terça-feira, 28 de fevereiro de 2017
MINHAS PAQUERAS
Ao entrar no ônibus, meus olhos procuraram as lindas meninas
de antes, paqueras no trajeto da juventude. Nas lembranças, olhos curiosos de
quem estava descobrindo a sensualidade da vida, no balanço do ônibus, encontro
de corpos por acaso, às vezes desejados, as mãos se tocavam, os flertes
arrepiavam a pele, vibrava na alma. Enternecido com a volta ao passado, fiquei
envergonhado, quando meus olhos atentos encontraram algumas meninas de ontem,
sentadas nos bancos para idosos. Uma delas respondia meu olhar puramente
malicioso. Segui naquela viagem, ora com o olhar se perdendo pela janela, ora
me perdendo nos olhos da graciosa senhora, percebendo no mesmo trajeto de
antes, as mesma emoções nas diferentes paisagens de hoje.
JDamasio Rascunho
ESCONDE-ESCONDE
Ao entrar na velha casa, a porta se abre à saudade. No fundo
do quintal, minha infância brinca em segredo de esconde-esconde pelo tempo.
Volta e meia eu a encontro perdida em meu passado. JD
O anjo higienista
"Em Curitiba, no carnaval, sai às ruas um anjo
higienista. Bem-sucedido, quase ninguém o vê. Sua função é manter a cidade
semivazia, impoluível, imune aos ventos de mudança. Trata-se, é claro, de um
anjo avarento: só ele quer desfilar pelas avenidas, só ele pode flutuar por aí,
trazendo às mãos não a espada ou a trombeta, mas uma vassourinha de piaçava,
com que abre alas a si próprio."
"O anjo higienista", minha crônica na Gazeta do
Povo de hoje.
Luís Henrique Pellanda
eu já havia passeado de samu diversas vezes - com meu pai
(que já bateu as botas) e com minha mãe (que está bem viva, mas, por conta de
um trauma na coluna, usa um colete parecido com o do homem de ferro, que ela
obviamente detesta); pois é, agora foi a minha vez. por questões que o decoro
me impede de contar em pormenores, fraturei algumas costelas do lado esquerdo -
o que me fez acordar cantando "love hurts", do nazareth, com
propriedade, porque o coração dói junto. mas isso não é o pior, além de não
poder usar o lado esquerdo, sou obrigado a beber em pé, porque as duas injeções
que tomei nas duas bandas da bunda, me impedem de ficar sentado; como diria
darwin, a humanidade evolui por necessidade, eu evoluí, agoro bebo e fumo em
pé, apoiado apenas no lado direito do corpo, e confesso que a parede é a melhor
amiga do homem.
William Teca
Sou religioso
No domingo antes da missa me confesso. Na segunda, medito.
Terça, assisto a palestra e tomo um passe. Na quarta vou à novena. Quinta tem
culto, corrente de prosperidade. Na sexta, terreiro, faço um descarrego. Só no
sábado, sou ateu, vou à orgia. Mas domingo, antes da missa me confesso, na
segunda...
JD
Cabocla
acho tão tão bonito ser cabocla
eu sempre achei uma benção da lua
ser uma cabocla da terra brasileira
morena pele canela olhos de graúna
acho lindo ser cabocla
mistura de branco e índio
no grupo escolar rústico
aprendi a equação das raças
como se fosse tabuada
e o resultado eu lia e sorria
= cabocla
acho que não penso em pele
acho que penso em palavra
cabocla é palavra estelar
dizer cabocla é como traçar
as asas dos pássaros
as flechas e os arcos
as cabanas os riachos
eu sou cabocla
por ser por querer
cabocla até morrer
Bárbara Lia
da série sinistros insones - dedicado a jorge barbosa filho
(vulgo badalhoca bitch)
ipsis litteris
(para quem nunca ouviu "gimme shelter", dos stones
- a plenos pulmões)
algumas vezes a humana criatura
se encrua e manda pra dentro oito lexotans
com uma boa dose de destilado cultural nacional
após a metade do cigarro
se sente o efeito e o afago
no fígado nas costelas e no peito
há que se tentar matar
o baixo
o violão
a guitarra
a mulher amada
e dizer coisas engronhadas
que parecem piadas
daí nada melhor que um chutão no peito
catar cavacos é um ótimo exercício para acadêmicos
além é claro da boa poesia de hegel
jeová se vinga
mas o diabo garante bons momentos
eu não sigo a vida ela que me siga
William Tecca
GESTOS
O que vem de dentro
pudera nunca se exprimir
palavra
O que vem de dentro
é ouro
puro silêncio
pudera nunca se exprimir
mundo
O que vem de dentro
é tudo
só se pode exprimir
mudo
TANUSSI CARDOSO
Os ouvidos produzem
Os ouvidos produzem
o som há muito decomposto entre
as folhas dos dentes
E pode um filho ouvir o mesmo mar
que nada mais será o
caos das folhas
Tens em torno de ti o mar descrito
és o filho
que escuta os meus ouvidos
Gastão Cruz
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017
Um rosto que desconhecesse rugas
ou quem sabe uma pedra: humilde e forte.
Mas não, que em vez disso enviesadas fugas
nos esvanecem sempre o impulso em morte.
Jamais teremos a alta placidez
das estátuas que observam o horizonte.
O fim está inscrito em minha tez
e em teu olhar há o vazar de uma fonte...
Recolhe então, com essas mãos, o vento,
a mágoa, e guarda-os numa concha. – O poema
não é mais que isto: um sacrário, uma estela,
pequeno relicário onde o alento
do tempo está mantido em luz e gema:
o poema é um facho – dentro de uma cela.
Otto Leopoldo Winck
INSCRITURAS
Inscrevo estrelas
na córnea dos teus olhos
insones. Carruagens
de fogo nos desnudam.
A vida ora é azul
como brisa,
ora escura,
como blues.
Se corto meu pulso
o que escorre é a nostalgia
de uma era em que tudo era crível.
Todas as estradas do mundo
são insuficientes
para o anelo de meus pés descalços.
Acorda, olha lá fora:
é dia mas uma lua de sangue,
enorme,
derrama seu mênstruo
sobre a cidade.
Inscrevo cometas
na sola dos teus pés cansados.
Depois os apago
com o sal de minhas lágrimas.
A vida é qualquer coisa assim
entre um conto
e um assombro.
Otto Leopoldo Winck
Ilha
Essa vida imperfeita,
neste mundo perfeito,
mas na natureza sempre existe
o caminho reto
para a harmonia.
A luz que brilha nas artes,
a trilha luminosa da vida,
esse algo mais que nos intriga,
a linha imaginária no presente eterno
que transforma-se,
são setas apontando a direção.
Somos parte,
algo maior nos espreita.
(Ilha por Adriana Janaína Poeta/ Trecho)
Clube de Leitura dos Poetas
- pai, qual o nosso sistema político?
- morotocracia, filho.
- você diz meritocracia?
- não, morotocracia mesmo, governo todo do moro!
- ah, sei... e a divisão dos poderes, pai?
- filho, anota aí: legislativo comprado, judiciário
acovardado e executivo safado!
- minha professora de história vai me dar 10?
- não, filho, mas relaxa: sua professora tá na rua, não
existe mais essa matéria.
Marcílio Godoi
COMO UM PEREGRINO
Impregno-me de ti:
se minhas raízes descem até o fundo de tuas grutas,
são em mim que teus frutos amadurecem.
Tudo é aprendizado.
Mas há um mistério que só nos é dado conhecer
por revelação: a cor dos teus olhos
quando o dia se finda.
Impregno-me de ti: tua pela me recobre
e é teu fôlego que bomba meu coração.
Dentro de minhas vértebras alquebradas,
encontro tua omoplata.
A vida é um aprendizado.
Dizer adeus é um aprendizado.
Dizer estou pronto também o é.
Impregno-me de ti: tua noite é meu dia.
Teu sol é minha salvação.
Tudo poderia ser nada. Ou indiferente. Mas o dia vai alto
e eu estou diante de teus seios
como o peregrino diante das muralhas.
E agora posso dizer, sem susto ou esperança:
– estou pronto.
Otto Leopoldo Winck
AQUELE-QUE-NÃO-SABE
No tempo do plantio eu fiz minha colheita.
Agora, que o jarro já quebrou na fonte
e a roldana rebentou no poço, eu chego ao meu pomar
e não vislumbro um fruto. No tempo dos abraços,
quando um sol de bronze se elevava sobre mim,
eu fugi por todos os caminhos. Agora,
que a noite cai e eu recolho as ovelhas magras no redil,
não há ninguém para me dizer adeus.
Levantei muralhas quando era para derrubá-las.
Destruí castelos quando devia refazê-los.
No tempo das lágrimas, eu ri.
No tempo da vindima, calei.
Quando era a hora de buscar, eu me perdi.
E agora choro em vez de gargalhar
e cerro os lábios para não gritar o teu nome como um
insensato.
Se há um tempo para cada coisa,
como diz o Eclesiastes,
para mim os tempos já vieram todos rotos.
Otto
Leopoldo Winck
Otto Leopoldo Winck
"E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico,
menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e
assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam,
acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se
vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu
opressor se faz duas vezes prisioneira"
Lavoura Arcaica, Raduan Nassar
"É por esse nível de assepsia que o anjo se exalta, e
percorre o ermo dessas valas, impondo aos foliões que encontra uma mesma
máscara ancestral, étnica, de ascetismo e polidez. O silêncio é para todos, a
democracia floresce no silêncio, e todos precisam se calar, sem exceção, do
filho da escrava ao primogênito do faraó, dos guapecas nos terminais de ônibus
aos cabritos cujo sangue tingirá a porta de nossos clubes e salões, e em ponto
algum desta aldeia deverá se ouvir o ronco de uma cuíca, o gemido de um zumbi,
o protesto de seus encarcerados. Se no Egito houve clamor, em Curitiba haverá,
no máximo, borborigmos."
Trecho da minha crônica "O anjo higienista", que
sai amanhã, na Gazeta do Povo.
Luís Henrique Pellanda
INCOMPLETUDE
De repente
eu salto
e tomo de assalto
teu corpo.
Teus beijos irrompem súbito,
lâminas perpetrando a chaga
no silêncio
impossuído.
Testemunham-nos as cortinas velhas,
nos proibindo a lua.
De repente
eu caio
e teus olhos me ferem
com ternura.
De teus dedos frios,
sob o carinho pálido do abajur,
eu vejo surgir garras
vencidas.
Luto,
lutas,
e nos derrotamos.
De repente
a grande consciência da vida.
– Amor?
Depois, lá fora,
a lua sorri com indiferença
do meu corpo insatisfeito.
Otto Leopoldo Winck
Então você acorda correndo depois de quase não dormir porque
você deitou tarde e está um calor saariano em Curitiba, você pega um Uber e
você quase se desencontra do Uber e está um trânsito danado e o motorista
parece que não tá nem aí na lerdeza dele e você chega correndo, estabanado,
assina o ponto, se dirige à sala de aula, subindo de dois em dois degraus, e
descobre que... você não tem aula esta manhã. Simples: você apenas esqueceu de
imprimir o horário mais recente.
Otto Leopoldo Winck
BEBE SEM PRESSA O TEU VINHO
Bebe sem pressa o teu vinho.
Estende a mão e colhe o que te é dado:
um naco de pão, o último raio do sol, a mulher ao teu lado.
Em breve será noite e não mais terás olhos para ver
nem mãos para palpar. Recolhe, portanto, no aprisco te tua
choupana,
o pequeno rebanho que tu não mais tosarás (outro o fará).
Guarda o teu cajado e a flauta de pã
que ninguém mais ouvirá na colina.
Senta-te à janela e, se quiseres, chora,
pois ninguém te devolverá a mocidade morta.
Os dias de ser feliz já estão longe
e tu os desperdiçaste. Contempla o céu
onde morre o sol e de onde virá a noite
que te ignora. Depois deita com a mulher ao teu lado
e a ama pela última vez. Mas não faças nenhuma oração.
Nenhuma. Os deuses não a ouvirão.
Otto
Leopoldo Winck
INICIAÇÃO
Um dia as estrelas todas do céu caíram
e eu me vi perdido numa praia que se confundia com a noite.
A noite era tão funda que eu cheguei a esquecer o cor dos
teus olhos.
A ondas molhavam meus pés
e as vagas no horizonte desenhavam um naufrágio.
Tudo era novo, embora conhecido há milênios.
Se o viver era precário, sabê-lo já não era nefasto.
A ninfa da melancolia, derramando sua eterna ânfora de
mágoas,
me fitava do fundo do corredor. Então chorei.
E de meus olhos nasceram rios, e desse rios oceanos.
De cada oceano, no continente que surgia, brotava uma nova
civilização.
No entanto, eu continuei perdido
porque agora já não lembrava sequer do contorno do teu
rosto.
Ai, quisera retornar à rua de minha infância
e bater bola com os colegas do bairro. Mas todos estão
velhos
e um inclusive já morreu.
É isto a vida? – um dia me perguntei.
A vida mesma se encarregou de me responder
e se mostrar eloquente.
A noite é dura. Perder teu vestígio também.
Mas agora trago uma estrela no bolso
que me ilumina os olhos e me faz crer
que ao fim da noite te reencontrarei intacta.
Tudo é novo. E antigo.
Mas já não é trágico.
Caminho por uma praia
que vai terminar na aurora.
Otto Leopoldo Winck
Ensaio sobre o que não se compreende
Ninguém é dono do amor
Nem mesmo o deus cristão
Que amor sendo, não pode tê-lo
O amor é estranho a posse
Quem o sente apenas partilha
Infinitesimal parte do mesmo
Inútil é dizer o eu, o amor
Que nega pronomes de posse
Pessoais e estranhos a si
O amor se sente, recente, abisma
Mas não é seu o sentimento
O habita em parte, mas lhe transcende.
Henrique Veber
sábado, 25 de fevereiro de 2017
No dia que eu me for
não sentirei falta
dos bens que não tive
não lamentarei os lugares
que não conheci
nem as falhas, as perdas,
fracassos,
sequer os amores
não vividos,
terei como
prejuízos
de mim
.
No dia que me for,
chorarei por mim,
por cada pessoa
que não me fiz apto
a amar.
.
Terá sido essa
a lacuna
não preenchida.
.
*****
.
(eduardo ramos)
quanto riso oh quanta alegria
● ha tanta carne ●
● eles mesmos nos entregam suas carnes ●
● o tutano dos ossos todos os ossos ●
● a pele o sangue coagulado todos eles ●
● nos entregam machos femeas e filhos ●
● sim de olhos fechados eles se entregam ●
● tudo é sempre nosso ●
● pra eles so a grande tolice o chorume ●
● se se revoltassem seria com tanta ternura ●
● q as carnes ferveriam mais deliciosas ●
● enquanto gargalhamos eles eles sim ●
● trabalham sem cessar dia e noite ●
● quanto riso oh quanta alegria ●
● no meio das multidões a carne ferve ●
● nossa fome se eleva sim e esperamos ●
● eles dançam eles gritam eles gargalham ●
● eles batem palmas eles cantam e uivam ●
● eles sabem o belo nome do senhor ●
● jamais aplacarão essa gula sem fim ●
● essa violencia q não para de gozar ●
● praisso trabalham acreditam e seguem ●
● dia e noite enquanto nossa fome ●
● so faz crescer so faz ficar mais refinada ●
● mais exigente mais brutal e todos eles ●
● correm pros nossos dentes ●
● como se a fome fosse deles como se tudo ●
● q eles acreditam fosse verdade e deles ●
● não fosse uma armadilha ●
● pra trazer todos eles eles todos ●
● pra saciarem nossa fome q é infinita ●
Alberto Lins Caldas
PALAVRA APÓS PALAVRA
Para Cecília Nepomuceno
Lavoura após lavoura, a pá, mão e tesoura.
Após dura colheita, eu como, bebo, deito.
Durante a lavra, lavro, escrevo minha estrada.
Após a rude escrita, eu canto, danço e grito.
Semente após semente, suor, cansaço, sede.
Se conto o que sinto, escondo, fujo e minto.
Desfio grão, o milho e trigo, eu sovo massa e faço pão,
acendo forno e assovio esparsas notas de azulão.
Enxada, foice a tiracolo, o passo sempre rente ao chão,
ancinho e fumo de corda, poeira sempre na visão.
Eu risco chão e terra, e luto minha guerra.
Palavra após palavra, recolho minha safra.
Bento Ferraz
Lopes Chaves, 546
p/Mário de Andrade
.
Uma luz apagou
Na ribalta do mundo
Quando cerrou as portas
Da vida daquele
Que Anita amava
Nunca mais se ouviu
- Outra vez -
O piano parisiense
Henri Herz
Mário a dedilhar
Teclas e palavras
No n° 546
Da Lopes Chaves
BÁRBARA LIA
NooN (edição artesanal/2010)
25/02 aniversário da morte de Mário de Andrade
Loucura é conversar com o outro quando se está sozinho,
discutir consigo mesmo é normal: "fiz o café, lavo a louça mais
tarde" "Lavo , não! Já fiz o café , lavo a louça amanhã".
"Mas amanhã já começo o dia com sujeira, melhor lavar hoje'. "Lavo
porra nenhuma, amanha resolvo isso, hoje está frio!" Então, Beleza!"
Boa noite pra mim!" Quem não sabe disso, nunca morou sozinho. JD
FAZ DE CONTA
Criamos um estar bem e vamos estando. Pensamos verde e
verdejamos.
- Mas isto é mentira, isto tudo é lamaçal, a vida em si é
indigna, indigente, indigesta, negação.
Mas imaginamos, fantasiamos e criado sendo, é! Benfazejo
ficamos, viciamos em criar e vamos fazendo de conta, refazendo de conta e
espalhamos o fazer em contas.
- Sofisma, engodo, falsidade, coisa de alienado. Indigno
fechar de olhos a realidade.
Realidade? Há realidade somente em nós mesmos, cada olhar um
vasto mundo. O que é a realidade senão um conto, uma narrativa escolhida de
fatos sim e fatos não. Fazendo de conta se faz história, se reconta, transforma
realidade em realizar.
- Desisto tu não enxergas, anda sonhando acordado,
delirando.
Não ando, cavalgo num cavalo alado, Pégaso negro, manco de
uma asa, que encorajo insistentemente a voar. Quem sabe o amanhã?
Henrique Veber
Borges e Hemingway se encontram no céu. O primeiro com uma
xícara de chá (bebida para a eternidade, completa). O outro, bebendo no gargalo
a sua tequila. Discutem literatura. Mais precisamente, sobre influência. Depois
de muito tergiversar sobre quais as melhores fontes literárias, se a própria
literatura ou a vida, Hemingway decide pela última, e provoca:
- Não vê que meu estilo é a prova definitiva sobre o que
argumento?
- Não vejo. - diz Borges.
André Ricardo Aguiar
ULTIMATO
e a vidraça
não teme a destreza
da pedra;
nem mesmo um guerreiro vacila
em face à sombra
que lhe reserva
à lápide.
um grito de dor,
veja bem, é espinho repartido
no mundo - não finda,
e nada receia também.
de morte de estrelas,
bem sabemos. são suaves,
não são?
mas o coração, entulhado, escurece;
nunca se sabe
se em vão.
e não é a leveza
o que basta
quando nossos anjos
se atiram contra um trem
de carga?
Dom Jorge
COMO UM RIO 6
É como se da boca
a palavra esgarçasse
o horizonte (e o ardil
que germina o vento).
No risco,
o amor
se acrobata
como se o coração
tivesse patas.
Não há mais Cronos(esse
deus com as crinas
aparadas), apenas o eterno
em usufruto.
(Ou o cálice que transborda
com a perdição
dos náufragos).
Não há nada além
do Nada perfilando
ausentes...
ou a flor do espírito--,
que é somente o verbo
sobre a pedra.
SALGADO MARANHÃO
Cais
Tem sido a mesma obsessão pelos navios
não basta querer que eles venham
é preciso sonhá-los
ancorados em mim
feito jardins de ferro
Iracema Macedo
Edições Estúdio 53
2000
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017
A CRÍTICA AO POETA
A crítica não faz parar o poeta,
Pois ele escreve aquilo que entender,
Fruto do grande e máximo prazer
Que o movimenta nessa sua meta!
Tudo o resto não passa duma treta,
Pois o poeta no eterno seu viver
Há-de alguém acabar por surpreender,
Como um ataque em fúria de um cometa.
O poeta não escreve pra agradar,
Mas, sim, unicamente pra ser lido!
A alma dele é maior do que universo,
Pois enche-o de palavras, como o mar
Enche o efémero mundo adormecido,
De imensidão profunda em cada verso.
Ângelo Augusto
Indigesto
Como um comprimido
engulo este dia.
De oito em oito horas
me lembro
não há remédio
a não ser comer
esta demora que a vida leva
pra curar uma dor
Meus dentes estão moles
como balas de goma
impossível mastigar
estes
segundos
de Lilian Aquino, publicados por Jandira Zanchi em Mallarmargens:
a vida é essa onda
você se afoga, mulher?
você se engana?
o destino é essa onda
você se atola, homem?
você se arreganha?
a pancada é essa onda
você se esfola, criança?
você se arrebanha?
o caminho
não há caminho
mas, se houvesse, seria essa onda
que não dá pé
não dá pé
e aí você desiste
-
essa onda
claudinei vieira
SOBREVIDA
Contornando
as arestas da pedra
o sobrevivente deixa
a orelha
alerta
É raposa
caçador solitário
faminto
e se contentará
com um inseto
O sobrevivente quer de volta
os passos
o fígado regenerado
outra chance
de ligar pela última vez
O sobrevivente caminha
pelo corredor
abre a janela e vê
que o mundo
não acabou
Alberto Bresciani
Professoras
Dois leões de pedra, no topo das extremidades do portão de
ferro, são guardiães simbólicos do prédio antigo. Flores vermelhas do jambeiro
ainda cobrem o piso do pátio, e os corredores laterais, largos e alpendrados,
dão acesso às salas do grupo escolar onde passei a maior parte da minha
infância.
As brincadeiras terminavam quando a professora aparecia
entre os dois leões; ela subia lentamente a escada, e antes de entrar na sala,
os alunos já estavam à espera da primeira lição da manhã.
O grupo escolar Barão do Rio Branco - hoje uma escola
estadual – foi construído numa época de fausto, mas acolhia crianças de todas
as classes sociais. Ainda me lembro de quatro ou cinco curumins: um deles, o
Tarso, usava brilhantina nos cabelos, mas o que brilhava de verdade era o
desenho caprichoso de cada letra; hoje, eu o vejo como um pequeno calígrafo que
manuseava um cálamo. Tarso e sua família moravam numa palafita à beira do
Igarapé de Manaus. Este e outros igarapés foram aterrados, não sei por anda
Tarso, um dos alunos que atraíam a atenção da professora que nos ensinou a ler
e escrever.
Ela era exigente em sala de aula e severa no trato com os
bagunceiros; talvez fosse dócil com os bonzinhos, mas não me lembro de anjo,
querubim ou arcanjo algum. O olhar dela era austero, às vezes terno, mas a fala
e os gestos eram quase sempre pacientes: a repetição de cada explicação é um
exercício de paciência. Brasília já existia, mas estava ausente no velho mapa
do Brasil. E eu sequer desconfiava que seis anos depois iria viver na
capital...
Uma noite, três décadas depois das primeiras letras, quando
lançava meu primeiro romance na Biblioteca Pública de Manaus, vi uma senhora
muito elegante na fila. Percebi alguma familiaridade no rosto que me olhava,
mas não o reconheci no ato. A memória, essa guardiã de sentimentos íntimos, me
revelou o rosto da professora Maria Luiza de Freitas Pinto.
Conversamos um pouco e assinei um livro para ela. Antes da
despedida, abriu a bolsa e tirou uma folha amarelada, dobrada ao meio. Disse:
“Esta é a tua primeira redação! Foi escrita no Barão do Rio Branco...”
Olhei de relance a caligrafia, que nem de longe se comparava
à de Tarso. Não li o texto: o gesto amoroso de guardar por tanto tempo palavras
de uma criança prevaleceu sobre a curiosidade; sem dúvida, ela guardara textos
de outros alunos num baú cheio de redações.
Revi dona Maria Luiza em 2008, quando lancei outro romance
em Manaus, desta vez na Banca do Largo São Sebastião, do amigo Joaquim Melo.
Ela mora ali perto, numa casa antiga e espaçosa, onde Sheila, uma parente de
dona Maria Luiza, me ensinara inglês.
Em agosto do ano passado, viajei com o escritor Reinaldo
Moraes e uma equipe de tevê para Manaus, onde eles iam fazer um documentário
sobre o romance “Cinzas do Norte” e a cidade. Na calçada do mesmo grupo
escolar, contei a Reinaldo lances da infância manauara, numa época em que a
escola pública ainda era frequentada por crianças e jovens de todos os estratos
sociais. Enquanto observava os estudantes, pensei na mulher que me alfabetizara:
ela acabara de completar cem anos.
A diretora do documentário quis entrevistá-la. Dois amigos
(a jornalista Leyla Leong e o professor Ernesto Renan Freitas Pinto, sobrinhos
da professora) mediaram esse encontro na casa em que Maria Luiza sempre morou.
Reconheci a mobília e alguns objetos daquela época; um corredor comprido e um
pouco escuro terminava numa saleta iluminada pelo sol da manhã. Com lucidez e
nostalgia, a professora centenária recordou cenas e anedotas da minha infância
razoavelmente feliz, interrompida em 1964, quando também foi interrompida a
implantação do projeto “Escola Nova”, do grande educador baiano Anísio
Teixeira, então reitor da Universidade de Brasília. Nove dias depois do golpe
militar, o campus da UnB foi invadido pela polícia e Anísio foi demitido da
reitoria. Em Brasília, no final dos anos 1960, estudei numa das escolas
idealizadas por ele: um colégio de aplicação, extinto em 1971 pelo governo
militar.
“Viver numa terra trágica é o mesmo que viver num tempo
trágico”, escreveu Wallace Stevens.
Nesta terra e neste tempo trágicos, faço mais essa modesta
homenagem a uma professora da província e a um filósofo da educação, ambos
igualmente importantes para tentar mitigar o atraso nesta nação fraturada, país
de “mil-e-tantas misérias”, como disse um mago de Minas.
Milton Hatoum
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Professoras - Cultura - Estadão - 24/02/2017
Apenas o fim
há os q não riem
os q choram
os q fazem drama
os q compartilham a dor
os q veem filmes sozinhos na sala escura
os q bebem até cair
os q conversam com cães e gatos
os q matam
os q se matam
os q não se importam
os q ignoram
os q escrevem
os q leem
os q comem em demasia
há por fim os plenamente feridos
do fim
Sérgio Villa Matta
Michel Temer conversa com Roberto Freire sobre mudanças no
Prêmio Camões de Literatura.
- Roberto, que papelão, francamente!
- Ah, desculpa, eu não aguentei, presidente...
- Estou me referindo àquele escritorzinho comunista.
- Ah, sim, o Raduan. Um oportunista, mau caráter.
- Ganhou 100 mil euros da gente e ainda reclama?
- Pois é, presidente, não se pode confiar nunca num
comunista.
- Chamei você aqui porque quero fazer algumas mudanças nesse
prêmio.
- O senhor manda.
- Vamos começar pelo nome. Quero prestigiar um autor
nacional. Alguma sugestão?
- Gabriel Chalita?
- É um grande nome, mas ele está com o Haddad agora.
- Que tal Prêmio Merval Pereira de Literatura?
- Ele tem livro publicado?
- Acho que não, mas é membro da Academia Brasileira de
Letras.
- Ótimo! A Globo vai adorar. Quero também acrescentar uma
nova categoria. Cota pessoal.
- Que categoria seria essa?
- Livros pra colorir. A mãe da Marcelinha quer concorrer. A
velha até que tem bom gosto com as cores, sabia?
- Posso imaginar, presidente.
Tom Cardoso
DE MANHÃ
Outro amanhecer, ter-te de volta,
a noite foi longa, a tua presença
agora é mais real.
Ter de novo tuas mãos, os teus carinhos
a doçura da tua voz o encanto do teu olhar.
Saber que mais perto estas, ter-te pelo menos
mais junto com o pensamento unido,
em uma só vontade, de seres minha eternamente.
Quem sabe mais perto chegar.
Amar-te mais profundamente sentir-te, bem suave,
e possuir-te livremente.
Roldão Aires
VÃOS
“os cupins se apoderaram da biblioteca
ouço o seu áfono rumor [...]”
Haroldo de Campos
os cupins
assolam
o corpo
deserto
lânguidos
ocupam
os poros
os livros
gritam
um silêncio
desumano
ausência
de odores
britadeira
da memória
o corpo
está
repleto
(os cupins)
copulam
docemente
diana junkes
Fui comprar um refri, num boteco-restaurante, e eis que ouvi
a seguinte conversa:
– Sabe como eles fazem pra descobrir esse negócio dos
planetas, né, Adonis?
Adonis é um camarada baixo, gordinho, atarracado, de bigode
e cavanhaque, com cabelo comprido preso. Seu inquiridor é um sujeito alto, mais
para magro, com os dentes em péssimo estado, mas que, pelo jeito, entendia um
certo tanto de coisas sobre astronomia – falava de modo embolado.
– Fazem o quê?
– Esse lance da reportagem, de descobrir planetas. É pela
luz, eles analisam as cores, o espectro, e daí conseguem saber se o que tem no
planeta é água em estado sólido ou líquido, se são gazes e por aí vai. Conforme
a cor. Tudo observando a luz, quando ela passa pelo telescópio com o mecanismo
feito pra isso.
– Ah...
– É. E agora descobriram isso aí, sete planetas com
condições pra abrigar vida. Mas tudo em tese, tudo só tecnicamente, porque na
prática, mesmo, não têm como demonstrar nada. Não têm como provar.
Adonis estava mais preocupado em organizar o caixa do seu
restaurante. Mas é bom ouvinte. Seu amigo prossegue.
– Mas também é sempre assim, nem a Nasa nem nenhum desses
lances aí vai admitir muita coisa. É que eles sabem... Já tão preparando o
pessoal pra grande revelação que vai acontecer em 2020.
Adonis resmunga
– É, tá certo, em 2019. O universo com esse tamanho todo e
os caras o tempo inteiro dizendo que “não, só aqui na Terra tem vida, só aqui tem
aviãozinho e foguete e em nenhum outro lugar”. Tá bom. Imagina quando os caras
chegarem aqui?
A conversa tomou um rumo científico-filosófico que não me
permitiu acompanhá-la. Além disso, estava preocupado demais com a minha sede e
me distraí com um diorama improvisado contendo trens e uma paisagem pitoresca,
tudo desproporcional, bizarro e exótico. Um trem e um vagão, como só na terra
devem existir.
Fui para o caixa e o Adonis, talvez entusiasmado com todo o
diálogo anterior, disse “Água tônica e um doce? Já tentei tomar isso, mas não
consegui”. Respondi que era pra contrabalançar e que, com azia, descia que era
uma beleza. “É ruim demais, não tem como”, finalizou, como quem dissesse boa
sorte com esse mau-gosto.
Será que algum outro lugar no universo é capaz de fazer uma
água como essa, tônica?
sábado, 18 de fevereiro de 2017
O RECÉM-SEPULTADO
Enormedonho o silêncio por aqui campeia.
A erva que explode, o vento que a assanha
celebram um mundo a que despertenço.
.
[Sidney Wanderley]
Parente Distante
Vou rever um primo distante, mora longe, triste porque são nos
momentos fúnebres que sempre nos abraçamos. Mais triste, dessa vez ele não vai
me abraçar, o velório é dele mesmo.
JD Microconto
O SOL HÁ DE BRILHAR OUTRA VEZ
A chuva que agora cai;
e levemente molha o chão.
Trazendo o clarão de um raio,
antecipando o trovão.
Matando a sede da terra,
sacia a sede do meu jardim,
devolve o arco-íris à serra,
que ontem roubou de mim.
Chuva que cai sobre os montes,
sobre os vales, sobre as fontes.
Cai tão perto de mim.
Águas que me cobrem a fronte,
misturando-se às lágrimas que ontem,
rolaram sem ter mais fim.
São lágrimas d'um amor perfeito,
que me apertam demais o peito,
e brotam como flores no meu jardim.
São mágoas d'um amor desfeito,
que a chuva, de qualquer jeito,
levou pra bem longe... de mim.
Jonas Francisco Machado
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017
domingo, 12 de fevereiro de 2017
A política hoje em dia, em todas as suas instâncias, sofre
um processo crescente de carnavalização. Ou seja, é o simulacro do simulacro do
simulacro, onde são seus atores, os ditos políticos profissionais, que parodiam
o povo, o criticam e o ridicularizam.
A categorização da classe artística como vagabunda, sendo
que é a arte, a partir dos elementos culturais, que constantemente redefine e
critica a noção de identidade, é própria de um sistema carnavalizado pelo poder
onde numa oficial democracia o voto do cidadão é deslegitimado.
A metáfora mais propícia da carnavalização política é um Rei
Momo de uma província qualquer, que ao ser coroado, decreta a extinção do
Carnaval.
Ricardo Pozzo
ADUMBRA
"Mas como nós falássemos a mesma coisa
as mesmas coisas mesma língua & dialeto
parecia possível retratar as margens
de cada termo contratar o nosso acerto
nas mãos do mundo & apertarmo-nos as mãos
entre toques & dedos & a carícia calcinada
dos dias numa nova ordenação do cosmo
então num gesto fácil nomear o mundo
flores de toda espécie com seus gostos cores
seus caules folhas frutos formas invisíveis
ou que nunca aprendemos por nunca querermos
por só preguiça de androceu & gineceu
seus novos nomes poderiam ser mais nossos
ao inventarmos juntos palavra a palavra
toda a sintaxe enquanto descemos a senda
encravada de asfalto nos veios da serra
neste carro qualquer os pés esvanecidos
por baixo do painel as mãos ainda pensas
ainda que sentados o olho sobre o vidro
anuncia a tormenta cinza sobre a mata
compostos de amarelo & púrpura & carmim
preenchem o que resta no pouco de céu
que ainda se desnubla neste fim de dia
enquanto desbotoamo-nos nalgum sorriso"
Trecho do ADUMBRA | de Guilherme Gontijo Flores
[ edição da Contravento Editorial]
as almas vulgares se regozijam com escândalos alheios e os
alimentam! Por exemplo, quando percebem alguém na rua, em sua fragilidade
humana, sujo ou maltrapilho, e destacam esse detalhe, sem saber como nem
porquê, e ridicularizam ou expõe esse ilustre desconhecido. Mas não esqueçam
que, neste mundo onde cada vez mais tão poucos conseguem ver além do próprio
umbigo, quem fala do outro fala mais de si do que do outro!
Ricardo Pozzo
Fonte : Escamandro
Altamira
Na variável mais profunda,
tanto caçador quanto caça
estão em fuga.
Naipes numa orquestra de faros,
iluminados nem pelo satélite pálido
seduzido, em seu magnético giro.
Melhor enxerga o que ouve
aguçado
na floresta que assombra quem,
surpreendido,
mira o animal escolhido
e a si reconhece.
Ricardo Pozzo
[A quantas pessoas falta uma mão amiga, um estímulo, um
elogio, uma palavra de amor e um gesto de carinho? O mundo virou um tapete de
unhas e o diálogo uma traição à vida. Estamos trocando nossa eternidade por
marcas, grifes, quinquilharias tecnológicas, drogas, desregramentos e
alucinações ególatras. Sem noção...sem noção...] by Antonio Thadeu
Wojciechowski
Creio que deva haver, no Paraíso cristão, um pálacio, símile
àquele em que adentram os Einherjar, para as mulheres Mães, Avós e Bisavós que
lutaram com todas as forças para proporcionar a seus filhos, netos e bisnetos o
Amor, a Sabedoria e a Severidade e que assim possam ter a oportunidade da
Escolha ao trilharem os intrínsecos e específicos ciclos da vida com o
conhecimento das páginas do Livro do Sagrado.
Louvado Seja o Sublime, o Generoso!
Ricardo Pozzo
• dormitava auroras
nua em pedra
e errava
- por querência -
a cartografia
dos homens
flertava com os mapas
das águas
e das ventanias
mais complexas
em sua bravura
de sereia
ornava-se de brumas
de lenhos e arvoredos
onde ninhos
surgiam-lhe felpudos de sois
e lãs febris
de horizontes
desse chafurdar no limbo
logrou despir-se de gente
- seiva-arrebol! -
sabia-se plâncton
basalto, âmbar
e cinzas
então assombrou-se
em fogo e quase lava
escorreu-se ávida
peregrinando
oceanos
: adejou-se rubra
[ flor-mamífera-ave!]
a burilar o magma
onde a vida
goza •
lilly falcão
/ do.rubro.magma.das.ovelhas /
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017
Espelho meu
Não sou só dos abraços de ano em ano
nem dos beijos a léguas de distância,
pelo que sei e vivo, desde a infância
adoro o colo feminino humano.
Não sou de bajular nenhum fulano
que acaso esteja em poderosa instância;
não sou de correrias nem de ânsia
por bens materiais. Muito me ufano
de ser o mesmo em todos os momentos
e situações, com favoráveis ventos
ou não, tranquilo caminhando eu vou.
"Louvor em boca própria e vitupério"
Mas tu, espelho meu, refletes, sério,
a forma como exatamente eu sou.
Hardi Filho. Piauí.
Sonhei com heróis que limpavam as botas sujas de lama em
véus de linho branco.
Estávamos todos no quarto.
À porta da casa, amarrados aos troncos, os cavalos tinham as
crinas trançadas.
E quando relinchavam, lembravam-me de um lago muito cinza e
calmo.
À janela, eu fitava o sol e a luz era uma náusea.
Basta calar, disse a eles.
Disse aos estádios nos olhos deles.
Afundar o rosto na terra e ouvir os rumores das águas.
As jarras estáticas de leite no fundo da noite.
Bendizer o vazio, a pelagem castanha, os túneis.
Sei que a única inocência em mim é a dor.
Sei que a única inocência em mim é a dor,
repeti.
Sentamo-nos no tapete,
as roupas reverberando quentes e impenetráveis,
os terços em mãos,
tudo muito muito muito além de nossas botas limpas,
e oramos a uma pequena raposa ausente.
--
[fernanda boaventura, in: o pasto anula-se em certos
lilases, a ser publicado logo-logo pela La bodeguita]
O CÚSPULA
O cúspula é um animal de médio porte, de pelo rasteiro.
Emite um cheiro desagradável e tem como defesa o grito agudo, capaz de partir
copos de vidro, cristal. Não existe notícia de caçadores de cúspulas. Mas os
que se arriscam à lenda, esses velhinhos surdos que caçaram na floresta, no
capão, explicam que a surdez foi acidente com cúspulas. Uma história mal
contada, por sinal. Um cúspula ataca no grito, vive solitário e seus hábitos
lembram os de um macaco assustado ou de um tatu muito tímido. Quando um cúspula
encontra outro, só um sairá vivo. A morte de um cúspula é de mau agouro – e nas
matas, os galhos e arbustos devassados indicam que um cúspula foi cuspido para
fora da vida. O cheiro é mais insuportável ainda. Os pelos são duros, e quando
roçam, sem querer, em outro bicho ou mesmo em gente, causam feridas profundas.
Nunca mais foram vistos, mas nos lugares em que habitavam o ouvido apurado
percebe uma eletricidade tremelicante no ar.
. André Ricardo Aguiar
[Fábulas Portáteis, Editora Patuá]
Gargaú (preservar antes que acabe)
quem tem sangue na veia
nem guaiamum nem caranguejo
na saliva do desejo
em tua língua meu amor
e que a lama desse mangue
possa parir alguma flor
Artur Gomes
Um poema lindo
Pousou no meu domingo
Dorme agora
Entre lençóis desarrumados
Saio do quarto devagarinho
Faço café: sem açúcar
Nenhum medo me assusta
A paz costura seus silêncios
Vou à janela olhar a rua
Lá no asfalto
Pessoas passam indiferentes
Carros deslizam impacientes
Mas é domingo
O poema sonha profundo
Com um mundo
Em que a segunda-feira
Seja uma senhora boa e feminista
_que tenha tudo
E não queira nada da vida
Assionara Souza
é delicado
não perguntar as horas
a um morto
é delicado
deixar as pedras
em paz
é delicado
olhar por dentro das palavras
antes de dizer o que elas dizem
é delicado
dar passagem às flores
e não perguntar aonde vão
e deixar a amizade do amor
decantar no fundo do corpo
por longos e demorados anos
é delicado escutar o tempo
e plantar lá dentro
no vazio do vento
o signo o selo o cisco
da delicadeza
e do silêncio
*
Carlos Moreira
Retrato:
Tem do outro lado
essa muda imagem
do que fui
Tem no desfocado
um sonho que rui
E lágrima de sangue
que em nenhum rio se dilui
E tem os meus cabelos
Ah, os meus cabelos!
que já não pegam vento!
Lázara Papandrea
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