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DOUTOR, ESTOU SENTINDO UMA RIMA TERRÍVEL.
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Onde é que dói?
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Às vezes, é bem aqui no peito. Às vezes, é uma pontada, aqui na cabeça.
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O que é que o senhor faz, quando dói muito?
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Quando eu não agüento mais, eu faço um poema.
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Um o quê?
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Um poema. É uma espécie de mancha que dá bem no meio da página. Tem umas
apavorantes. Mas também tem manchas lindas.
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E desde quando lhe acontecem esses poemas?
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Desde sempre. Desde quando, antes do ventre da minha mãe, eu fui pensado em
alguma galáxia distante, por um planeta boiando na luz de um sol
azul-amarelo-vermelho-verde-prata...
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Deixe-me ver sua língua.
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O senhor não leve a mal, mas é uma língua apenas portuguesa. Pouca gente no
mundo já viu uma língua como essa.
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É, está feia sua língua. Mas não se incomode, que língua portuguesa ninguém
presta atenção.
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Não é só a língua, doutor. Às vezes, tenho visões.
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Visões?
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É, vejo círculos, quadrados, triângulos inscritos em hexágonos, e linhas,
linhas, linhas...
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O senhor conhece matemática?
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Só de nome.
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É, é mais grave do que eu pensava.
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Vou morrer?
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Um dia vai. Mas antes vais ser pior. O senhor pode ficar famoso.
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Pra sempre?
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Não, quando é para sempre a gente chama glória. A fama passa.
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Ainda bem.
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Mas incomoda muito. Não tem horas em que o senhor sente que tem um estádio
inteiro lhe aplaudindo de pé?
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Onde, doutor?
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Dentro da sua cabeça, é claro. Onde mais?
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Que alívio o senhor me contar isso. Pensei que estava ficando louco.
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Quem sabe? Quem sabe o que é loucura?
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Vá saber.
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Deixa eu completar os exames. Tem sentido muitos sintomas de concretismo
gástrico ultimamente?
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Só quando eu vejo uma folha de letraset.
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Perfeito. Tem sentindo algum soneto?
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Só de manhã, quando eu vou dormir de estômago vazio.
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Impulsos marginais?
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Depois que fui editado pela Brasiliense, meus sintomas marginais desapareceram.
Deviam ser conseqüência do abuso da solidão e do provincialismo paroquial.
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Nada de pornô, espero.
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Um filho-da-puta aqui. Um caralho ali. Porra. Cabaço. Gozar. Só essas coisinhas
corriqueiras, que vovó não deixava dizer, mas estão no Aurélio.
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Entendo. Não admira que o senhor tenha tido tantos poemas recentemente. Mas vou
receitar uma dieta que vai lhe deixar tão bom quanto qualquer subgerente de
vendas.
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Antes disso, será que o senhor não me deixava cantar alguma coisa?
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Cantar? Mas eu não tenho nada aqui para o senhor cantar.
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Pode deixar que eu trouxe umas canções comigo.
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Cuidado. Cantar demais faz mal.
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Não se preocupe, doutor. Eu só vou cantar um pouquinho.
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Está bem. Pode começar.
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Desafinar um pouquinho, não ligue. É assim mesmo:
"Se
houver céu depois da terra
e
nessa estrela
a
eterna primavera
pudera,
tomara, que a vida quisera
que
a gente se encontrara.
Proutra
vida fica,
nosso
amor mais louco,
fica
tudo muito mais bonito,
fica
a dita que faltou pro pouco,
se
houver céu...
Se
houver céu,
como
nessa vida não há,
a
gente se achou bichinha
a
gente se encontrará,
a
gente se encontrará..."
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Letra e música suas?
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Letra e música.
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I see. Deixa-me ver. O senhor tem algum vício?
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Eu amo uma mulher chamada Alice.
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Há muito tempo?
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A vida toda.
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O senhor é o caso mais grave de poesia que eu já vi até agora. Preciso
consultar uns colegas.
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O que é que eu faço, doutor?
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Tome duas estrofes e me telefone amanhã cedo, sem falta.
Paulo
Leminski - Gozo Fabuloso