quero ar.


Rosa Ramos.

Quando me olho no espelho

Quando me olho no espelho
Aconselho-me...
Investigo sem disfarce
Uma rusga de apreensão
Uma ruga... Um sulco...
Esculpindo minha face
Às vezes olhos brilhantes
Outras vezes, lágrimas no semblante
Lavo o rosto
Um novo dia
Tira todo o desgosto
E apostos
Espero por novidades
Coloridas...
Bem vindas
Um beijo...
Um desejo...
Um encontro...
Mistérios...
Mescla de sensações
E quando volto para o espelho
A água lava o dia
No meu rosto...
Mais uma indefectível marca
Mais uma experiência
Somatória de vivências
Que mapeiam minha trajetória
Cada travessia... Cada história
Digitalizando o expressar
Margeando minha alma...
Um rosto em milhões de rostos compostos
Incrivelmente único. Incrivelmente impar...
Nada pode se comparar...
Nesse mar de rostos...
Que se prepara para mais um dia começar...

Carmen Cecília

carrego em mim um amor que não vingou

carrego em mim um amor que não vingou
toda noite o meu corpo dormia ao seu lado
mas a alma sentava ao pé da cama
ouvia todos os dias de um sujeito estranho
que me ama e não me engana
(de fato, não engana)
mas em mim vivia aquele amor que não vingou
feito semente que não transforma em flor
feito pele lisa de um sujeito totalmente exposto
quando tudo o que é está fora, além do corpo
há aquele mal dito amor que não vingou
cantarolo Chico no meu quarto
sinto cheiros lá naquele instante da estante
de uma pele fascinante que meu nariz nunca ousou tocar
deve ser esse amor que não vingou
que impede o novo amor de vingar
não há ódio, nem rancor
é apenas um sujeito que passou
mas não teve tempo de sentar
nem me sentir
a vida corre ligeira, né?
ser redundante já faz parte dos meus dias
coleciono xícaras quentes de pessoas frias
que embranquecem os dentes mas deixam a alma suja
ah, isso nem faz diferença
amar deve ser psicológico
vou fingir que nem Pessoa finge dor
fingir amor deve ser melhor que estar no ócio
vi que está tão fácil ter amor
é até anúncio, negócio
mas não tenho sorte
sou demente
pra virar insolvente
prefiro não me aventurar.

Luana Dias
ser poeta
é usar a palavra
como flecha
:
que abre o corpo
ou fecha.


Luana Dias

CANÇÃO DOS SINOS DO BATISMO RICHEPIN!


"Que monotonia
Contar toda a noite
As horas,
As horas!"
Filisteus, tendeiros
Que agradais as vossas
mulheres,
mulheres,
Ideando os filhos
Que os amores delas
Engendram,
Engendram,
Sonhais que eles todos
Hão de ser na vida
Doutores,
Doutores,
E eles -- que ironia! --
saem "Cabeleiras",
Poetas,
Poetas.
Pois do estrume sempre
nascem, neste mundo,
As rosas,
As rosas.
Martins Fontes

Haicai 788


as marcas do tempo-
saudade em tons de azul
nos lambrequins antigos
Van Zimerman




Parei de escrever continhos realistas, não quero ser porta voz das mazelas da sociedade, não ouvirei mais os choros dos que sofrem . Minha escrita não é um grito de socorro! Tirarei os dois pés do chão para fantasiar. Vou escrever poesias para ecoar os ruídos da natureza , mas agora terei que juntar o lixo espalhado na frente da minha casa. O bagunceiro não foi um vira-lata faminto atrás de sobras, mas um amigo de infância que juntava latinhas. Droga!

 JD

ABCESSO


Meu coração, coitado,
guardei-o com tanto esmero.
Cuidei que não pegasse friagem,
se alimentasse bem,
voltasse cedo pra casa...
Não adiantou:
foi ele te ver,
desbordou, estourou, incendiou
as nuvens todas do crepúsculo.
Arrasto agora pelas ruas da cidade
este gigantesco abcesso, meu estigma, meu prodígio:
um coração que já não cabe em parte alguma.

Otto Leopoldo Winck



Sartre dizia que a vida não tem sentido, é você que dá um sentido a vida. Wittgenstein, por sua vez, dizia que, se a vida tem sentido, este sentido está fora da vida, senão ele não é sentido, é problema. Já Leminski, sempre original, afirmou certa vez que se recusava a viver numa vida sem sentido... Se você lembrar que sentido também significa 'direção', talvez você se livre um pouco do peso metafísico dessa palavra. O sentido da vida vira então 'a direção da vida'. Mas quando a vida não tem direção? Ou quando cada dia você está indo para um lugar diferente? Talvez o sentido aí seja exatamente a falta de direção. Ou o não-sentido. Mas vai que de repente o único sentido da vida seja procurar o sentido da vida. E se não achar? Pelo menos aí você já atravessou a vida inteira com um sentido, ou seja, procurando o sentido que não existe. Mas existiu a procura. Então aí está o sentido. A procura. Pra mim literatura é isso: procura. Você põe umas rimas, um ritmo, engendra um enredo, cria personagens, mas no fundo literatura é escrever sobre a procura, a procura da procura... O resto é perfumaria

Otto Leopoldo Winck
.

beat the way


cair da cama
cair na estrada
cair em si
é muita queda
pra uma vida só
Otto Leopoldo Winck

Alteridade


Quando esbarro com um bêbado na calçada , imagino que meu pai poderia ter sido aquele homem, caso ele tivesse sido levado pelo vicio da bebida, perdido o emprego a casa onde morava e a razão. Quando vejo uma mendiga com feridas pelo corpo, pedindo dinheiro, penso que minha mãe poderia estar no lugar dela, caso tivesse ficado doente e tivesse um marido bêbado, sem emprego, sem casa e sem razão. Ao encontrar uma menina na rua se prostituindo, imagino que poderia ter sido minha irmã, se ela não tivesse educação por ter um pai bêbado, sem emprego sem casa e sem razão e uma mãe doente sem cuidados. Quando encontro um usuário de drogas vagando pelas ruas, logo penso que poderia ser o meu irmão, caso não tivesse tido educação por ter um pai bêbado, sem emprego, sem casa e sem razão, uma mãe mendiga e doente sem cuidados, uma irmã se prostituindo pelas ruas sem educação, teria ele encontrado nas drogas sua fuga da realidade. Ao abrir o jornal e ver a foto de um jovem morto, depois de uma tentativa de assalto, vejo-me no chão ensanguentado, seria aquele menino morto, caso não tivesse educação, e ido buscar na bandidagem a compensação para a minha indignação, por ter tido um pai bêbado, sem emprego, sem casa e sem razão, uma mãe doente sem cuidados, uma irmã se vendendo por falta de opção, um irmão se drogando por resta-lhe apenas a ilusão.

Rascunho JDamasio

beatriz


● cordeiro de deus q tira o clitoris do mundo ●
● vai te fuder mundurucu vai te lascar infeliz ●
● isso ela grita correndo nua pela praça ●
● corre sempre assim gritando e nua a nossa ●
● boa e bela e vasta viuva dona beatriz ●
● não ha ninguem tão boa tão bela e tão vasta ●
● como a nossa querida dona beatriz ●
● mas de vez em quando enlouquece e corre ●
● assim toda nua toda vasta toda bela e boa ●
● doida pela praça como vaca desmiolada ●
● vaca q perdeu o rumo o caminho do curral ●
● berrando pra todo mundo ouvir e saber ●
● cordeiro de deus q tira o clitoris do mundo ●
● vai te fuder mundurucu vai te lascar infeliz ●
● isso tudo sem perder sua estranha graça ●
● mas nem todos gostam de dona beatriz ●
● mesmo sabendo tudo q ela passou e passa ●
● depois da morte do marido e dos filhos ●
● muitos de nos desconfia q não é so isso ●
● o q faz dona beatriz sair gritando ●
● como doida nua e violenta pela praça ●
● o q sabemos é q vive correndo nua gritando ●
● cordeiro de deus q tira o clitoris do mundo ●

● vai te fuder mundurucu vai te lascar infeliz ●

Alberto Lins Caldas

nanny


● nossa nanny tem uma cabeça imensa ●
● cabeção q parece um barril e nos olha ●
● como um farol sempre tristonho ●
● somos no quarto 25 filhos de ninguem ●
● todos nos não paramos de rir e brincar ●
● todos nos vivemos mijados e merdosos ●
● nossa nanny não consegue se curvar ●
● com certeza porisso tamos tão porcos ●
● com essas camisolas de linho borrado ●
● quase todos nos nos seus velocipedes ●
● cada um com sua cadeirinha de madeira ●
● cada um com sua caminha de ferro leve ●
● 5 ou 6 com seus cavalinhos de pelucia ●
● 7 ou 8 com seus travesseiros de boa lã ●
● 10 ou 12 vivem com fome e roem e roem ●
● nossa nanny não tem mais tempo nenhum ●
● nossa nanny ta quase sempre dançando ●
● como se fosse uma velha tartaruga doida ●
● mas essa vida tem seus confortos e belezas ●
● como por exemplo das janelas vemos o lago ●
● no lago os barcos nos barcos os marinheiros ●
● pois quase todos esses marinheiros bebem ●
● desesperadamente suas cachaças de milho ●
● depois é como se alguem talvez nossa nanny ●
● sabendo do bom vicio q arrebata marinheiros ●
● traz cada um deles pra viver aqui entre nos ●
● nesse quarto q cresce assim como um bicho ●
● onde os marinheiros terminam suas vidas ●
● porq tem havido muitas brigas entre nos ●
● cada vez mais violentas onde nossa nanny ●
● tem saido muito ferida como se ela fosse ●
● não apenas nossa nanny mas o velho capitão ●
● do navio q vemos todo dia aqui da janela ●
● qualquer hora dessas perdemos a razão ●
● de viver com nossa nanny o belo prazer ●
● de degustar essa preciosa preguiça ●
 Alberto Lins Caldas

meadong


● durante 69 dias e noites [nem 1 segundo a mais] ●
● como se fosse 2000 e 72 horas sem sair de cima ●
● olhando sempre as fumarolas rubras ou azuis ●
● 1 segundo [q é o mesmo q dizer universo] era ●
● como um burro carregado de tijolos e pedras ●
● urrando ao ver uma egua no cio [?o desejo] ●
● o sol la fora [esse porra acostumado a queimar ●
● miolos] porisso o costume bem salutar de todos ●
● se esconderem [na volta do rio entre as arvores] ●
● cercados de porcos é q tive muito doente [minto] ●
● quase perdia essa perna esse braço e os olhos ●
● aqui ele fez uma careta de asco [!aquele porra] ●
● depois a mulher dele enquanto ele olhava [o rio] ●
● meteu a mão molhada dentro da minha calça ●
● sempre rindo quase cantando a tosca e nua ●
● porq iam tomar banho [na volta do rio os porcos] ●
● foi dessa maneira q provei pela primeira vez ●
● o meadong na lingua da mulher do porqueiro ●
● no momento olhava pro marido [isso é salutar] ●
● admirando o rio os porcos comendo bagos verdes ●
● [é possivel q ele e os porcos comessem fumier] ●
● o qeu sei de verdade é q a mão da porqueira ●
● não saia de dentro da minha calça [!sim o gozo] ●
● isso tudo ali na volta do rio [!o sol o sol !o sol ●
● entre os porcos e o marido] depois ela levou ●
● cada um dos dedos a boca e lambeu [!sim o gozo] ●
● com aquele cheiro de meadong invadindo a vida ●
● é como envelhecer as brasas com madeira verde ●
● dizia sempre o porqueiro como se cantasse ●
● [entre os porcos na volta do rio entre os porcos] ●
● enquanto a vida ia entre os dedos e o meadong ●
● entre o fumier e as fumarolas azuis e rubras ●
● como se fosse 2000 e 72 horas sem sair de cima ●
● dessa maneira durante 69 dias e noites [exatos] ●
● provei o bom meadong moscado [na volta do rio ●
● entre as arvores] e todos eles devorando fumier ●

*

AlbertoLins Caldas

eu sigo puto.
reajo em fogo:
viver é bruto."

RR

Estou pensando aqui, numa coisa bem inteligente, numa coisa bem interessante, mas me foge. queria falar da iminente guerra (que não haverá, e eu não poderei ser o soldado desconhecido), penso também nas mulheres que apanham de homens idiotas, penso nos homossexuais que apanham tanto quanto e muitas vezes se calam, penso cá que, em minha recente leitura da bíblia (sim, mas também leio o "corão", a "torá" e o "gitá" - e buda é foda), descobri umas claras incompatibilidades entre a palavra e esses cabras do neoprotestantismo - também andei relendo marx e, faça o favor, esse bando de cabeças de bagre - esquerdoides festivos - deveria estudar mais. por fim e ao cabo, me vem uma vontade louca de ser alienado, ouvir sertanejo e ivete sangalo, desistir. porque, este mundo, anda muito desesperador. mas, não consigo. então, que siga e que sigo, naquilo que consigo, na guerrilha contra os poetas ruins, sob o mais absoluto sigilo.

William Teca

Eu nunca fui popular na escola, o que de certa maneira foi frustrante, na minha adolescência - sobretudo, pelos meus amores platônicos não correspondidos; agora, fico observando que deve ter sido melhor assim; com o tempo, desisti de parecer interessante e me desinteressei. azar de meu grande amor infantil - minha primeira paixão foi pela caixa de lápis de 24 cores, da michele (por onde ela andará?); pois é, desisti dos lápis e da escala cromática, mas, contudo e não obstante, sei como se dão os juízos sintéticos a priore - escreverei um ensaio: "como kant me salvou da michele" (por onde ela andará?).
William Teca