segunda-feira, 31 de março de 2014
Luiz Felipe Leprevost
minhas bochechas, lábios, queixo, meu nariz vão sendo
devorados pelo sono. minha ira perdeu para exaustão. faleço agora. ou julgo ter
adormecido mas continuo acordado e extenuado. mesmo assim, não paro de olhar
determinadas e difusas imagens eternamente escoando lá no fundo do tempo. isso,
talvez nem mesmo chego em casa e já volto para o dia de ontem em que abro a
porta e saio, pois só a chuva me escuta.
O teatro de um bêbado
Eu, apenas eu
Pisando na areia úmida e fria
Meus olhos secos e empedrados
Mostravam a chama que nem mesmo ardia
O sol posto nos postes
Exalava soberania
Me era calmo e substancial
Como o tempo que rasgava meus risos
E minhas filosofias
Eu era o espetáculo de uma platéia insignificante e
imprópria
De insetos e cães vira-latas
Meu ódio e minha melancolia
Escavavam um buraco em meu próprio olho
Que feito de ego e pedra, resistia
A água que vinha do céu
E o céu que deitava no mar:
O erotismo da natureza
Que como um quadro torto e belo
Fazia arder-me os versos,
Meus cascos, meu drama,
Minha comédia, meu terror.
Minha bipolaridade enferma
Que me dá azia
Minha vida incerta e naufragada
Minha peça de teatro torta
De riso, de choro
Sem roteiro e utopia
Matheus.Forcinetti.
domingo, 30 de março de 2014
"O primeiro assalto a gente nunca esquece!" minha
filha foi assaltada, sexta por volta das 18hs, enquanto voltava da ufpr.
Primeiro susto que vai muito além de perder um celular, perde-se junto o
olhar o outro sem medo, porque quando outro ser humano te aponta uma faca leva
com ele parte da sua ingenuidade. Curitiba, nossa aniversariante, onde crianças
frutos da violência, violentam e são violentadas a cada passo.
Joselaine Motta
A MÁQUINA
Aqui jaz meu poema
fazendo-se
de morto
na página que há
pouco
já foi alva
feito um teorema
que não se pode refutar.
Até que você o leia
insufle a vida
que lhe falta
e o transforme
em delicado mecanismo
que venha sorrateiramente atingir
o desejado alvo.
Touché?
Edson Cruz, ilhéu.
CRISÂNTEMO
Como uma palavra pode
ser tão bela,
soar como a vida
e ao mesmo tempo
carregar o perfume
do temor
e da morte?
Edson Cruz, ilhéu
A PEDRA
- poema para João Cabral e Drummond de Andrade -
A pedra ensina
esteja embaixo
esteja em cima
seja dentro
do tacho
A pedra largada
no caminho
ao meio
ensina tudo
com engenho
E nos ensinares
da pedra
há rios mares
severinos josés
e janelas. . .
- por JL Semeador de Poesias, enquanto lia João Cabral e andava de trem pelos subúrbios da minha cidade –José
Luis dos Santos
olhos fechados
cigarras silenciosas
de sono e bebida
beijos na boca
de chorar
os cavalos bravos
de galopar
pelas ruas
da cidade vazia
chorar não chores
o teu cavalo te leva
o teu cavalo te acorda
o teu cavalo insone
reino da fuga
herói despido
ele te levará
- fluido de estrelas -
para ver mundos
e adormecer
js.
Um escrito sobre meu avô:
Chapéu de palha
calos sem oração
terra...
Sol quente na cabeça
o inferno em cima
terra...
Suor e esforço
fim do dia
terra...
Coletivo individualista
parando mais do seguindo
É terra ainda...
Abrindo a porta "meu amor"
pulando no pescoço "pai"
É terra ainda...
O peso dele comigo está
lutar nunca é vão
terra...
Mesmo tendo caladi-se
o sangue corre em mim
terra..
Redson Vitorino
A tristeza
Eu queria a chuva e negava o sol
Alguns momentos e havia um gole
uma fumaça que descia pela goela
tossindo e deixando-me
então eu percebia e negava-me
ela não estava perto
então chorei sozinho
Redson Vitorino
sábado, 29 de março de 2014
Eu fui um animal solitário numa outra vida
Nunca soube o nome do hospedeiro silencioso
do meu passado
Guardo resquícios de seus hábitos no meu
estranho modo de caminhar
Preservo uma audição que jamais pertenceu à
espécie humana
Eu fui um animal solitário numa outra vida
Ensinei meus filhotes a andar, beber água e
caçar antes de tudo por si mesmos
Depois, liberei-os para o mundo
Naquela vida não existia luz
Naquela vida as horas eram lentas
Naquela vida eu não precisava chorar
Eu costumava passear pelos galhos das árvores
ouvindo histórias de tribos do mundo inteiro
Eu fui um animal solitário numa outra vida
E nunca mais eu fui tão feliz.
Alexandra Barcellos
1 microconto noir
havia
matado 3 baratas naquele dia, mas qual delas teria sido gregor samsa?
Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo
quinta-feira, 27 de março de 2014
notas sobre Dalton Trevisan
1
O primeiro livro do Dalton que li foi Abismo de Rosas. Nunca
mais parei de ler o mestre. Desde o começo sabia que sua obra faria bem de
perto acompanhamento especial em minha vida, fosse pelo exemplo máximo do gênio
artístico, pela devoção ao trabalho constante, pela coragem para ser único e
radical em sua escolha. Hoje, tantos anos depois, agora que não lembro detalhes
do Abismo de Rosas, mas sim de seu espírito maior, já que os contos do Dalton,
vistos ao longo dos anos, não são para mim senão que um verdadeiro “poema
contínuo”, um pulsante painel humano, fica-me como síntese a imagem daquela
capa azul, com a pálida mulher nua, os bicos dos seios roxos e grandes, a flor
no cabelo, o rosto de perfil que traz o olhar que, na época, considerei egípcio
e austero. Mais a arara vermelha que imediatamente me remetia à casa da avó
paterna em minha infância, ou seja, não só o signo lido na arara da Curitiba
que fora e já não era mais, porém o de um Brasil que sofria o mesmo fenômeno,
quero dizer, um país cuja exuberância recebia (e ainda recebe) em troca a moeda
das mais variadas formas de violência e, por consequência, da aparência
hipócrita que tenta canalhamente eximir culpados ou, até, produzir a ingênua
ignorância e inconsciência sobre os atos vis que a todos nos pareceriam não
mais que banalidades do cotidiano – motrizes, se é que me posso arriscar tanto
em teorizações, da obra de Dalton. E aquela mulher de seios coloridos,
voluptuosa, dada, nua, ao mesmo tempo sem cor, ou seja, sem presença, como que
perpetuamente (dentro de uma sociedade altamente machista e violentadora)
fazendo-se colorir pela obra do escritor, em todas as suas facetas (imagináveis
e inimagináveis), ao longo da vida. Isso, certamente, para dizer o mínimo.
2
Quando olho, entre os tantos e inesgotáveis Daltons,
saltam-me um pouco mais nítidos quatro deles, que são, obviamente, facetas de
um mesmo. Talvez não sejam academicamente reconhecíveis, pois estão ligados
estritamente à minha experiência.
O primeiro. Minha avó materna era amiga da esposa do Dalton.
Elas se frequentavam bastante. O Dalton nunca ia. E meu avô julgava antipático
da parte do Dalton essa postura. Anti-social, pois. Mas não era só antipatia, a
meu ver. Era, até certo ponto, transgressor se pensamos numa determinada Curitiba
burguesa, de classe-média de trinta, quarenta anos atrás, bastante
conservadora, em que uma senhora cumpria certa agenda social sem o seu esposo.
Não devia ser nada agradável, para nenhum dos lados, nem para quem julgava,
tampouco para quem era julgado. Mas ainda assim, a esposa do Dalton (não me
lembro o nome dela, preciso perguntar para meu avô) mais o Dalton, bancavam tal
atitude, essa vontade (ou dificuldade, sei lá) dele. E nisso um modelo, um
padrão, dentro de uma comunidade, era colocado em xeque. Tem a ver com a vida
íntima do Dalton. Agora, me pergunto, quantos ali daquela roda liam a
literatura dele, compreendiam que sua postura também tinha a ver com a
construção de uma obra literária, quem compreendia que muitos de seus contos,
justamente, saiam de poções que incluíam até mesmo os afetos que aqueles
julgamentos todos provocavam? O quanto uma Curitiba nesse caso está dentro da
outra?
O segundo. Penso na Curitiba pré Jaime Lerner. Eu era muito
pequeno quando as transformações urbanas operadas por ele começaram. Minha
memória conhece mais uma cidade já mexida pelo Jaime do que a anterior. Mas
algo da anterior se mantém em algum lugar de mim, até mesmo saudosamente. O
segundo livro do Dalton que li foi a antologia (hoje um clássico) Em Busca de
Curitiba Perdida. Ali está a dura acusação de Dalton sobre um Lernismo que
forjasse, falsificasse uma cidade a partir de outra já existente, uma cidade,
por exemplo, merdosa, para inglês ver. Ali há o cruzamento temporal de duas
Curitibas, aquela dos colonos com suas galinhas nos quintais e seus vinhos de
garrafão sendo engolidos pela cidade tecnológica dos publicitários e designers,
a tal Curitiba de ponta. Dalton se vê no vórtice dessa pororoca temporal,
talvez por sua idade, por ter tido a oportunidade de viver a Curitiba anterior
e agora, ao longo dos anos noventa, saudável e na maturidade artística, estar
colocado no ponto nevrálgico dessa interseção entre o antigo, o moderno e
contemporâneo que se insinua. Ele encara e vive as transformações, pois não há
outra escolha para um artista de sua estatura. A cidade crescida,
inevitavelmente, agora incorpora outras múltiplas e polimorfas modalidades de
violência e, por que não?, de beleza, e a obra de Dalton tem o interesse por
cada uma delas.
Então, o Terceiro. O poeta do crack. Trágico, o crime sempre
ao alcance do ato de qualquer pessoa, do cidadão comum e inocente (será?), ou
do perverso inconsequente fora-da-lei. Na cidade cada vez mais amedrontada,
gradeada pela paranóia da segurança. É na rua que Dalton encontra as vozes de
seus bandidinhos viciados, de suas feiosas prostitutas de guetos. Até onde me
lembro, ele foi o primeiro escritor da cidade a enfiar em sua literatura de
modo explícito e sintomático o exacerbado consumo de drogas dos nossos dias,
seja pelos miseráveis, seja pelos meninos de família. E as consequências
físicas, psíquicas e, num âmbito mais amplo, sociais, que se seguem. Primeiro o
cidadão deixa de ser cidadão, depois o corpo deixa de responder ao mundo como
corpo e é só um estorvo a mais sobre o planeta do sem-sentido. O trafico também
não perdoa a dívida de ninguém. Nem o delegado corrupto perdoará. Foi Dalton
quem primeiro nos disse: olhem para isso. Sim, ele sempre viu e vê antes que
todos os outros.
O Quarto. Este Dalton se encerraria numa muito polêmica
frase que andei dizendo por aí um tempo atrás: todo Dalton Trevisan tem um
pouco de Emiliano Pernetta.
3
Dalton é cruel, o estilo corte seco, sem dúvida, mas também,
nisso, sonoridade e exatidão, a preocupação rítmica, melódica, a eufonia. Não
só o uso da gíria da rua, mas a mistura de um vocabulário chulo com expressões
que são peculiaridades só dele, marcas que se repetem, se reinventam a cada
livro. A violência no/do amor, suas ninféias famintas, o incesto muito que
humano, as balzacas desesperadas por gozo, outras incendiadas vivas, anciões
babando a sopa rala do desejo. A prosa de Dalton está cada vez mais próxima da
poesia, logo, mais próxima de nós os seres vivos, cada vez mais sustentada por
um mínimo de ação em que o epifânico acontecimento da linguagem se dá anterior
a necessidade de se contar uma história. Epifania no sentido Joyceano, a da
vida que brota porque tem que brotar, seja dos lugares mais impossíveis, mais
sem esperança, no caso dele, em sua maioria, banais e miseráveis. É daí que
Dalton tira a poesia, e é para a vida que ele a devolve, diria, sem dó nem
piedade, mas com uma das mais fulgurantes cargas artísticas que a literatura
brasileira (e até mundial) já conheceu. Ele responde com arte, sempre com arte
e não com ideologia demagoga. Por este exemplo, sua atualidade já se firma. Mas
há mais, há a construção estética de algo infindável, o prazer de lê-lo nunca
abandonará os seres humanos enquanto houver seres humanos. O futuro lerá Dalton
Trevisan como hoje lemos Shakespeare. Lemos para aprender, para tentar
entender. Lemos porque ele refunda uma ideia de ser humano. Lemos para existir
fora da barbárie. É uma História maior a que Dalton confeccionou, é a História
da modernidade e sua continuação, que hoje estamos vivenciando, a História do
século XX entrada com lâminas sujas nas costas do XXI. Viremo-nos com isso, com
essa dolorosa beleza. O universo de Dalton está tão bem confeccionado que, já
se provou, uma só frase faz o mundo todo. Sua ficção vem cada vez mais, repito,
aproximada da poesia. Lírico, Dalton inventou-se raríssimo. Se seu ataque
inicial acabava por ir nos espaços mais sombrios de uma Curitiba provinciana de
décadas passadas, sua obra hoje é a de um autor que não admitiu para si
descansar na glória e parar no tempo. A cada novo livro, obriga-se a enfrentar
problemas relacionados a Curitiba do agora, que é uma metrópole, e que é o
mundo todo. Sem dúvida, ainda há resquícios da província de outrora encruada na
mentalidade dos habitantes deste estranho lugar – a tais dimensões complexas, o
escritor não se nega. No entanto, que espaço, senão o risível, restaria na
contemporaneidade para seu vampiro canalha, quando a realidade mais real é
também a mais absurdamente hostil e sanguessuga? Pobre vampiro acuado, o canalha
de hoje não cabe em estereótipo algum – as garotinhas de dezesseis anos do
Baixo Trajano fariam, ora bolas, picadinho de Nelsinho. O mundo está por demais
pornô (em muitos sentidos), feito os mais recentes livros de Dalton Trevisan.
Luiz Felipe Leprevost
cantiga de roda
é uma cantiga só
de um poeta na estréia
nasceram bibi e dodó
as flores da paulicéia
a mãe é flor amorosa
o pai, violão, bandolim
uma com a face da rosa
outra com a cor do jasmim
bibi, beatriz, abelha
dodó, de caymmi, dora
uma na ponta da telha
outra na pele da aurora."
( set. 2008, romério rômulo)
Para quem me abraça: todos os meus dedos.
Para quem desalinha cabelos: os pelos do meu corpo.
Para que me beija: beijo de poro a poro.
O corpo: repouso de fendas abertas.
Os pelos: todos os meus poros.
Os poros: alma transpirada.
Veneno eficiente do beijo,
Desalinho em dedos,
Quem beija?
Para quem beija: fendas abertas.
Para quem abre: dedos, abraços.
Para quem repousa: o amor.
Roberta Tostes Daniel
(2003)
Ruas de Curitiba segundo um polaco
E o polaco diria:
Bein mau = Carneiro Lobo
Padre
Gostosinha = Padre Agostinho
Sandalia Marinha = Saldanha Marinho.
Ulisses Iarochinski
segunda-feira, 24 de março de 2014
Ciclos
O pedalar, um ciclo de vai e vem
que apenas
vai
vão
vamos
Magia fazemos
com as vindas e chegadas.
Nas idas e partidas, apenas lágrimas
escondidas atrás de um até logo.
A caminhada interrompida não é desistência.
Às vezes precisamos descer
antes do ponto final.
Nesses trajetos aprendemos sequências várias
e até criamos e/ou adaptamos outras tantas.
Percorrer tantas estradas que pensamos conhecer
para mascarar a ignorância diante de si próprio.
Após mapear-nos saberemos quais monstros nos habitam.
E quais perigos são reais.
A caminhada não é tranquila nem harmônica.
Entediante, só as paradas, a espera.
Seguir a passos lentos.
Correr.
Em ciclos que apenas vão
Deisi Perin
O passado assombra desejos.
O passado assombra desejos.
A consciência embriagada de culpa
denuncia fraquezas
aponta erros.
As lágrimas escorrem
para dentro
e os olhos secos não veem
a sombra no branco das montanhas
formando tua face.
As nuvens, inutilmente
embaralham tua imagem.
A névoa do talvez
tenta embaçar teu sorriso.
Lanço-me nas trevas
para ver melhor
o brilho das estrelas
e vislumbrar teu espírito delicado
e uma profunda beleza
na tua intensa e misteriosa
forma de preencher minha vida.
Deisi Perin
"... a língua bífida de radar pugilista
localizava a paz tísica em hábitos gregários, sobre os telhados crepusculares
de saliva anticoagulante. beijava delicado. aquela que era a entrega em caixa
de música e reproduzida melodia em disco de vinil. um comportamento trófico.
ele quase uma raposa voadora... "
Adriana Zapparoli
- esse é um fragmento de minha poesia, em O Leão de Neméia, publicado na coleção Caixa Preta (organização de Claudio Daniel) pela Lumme Editor. está disponível para aquisição pelo email da editora: vendas@lummeeditor.com
ou pelo site da livraria cultura
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=22586690&nm_origem=rec_home_geral&nm_ranking_rec=1
Adriana Zapparoli
- esse é um fragmento de minha poesia, em O Leão de Neméia, publicado na coleção Caixa Preta (organização de Claudio Daniel) pela Lumme Editor. está disponível para aquisição pelo email da editora: vendas@lummeeditor.com
ou pelo site da livraria cultura
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=22586690&nm_origem=rec_home_geral&nm_ranking_rec=1
não é por vaidade
que se demonstra haver nas coisas
o seu desejo de ver
debruçar os olhos além dos ditames
da forma, talvez
se conhecesse a cadeia de escândalos
na qual uma mulher se abandona ao espelho
profundamente olha
querendo a sucessão
de cada existência, ínfima, que a penetra
é um dardo e que tem por olho a direção
quer fazer de todas as coisas o alvo
e está em todas as coisas
ela mesma, ausente
um palco
catártica e silenciosa
até fazer um furo -
se não refratasse tanto
no escuro, a pupila.
Roberta Tostes Daniel
Parte arrancada
O ódio bebo de dentro pra fora.
O medo bebo de fora pra dentro.
De noite não é o olho que chora:
É o estouro da represa do tempo.
meus monstros ainda os vejo;
Eles ainda me apagam sempre;
Mas agora só olho o presente,
me achando de novo no espelho.
nunca deixei de ser muitos:
aqueles muitos que eu não era:
os espanco onde antes houvera:
mortes sem vida sem primavera:
delirios e pesadelos abruptos.
E renasço da flor de meus lutos.
Julio Almada, Poemas Mal_Ditos
A tatuagem cobria-lhe o abdomen, virilha e roçava a perna e,
ela o amou só com as tatuagens de sempre: um outro desenho em todos tatuado:
conheci gente que só tinha o corpo como patrimônio e ainda outros que de seu só
tinham o sarcasmo, o escárnio e o esquecimento. Ela pediu-lhe: retoque o nome
da outra: faça um cacete ou um dardo ou uma teia de aranha , mas cubra esse
nome: ah, por precaução no caminho tatue uma bala em movimento para extirpar
todo passado.
Julio Urrutiaga Almada
Extensas Brevidades
O fio de luz
é a teimosia.
De algo ser:
a brevidade da vida.
Julio Urrutiaga Almada
Vida de cão
O cachorro vira-lata atravessa a rua movimentada, por São
Francisco de Assis, não é atropelado, a língua de fora pede sede , trançando as
patas de fome, com a cabeça baixa e rabo entre as pernas de desesperança para
na frente de uma loja material de construção. Olha algumas casinhas de cachorro
que ficam expostas do lado de fora da loja, parece sonhar com sua casa própria,
ninguém vem atende-lo e nem toca-lo. Tímido, olha para os lados, percebe-se
indiferente, entra em uma das casinhas. Até as dezoito horas daquele dia,
estará protegido das ruas , quem sabe, orando à São Francisco por dias
melhores! JDamasio
procurava o amor esquecido em lugares obscuros e sem
sentidos; e procurava ... procurava o amor entre o claro e o escuro, pelos
rios, entre os mosteiros beneditinos, entre os europeus e os neolatinos;
procurava o amor por caminhos inseguros, entre os momentos duros, impossíveis e
mais cretinos; procurava o amor entre os muros e as imagens de homens santos, em
seus detalhes bizantinos, e seus assuntos frívolos; procurava o amor em
horários vespertinos, entre colchões e camas de pino, em espaços clandestinos
...
procurava o amor para beber os meninos, seu objetivo, até
matá-los imaturos em seus espaços cabotinos.
porque os tigres são mais bonitos
no inverno... e as adagas
virulentas. não dói quase nada.
Adriana Zapparoli
Aviso de camarada
__ Alô, Neguinho?
__ É ele, quem?
__ Alemão, fala aí, como anda as coisa?
__ Eu tô vendo o...
__ Legal que está bem, cara! tava grilado com o camarada,
Tive um péssimo pesadelo com você parceirão!!
__ Mes-mesmo...?
__ Sim, nem devia te contar para não ficar pirando , sabe
como é! Mas precisa saber do barato do sonho, ta ligado? Cara! Você estava na
minha frente agonizando, tinha levado dez pipoco só nas pernas e braços, dois
na barriga um na fuça. Sei lá quantos ao todo, nem sou bom de matemática mesmo,
entende! Estava lavado de sangue, se contorcendo todo e esticando sua mão para
mim. seu sangue escorria pelo bueiro, Foi horrível!
__ ...
__ O pior que tudo isso por conta de um divida boba. Um
acertinho de uns bagulho. Acredita?
__ Acredito, sim! Acre-dito nessa semana, juro, pago aquela
grana!
__ A tá... Nem tava pensando nisso. Espero só até sábado
aqui em casa, sem falta! Falou amigão, meu camarada.!
JDamasio/ Julio Damásio Morreu + 113 continhos / 2006
Testamento
Meus velhos amigos não são
Velhos. Meus velhos amigos
São leves.
Nem longos, nem muitos, nem breves.
Meus velhos amigos leves
Tampouco não sendo muitos
Para mim são poucos.
Não pesam, não faltam não sobram.
Mesmo leves
Não há quem de mim os leve.
Quando se vão nem eles sabem.
Não voltam pois nunca partem.
Julio Urrutiaga Almada do Livro Poemas Mal_Ditos
A vida é um cão que nos devora começando pelos dedos
Inventário das perdas nº 1
Nada dirias de veneno se bebesses o veneno-sangue de asas
partidas dos enlaces apodrecidos. Onde nada mais resta que sentir enjôo ao ver
a mesa do Amor - esta fictícia mesa de bodas embolorando ano a ano - As
laranjas apodrecidas de cascas encrespadas verdes. Duas laranjas-corações em
uma fruteira desbotada. E o tempo acrescentando bolor, acrescentando bolor...
Bárbara Lia - pequeno fragmento do romance inédito "A
vida é um cão que nos devora começando pelos dedos"
Notícia
O beijo
Que me deste
Era frio
E me acabou
O amor
Que eu mentia
Era louco
E te zombou
O jornal mancha
Meus olhos
Tinta que não sangra:
Vicia.
Julio Almada, Do Livro Poemas Mal_Ditos
Fui visitar um antigo sebo de Curitiba, na marechal Deodoro,
gosto de folhear livros velhos, os fungos me fazem bem para a sensibilidade.
Para minha surpresa, no local havia um novo e pomposo salão de beleza. Também
não faz muito tempo, fui até uma tradicional livraria, XV de Novembro, queria
ver quantos dos meus livros ainda estavam lá, nenhum. Na verdade nem a livraria
estava, havia cedido espaço para uma loja de perfumes. E assim, as pessoas
seguem na vida mais bonitas, maquiando e perfumando a ignorância.
Julio Damasio
Faltando um luar
A indiferença faz a diferença?
A indiferença dela
É diferente.
Parece soda e ácido
Mas não passa:
De um rosto transparente,
Que abandonou os olhos
E o coração,
Ao desconsolo da mente.
Julio Almada do Livro Poemas Mal_Ditos
"Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como
escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores
palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é
que vais saber quem são teus contemporâneos? A única contemporaneidade que
existe é o da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela,
mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e
catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo
que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu,
que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano."
(Mário
Quintana)
hoje você não sabe o que eu fiz hoje
a minha intuição de que 2013 era meu último ano na arte,
tava certa
me sinto realmente cada vez mais distante
tenho visto gente morta (viva)
pode que seja por eu ainda estar entre elas, mais do que por
ter poderes especiais
sobre a minha briga pesada de ontem, chego em óbvias
conclusões: todo mundo tem ajuda de algum lugar (quem dera o meu pai, também um
senhor de respeito como aquele - por alguns momentos pensei que ele estivesse
armado, não sei -, estivesse na minha manga pra uma cartada pacificadora), todo
mundo está devendo pra alguém, todo mundo está mordendo alguém, todo mundo está
se submetendo a alguém
se bem que, fora da moral, eu pudesse afirmar: dívidas tenho
muitas, dúvidas sobre elas bem mais ainda
o que eu fiz até aqui, eu fiz
alguns podem achar bom
a maioria pode achar uma merda
pensem o que quiserem, sei lá se escrever é uma íntima
pesquisa humana
sei lá se escrever é entrar num laboratório afetivo e
recombinar uma série de poções explosivas
sei lá se escrever é inventar outros mundos possíveis e
impossíveis
sei lá se escrever nada responde
sei lá se escavo, se vasculhe o que não compreendo, se ao
escrever queimo mais a mão
enquanto você couber, você suportar, tudo é pesar do mundo
(tirei isso mais ou menos de um poema da Ana Cristina Cesar)
e deve de ser por aí a certeza de estarmos vivos
vou terminar o livro que tô escrevendo, aí vou fazer mais um
do mesmo tamanho
com eles, mais o Dragãozinho Ferido, fecho a Trilogia da
Geada
e então, deu
se você acorda de manhã, tem que se voltar pro coração
em rancor, júbilo, fétido bafo da boca aberta, tédio,
esperança, pele quente qual pão saído do forno, coragem, dor, você tem que se
voltar pro coração
chame estar vivo do que for, tem muito segredo aí
a vida ainda não se negou
por pouco calor que haja
por pouca luz, pouco amor, a vida não se negou
sabe, de todas as pessoas com quem já discuti “ideias” ao
longo da vida, de grandes intelectuais a alcoólatras donos de botecos, sempre
sempre sempre que seus argumentos terminavam, vinha o golpe desesperado: que
que cê tá falando, você é um playboy de merda
é o típico jeito de tentarem me ofender
lido com tal baixeza tem anos
pra muitos eu sou um playboy de merda
por outro lado, alguns playboys (de merda?) de verdade (sim,
eu os conheço) me chamam de poeta
serão esses playboys mais sensíveis que parte do “pessoal da
cultura” da cidade?
ah realmente não sou um dentuço cheio de ânimo
um dia tive uma namorada e a nossa canção era Alma Gêmea, do
Fábio Jr - eu curtia muito
pode que hoje não tenha flores no café da manhã, mas buzinas
elas ao menos provam que você ainda não tá sozinho num mundo
de sozinhos
uma cidade “pode destruir um indivíduo ou permitir sua
realização, dependendo muito da sorte” (não sei onde li, mas li)
você acorda de manhã e pode entoar a Oração Védica, se
quiser
onde há ventos suaves, rios tranquilos, plantas que são
alimento e remédio
e árvores com doces frutos
e vacas que emitem luz e sol no self
e a terra é benéfica de forma igual pra todos
mas o mundo andergraude (de todas as suas “ontem a noite”) é
bem uma igrejazinha como qualquer outra
e mesmo nela a hipocrisia reina – humano seu nome é
hipócrita
meus amigos politizados não querem que eu seja um produto
meus amigos politizados não admitem que eu seja um produto
vejo em mim a indiferença por alguns atores crescer
vertiginosamente
e pelo mundo do teatro em geral
sinto-me tolo por ter acreditado em mentiras como aquela de
que no futuro o teatro será o último oásis onde o homem encontrará o homem numa
espécie de redenção
um bando de passarinhos cruza o céu e entra nas árvores –
lindo
uma mulher gorda se inclina cobrindo os seios com os braços
cruzados – lindo
as cabeças dos homens de negócio parecem frutas amadurecidas
demais, estranguladas pelos colarinhos – massa
chegam-me porções de rostos sem sorrisos mas com a Oração
Védica ou sem ela, se você acorda
tem que voltar pro coração, logo, pro clichê incansável dos
publicitários do amor, que são os compositores populares de todos os tempos e
os seus imitadores baratos infestando as noites dos bêbados de sempre com seus
aplausos de marionetes uns dos outros
sim, tenho visto gente morta (viva)
e pode que seja por eu ainda estar entre elas, mais do que
por ter poderes especiais
daí que pode que eu esteja vivo nesse buraco
e que alguém que vê gente morta (viva) esteja me vendo
a umidade faz mal aos brônquios
e o cara do andar de baixo tem calopsitas de estimação
soltas no apartamento
lá fora, por outro lado, há o transporte coletivo “da melhor
qualidade”, segundo a assessoria dos políticos – ambos, políticos e assessores,
são “u ó”
mas ninguém jamais ficará sozinho num mundo de sozinhos
provando quando onde e como o modelo do fordismo é a coisa mais escrotamente
antidemocrática
ein?, pergunta um campeão
andar por essa vida a essa hora é mesmo um puta de um
demasiado contar com a sorte
sobre o trabalho musical que um dia fiz, bom, nunca pretendi
mais do que poder afirmar: eu sou uma dupla sertaneja
então, foda-se
hoje já não tenho dúvida que aquele foi o meu último ano na
arte
Luiz Felipe Leprevost
Um motorista de táxi velho. diz "sim, senhora",
sem se sentir depreciado. dirige com tranquilidade. não falo com ele, porque
gosto dos raros motoristas de táxi silenciosos e com sentimento de cumprimento
de dever. só encontrei mais um, em Curitiba. era japonês (não parecia um
descendente, que é mentalmente mais inquieto), e parecia tranquilo em dirigir e
ser atencioso sem falar nada. é tão difícil encontrar essas pessoas que parecem
ter saído de um filme de Ozu, aparentemente imperturbáveis diante das
contrariedades da vida. me impressiono com quem cumpre tarefas sem que pareçam
um transtorno. ou que elas tenham que demonstrar o contrário, que é uma
alegria, quando se vê que é uma pesada imposição social. não sei porque admiro
os que se disciplinam quando meu espírito é anárquico. O anárquico vem por
conta de sentimentos desencontrados. de eu nem sempre saber o que sinto ou
penso. sensações que parecem não estar no lugar, se é que existe um lugar para
elas. também, de outro lado, a disciplina pode eliminar o caos necessário para
as transformações. e se é imposta por outro, volta a se transformar no caos.
Marilia Kubota
conversa surreal há pouco:
Roberta Tostes Daniel
- pesquisas recentes apontam a existência de um campo
magnético ao redor das camas, incidindo sobre os corpos, em dias de chuva.
desconfia-se da umidade, mas deve ser preguiça mesmo.
Quando se chega
ao branco dos cabelos
e nos doem e estalam os ossos
e o cristalino dos olhos
já perdeu os seus cristais
e as posições do Kama Sutra
são mais infiéis
que a posição do Buda
coluna ereta e mente liberta
de todos os ais
é que se descobre
ao lavar os pés
ainda com certa graça
e muito júbilo
que se pode pousar
sem academia
o corpo no ladrilhos
em posição de garça.
Rosa ramos.
sexta-feira, 21 de março de 2014
notívago norte
nave lúcida, nave náutica. serei nausica neste vale de
nuvens niqueladas. pois minha nítida nárnia nebulosa sonda os navios narcóticos
de nuances que nos nivelam ao never more!
nanosferas nórdicas, ou de nêmesis, nocauteiem o nosso nunca
nidificar nas necrofagias nativas de nosferatus neandertais! nas núpcias de
nadas, que possamos nascer numéricos em netunianos núcleos! napoleônico me
negocio, nudista sob nogueiras noturnas. eis-me néon necrosando novelas
nutrientes. nivelado como um nimbus noturno sobre os noticiários: creio-me
nômade, noutrolugar.
(e que a nova ortografia se negrite!)
Andréia Carvalho Gavita
O tempo mancha meus livros e meu rosto. É assim, tirano
tempo... Mas o tempo que conversa comigo (no entretempo de minhas leituras) se
justifica - olhe também para o valor das marcas inscritas nas suas páginas.
Sim, está certo, meus livros e meu rosto registram também inúmeros afetos.
Glória
Kirinus
Ponto Final
ocluso destino
nó esgarçado
pés resvalando
musgo e cascalhos
o anel era vidro
o favo fel
tudo se quebra
morre
anoitece:
ponto final
Bárbara Lia\
quarta-feira, 19 de março de 2014
Rascunho de si mesma. Boba, passional, romântica. Ama boa
companhia e boa litetarura. Dedicada, delicada, mas muito introvertida. Está
aprendendo a lidar consigo mesma e com o próprio turbilhão emocional. Pessoas a
deixam feliz e nervosa. Só gosta de receber flores em vaso, devidamente
enraizadas. Gosta da terra e do mar. Ama as estrelas, e já pensou seriamente em
nascer passarinho.
Às vezes, na tentativa de encontrar alguma possibilidade de
contradição nas coisas, a nossa imaginação vai longe. A esquerda e os
defensores da democracia de forma geral, têm uma dívida histórica com estas
novas gerações, que hoje por desconhecimento do que foi a ditadura nesse país,
defendem a "intervenção militar". A transição "democrática"
do fim dos anos 80, fechou nossos olhos para o passado de tortura e matança da
ditadura militar, a nossa parcimônia fez com que até hoje os criminosos da
ditadura não pagassem pelos crimes que cometeram. Por isso, em tempos de
chamadas para novas edições de 'marchas da família"... é chegada a hora de
uma campanha decisiva em nome do restabelecimento da verdade, da punição efetiva
dos crimes praticados nos governos dos generais. Aproveitemos o cenário, que
parece caótico, para nos posicionarmos contra qualquer regime anti-democrático
e mais que isso, vamos ao debate com as novas gerações!
Roberta Tostes Daniel
Joana Corona (1982-2014)
Homero Gomes
"agora há o resquício,
e há também a imagem que me cria,
para que eu siga sendo
este outro.
agora sou um traço de pólvora.
a fotografia-fuligem, a imagem-pó -
o livro-espectro."
{No poema Petróleo, publicado originalmente na revista Lado
7, n. 4, Rio de Janeiro, 2012.}
Carpe Diem
fluxo anêmico dos carros
(de luxo)
sol selado
de adesivos Mc Donald's
arabescos eróticos
na fumaça cinza
da panificadora ao lado
semente masculina
perfumada
amaciando o tecido
da minha pele
água calêndula no ralo
revela a forma exata
do rosto estrangeiro
e do sexo formigueiro
de prostituta de Veneza...
espie pela fresta do Zeppelin
dos sonhos...
meu mundo:
sem florais de Bach
feng shui
mantras
músculos da alma - expostos -
cicatrizes mortas,
lâmina que corta escaras
revela
o mármore de carrara
- Vivo -
Bárbara Lia
A última chuva\2007
POEMA DE OLHO NA PASSEATA DOS PROFESSORES
engraçado, desta vez, eu aplaudir a multidão
suas roupas e gritos de sol amarelo
aplaudi com todas as forças do coração
sozinho, do outro lado da rua, em paralelo
engraçado ouvir palavras de ordem
e não as buzinas dos carros presos no enrosco
a avenida abriu-se em terno pedido: ACORDEM!
e nas janelas fáceis surgiram faces sem rosto
engraçado ver as bandeiras trêmulas sem medo
e o sol queimar a pele dessa nova cidade
nenhum soldado armado dentro do enredo
a passeata passou em paz pra minha felicidade
antonio thadeu wojciechowski
segunda-feira, 17 de março de 2014
sábado, 15 de março de 2014
A felicidade do Fotógrafo.
Poucas cenas falam mais que essa. Se uma imagem vale mais
que mil palavras, essa vale um milhão de versos, e..., alguns eu fiz:
Leiam e comentem.
Meu carinho a quem tiver a pachorra de ler até o final.
Olinto Simões
Todo Poeta que se preza, não recusa convite pra Poetar sobre
o belo, mesmo que esse belo, seja profundamente feio, pela situação que
apresenta e pelos comentários infelizes, dos infelizes que Poetas não são.
ESTÁTUAS CARENTES
De costas pro belo,
Plantaram o Poeta,
E o mar não reclamou,
Por sabê-lo mais próximo,
Mesmo que de costas.
Com a Estátua do Poeta,
De costas pra costa,
A costa ficou mais bela,
E quem ali passa,
Nota a estátua de frente.
Contudo não há quem enfrente,
O sofrimento do outro,
E pra isso dá as costas,
E não há quem comente,
A conduta da Estátua.
O carente que carente segue,
Deu as costas pra costa,
Sentou ao lado do Poeta,
Ficando de frente pras pessoas,
Que como estátuas dinâmicas,
Passavam e seguiam em frente.
É..., não há quem enfrente,
A cena que de frente,
Dá as costas pra costa,
E todos que são pessoas,
Agem como se estátuas fossem.
O carente se aninha ao colo da estátua,
Mas, na verdade o que mostra é mais feio,
Longe do carinho frio e do belo demonstrado,
Mostra a ausência de colo e a falta de ninho,
Em cada pessoa que passa e dá as costas.
Pessoas de coração duro mostram-se carentes,
Estátuas humanas, duras, inflexíveis, feias,
Movem-se muitas vezes ao longo da costa,
Sem ao menos se olharem de frente,
Pois, não há quem o olhar carente enfrente.
E assim resta a foto do feliz fotógrafo,
Que de frente para o belo,
Enfrenta o belo da costa,
De costas pras pessoas de costas,
Olhando em segundo plano o mar,
Gravou em imagem estática,
Em plano primeiro, o feio.
Feio sim, o não movimento do Poeta,
Que como estátua não abraçou,
O carente que na estátua se aninhou,
Afinal, ela é estátua e não sente,
A dor que na foto não aparece,
Mas é sentida por quem de frente,
Tenha coragem e enfrente,
Quem por medo de sofrer,
Dá as costas pra frente do belo.
A foto fica,
A imagem fica,
A estátua fica,
Os carentes continuam,
A carência permanece,
E não há quem assuma,
Que carente é..., e a isso..., enfrente !
Olinto Simões – 14 de Março
O assassinato da poesia
Um amigo me mandou o recorte com a notícia bizarra: um
professor russo matou a facadas um colega por este defender a tese de que a
única literatura verdadeira é a prosa. Parece que estavam bêbados, o que torna
a coisa mais verossímil. O amor dos russos pela literatura é desses paradoxos
históricos inexplicáveis – de meados do século 19 às primeiras décadas do
século 20, o país foi um dos centros fundamentais da literatura moderna, ao
mesmo tempo em que se mantinha como um dos mais atrasados do mundo, uma
autocracia cega reinando sobre uma imensidão de pobreza medieval. Mas São
Petersburgo e Moscou eram centros literários extraordinários, em que se moviam
monstros como Dostoiévski, Turguenev, Tolstói e Tchekov.
A partir da década de 1930, o terror stalinista destruiu a
inteligência do país onde quer que ela levantasse a cabeça – Mikhail Bulgákov
(1891-1940) talvez tenha sido o último grande gênio da prosa russa, mas sua
obra-prima O mestre e Margarida foi publicada apenas décadas depois de sua
morte. E o célebre autor de Lolita, Vladimir Nabokov, só sobreviveu de fato ao
se tornar um escritor americano.
Os russos leem muito e têm a poesia em altíssima conta –
recitais de poesia com uma multidão de ouvintes eram eventos comuns na Rússia.
Assim, a discussão de dois russos bêbados em torno do valor da prosa e da
poesia começa a soar como uma cena realista. Basta ler algumas páginas de
Dostoiévski para entrar no clima – seus personagens estão permanentemente no
limite das questões transcendentais da vida, numa tensão mortal de pontos de
vista contrastantes.
É verdade que ninguém precisa matar por isso, mas a distinção
entre prosa e poesia fascinou este modesto cronista nos seus tempos de
universidade a partir de um outro russo, o filósofo Mikhail Bakhtin
(1895-1975). Em um de seus textos, Bakhtin sugere que a voz do poema é sempre a
voz do poeta; o poeta se confunde completamente com o verso que canta. E a voz
do prosador é sempre a voz de uma outra pessoa; o prosador, covardemente,
esconde-se na linguagem dos outros.
Fiquei tão apaixonado pela ideia que escrevi uma dissertação
acadêmica a respeito, tentando convencer o mundo desta verdade cristalina. Mas
ninguém concordou: meu trabalho dava a impressão de que os poetas são uns
egocêntricos autocentrados e os prosadores, uns caras legais que ouvem os
outros. Parecia que eu estava falando em causa própria, já que nunca escrevi um
verso que prestasse. Pior: os poetas seriam “autoritários”, enquanto os
prosadores posariam de “democráticos”. Num tempo como o nosso, nada pode soar
pior. Bem, não quero dar uma de oportunista, mas a notícia de jornal parece
comprovar empiricamente a minha tese: o poeta, ao ouvir aquela besteirada do
prosador, simplesmente puxou da faca, fez justiça com as próprias mãos e foi
beber mais um trago.
Ainda bem que sou brasileiro, ou não estaria mais aqui.
Cristovão Tezza.
Gazeta do Povo. 18/02/2014
Do paraíso brasileiro aos comentários da internet
Pense o leitor neste quadro: era uma vez um país bonito por
natureza, banhado por mares verdes e azuis, onde vivia um povo alegre e
cordial, que jogava futebol, brincava o carnaval e sorria o dia inteiro. Tudo
lá era divertido, sob a trilha sonora de um perpétuo samba exaltação. Pobres,
ricos e remediados eram felizes, a inveja e o olho gordo não prosperavam, e não
se via violência. Pouca gente sabia ler e escrever, o que não fazia falta,
porque a felicidade era cada um vivendo tranquilo no seu cantinho enquanto
sábios letrados tocavam o barco. E o resto do mundo, de tempos em tempos,
pasmava-se com aquele paraíso sorridente, capaz de façanhas incríveis, para
grande orgulho nacional.
Este conto da carochinha é uma das mais resistentes
expressões de um secreto imaginário brasileiro: as pesquisas indicam que somos
um dos povos mais felizes do mundo. Como a felicidade é um valor subjetivo –
quem pode medir minha felicidade senão eu mesmo? –, é preciso acreditar no
otimismo do país. Em qualquer lugar do mundo, dizemos a palavra mágica –
“Brasil!” –, e o interlocutor sorrirá com simpatia.
A questão é que o mundo vem mudando tanto que até o Brasil
largou a preguiça e passou a correr atrás do futuro, porque uma das faces da
nossa felicidade é o gosto novidadeiro. Daí vieram os computadores, os
celulares, a internet, o facebook, o tuíter, o G3, os tablets, o G4, a tevê
digital, o GPS, os selfies, o BBB – e, principalmente, a seção de comentários
das páginas da internet.
Quem jamais escreveu nada nem nunca leu nada começou a
adentrar no mundo maravilhoso das letras. Com mais eficiência do que as escolas
arruinadas que os estudantes vão largando pelo caminho, a internet obriga todos
os dias as pessoas a ler e a escrever, catando milho nos teclados. Súbito, ler
e escrever – essa tortura escolar – passou a ser uma coisa legal, como um
código inventado por crianças. Este mesmo cronista, um clássico otimista
brasileiro, chegou a acreditar que, finalmente, o Brasil largaria a dança da
chuva e começaria a ler em massa, numa explosão civilizatória nunca antes vista
neste país.
Obviamente, há muita vida civilizada na internet, em espaços
de interesse específico; mas nas seções abertas de comentários políticos
descobrimos que todo brasileiro é black bloc; com a cara tapada ou descoberta,
um outro povo emerge das profundezas do horror com sangue nos olhos e porrete
na mão a dar pancadas em tudo que apareça à frente; um rancor sem cabeça nem
letras explode com a volúpia da estupidez diante de qualquer assunto; naquelas
linhas, nenhuma referência de valor sobrevive além do próprio desejo. O país
inteiro, da “presidenta” ao último cidadão, comunica-se em comentários de
internet; e black blocs destruindo ruas são comentários ao vivo, a
contrapartida analógica da fantasia digital.
Cristovão Tezza.
Gazeta do Povo.25/02/2014
Conversa entre livros
Ao subir até minha biblioteca, algumas vezes tenho a
impressão de ouvir um discretíssimo burburinho. Um murmúrio, um ruído secreto,
como restos de palavras, ditas quase em silêncio, ou mesmo em silêncio. Como se
eu flagrasse meus livros, na minha ausência, mesmo fechados e imóveis, dialogando
entre si. Livros que conversam com outros livros, em um diálogo secreto que
arrasta o leitor, que o envolve e o alimenta. Penso nessa estranha sensação
enquanto leio duas narrativas infantis de Shel Silverstein que acabam de sair
pela Cosac Naify: A Parte Que Falta e A Parte Que Falta Encontra o Grande O.
Penso em um terceiro livro para crianças, Quando Meu Gato Era Pequeno, de
Gilles Bachelet, lançado pela Estação Liberdade, uma narrativa que dialoga com
as duas primeiras.
A primeira delas, A Parte Que Falta, narra a história de um
círculo a quem falta uma parte — como uma torta redonda que teve uma fatia
roubada. Silverstein conta a aventura deste círculo em busca de seu
complemento. Ele sai à procura da outra parte em outra parte, não em si mesmo.
Enquanto rola, canta uma canção: “Oh, busco a parte que falta em mim,/ a parte
que falta em mim./ Ai-ai-iô, assim eu vou,/ em busca da parte que falta em
mim”.
Como lhe falta uma outra parte, ele não consegue rolar muito
rápido — e assim pode conversar com uma minhoca, ou sentir o aroma de uma flor,
ou ainda brincar com um besouro. Um dia, acha que encontra a parte perdida —
alguém que tem o formato da fatia de torta roubada. Ela reage: “Não sou a parte
que te falta. Não sou parte de ninguém. Sou parte completa”. Segue em frente e
encontra outras partes, mas elas, pequenas demais, ou grande demais, nunca nele
se encaixam. “Certa vez, pareceu que tinha achado a parte perfeita, mas não a
segurou forte o bastante, e a perdeu”. Outra vez, segurou com força demais, e a
quebrou. Nada dá certo em sua busca.
Por fim, o círculo encontra uma parte que nele encaixa com
perfeição. Mas agora que está completo passa a rolar com muita rapidez e não
consegue mais cheirar uma flor, não pode sequer cantar. Entendeu que a fusão
absoluta é, na verdade, uma prisão. “E, com cuidado, pôs a parte no chão e
rolou devagar para longe”. A história continua no segundo livro, agora na
perspectiva da parte que falta, e não mais do círculo. Também ela busca um
encaixe, mas nenhum dos círculos que ela encontra lhe serve. Alguns deles
tinham muitas partes faltando, outros tinham partes demais e nelas sufocavam.
Até que um dia achou o círculo em que enfim se encaixava. Acontece que, depois
disso, a parte começou a crescer e o encaixe se tornou asfixiante. Sabe que não
pode recuar, que precisa continuar a crescer. Abandona, então, o círculo que,
desolado, sai cantando: “Busco a parte/ que falta em mim/ uma que não/ cresça
assim...”
Até que um dia a parte carente encontra o Grande O, um
círculo perfeito. “Acho que você é aquele que eu esperava”, ela diz. “Mas não
falta parte alguma em mim”, ele protesta. Desiludida, volta a ficar sozinha e
decide não mais procurar a parte que lhe falta. Ao contrário: resolve aprender
a rolar sozinha. No início é difícil, mas ela insiste e luta, até que consegue
começar a quicar. Está rolando! A parte que falta aprende que o encaixe que lhe
falta é com ela mesma. Que ela própria é o seu sentido e o seu destino, e não
alguém que venha de fora. Só depois disso, ela consegue, de fato, se aproximar
do Grande O. Quando descobre que mesmo uma parte é uma coisa inteira. E que a
verdadeira aproximação só se dá entre seres inteiros.
Os dois livros me levam à leitura de Quando Meu Gato Era
Pequeno, de Gilles Bachelet. A história simples de um homem que adota um gato e
os novos desafios que isso lhe traz. Esta é a história que lemos: um homem
adota um gato. Mas nas ilustrações do próprio Bachelet o gato não é um gato, é
um elefante. Que se aninha em sua cestinha para dormir. Que toma seu leite com
voracidade. Que arranha as poltronas e passa horas a dormir. Que gosta de
dormir entre as pernas de seu dono e se entristece sempre que ele sai de casa.
O choque entre palavra “gato” e a imagem do elefante produz no leitor um
delicioso estranhamento. Algo parece fora do lugar — algo parece incompleto,
como nas histórias de Silverstein. Algo parece estar faltando. Mas não: a
divergência entre a narrativa e os desenhos é uma afirmação veemente da
liberdade do autor, Gilles Bachelet. Em seu livro de ficção infantil, ele pode
tudo. Não precisa seguir a lógica, ou o bom senso. Não precisa ser claro, ou
coerente. É assim que chega a si — como o círculo e a parte de Silverstein, que
se bastaram sozinhos, e só assim puderam chegar ao outro. Aceitando a
diferença. Fazendo uso do incrível poder conferido pela liberdade.
Lembro aqui de meu sobrinho Eduardo, de nove anos, que
recentemente me perguntou. “Por que existem perguntas que não têm respostas?”
Tentei explicar que ele estava dando o primeiro passo num terreno muito
estranho, mas muito belo: a filosofia. Não sei se chegou a entender o que eu
quis dizer. “Onde ficam essas respostas que não encontram suas perguntas?”, ele
insistiu em perguntar. Tentei lhe dizer que as perguntas sem resposta não
precisam de respostas, e que as respostas sem perguntas não precisam de
perguntas também. Em outras palavras: tentei lhe mostrar que no mundo as coisas
nem sempre se encaixam, grande parte das vezes divergem. E que não existe o
encaixe perfeito, ou a perfeição. Assim que reencontrá-lo vou lhe dar de
presente os livros de Silverstein e de Bachelet. Não que neles meu sobrinho vá
encontrar as respostas que procura e não acha. Mas entenderá, tenho certeza, a
beleza das perguntas. Como, mesmo sem respostas, elas nos alimentam. Como elas
nos fazem bem.
Talvez venha daí o burburinho que acredito ouvir cada vez
que subo à minha biblioteca. Mesmo fechados, os livros falam ao mesmo tempo. Um
não espera resposta do outro — todos têm algo a dizer e isso lhes basta. Ou
pelo menos deveria bastar.
José G Castello.
Gazeta do Povo. 09/03/2014
Os desastres do calor
Aqui, nas Gaivotas, começo a acreditar firmemente no
aquecimento global. De fato, logo as geleiras do Polo Sul vão derreter, as
águas subirão e cobrirão este deserto. Ai de ti, Matinhos! O calor, o silêncio,
a solidão, o suor, a mecânica monótona dos ventiladores praticamente inúteis
mesmo quando paralisamo-nos a um palmo deles, as misteriosas incursões do
lagarto pelo quintal, todo o concerto do tempo e do espaço vai como que nos
achatando a alma.
Largados na cadeira, na rede, na cama, na breve sombra, vamos
chegando, enfim, à substância mortal da preguiça, nossa querida e mal amada
companheira. Chegamos à transcendência do fazer-nada. Todo gesto se derruba
antes de começar. A persistência bruta do calor não nos deixa nem sequer
dormir, ou esquecer o próprio calor, ou pensar em algo que não seja ele mesmo,
o calor e seus vapores. Até as expedições à geladeira – a doce água fria
gorgolejando garganta abaixo, que nunca é suficiente – parecem um calvário. O
alívio do gelo é uma miragem de segundos, e o suor volta a brotar. Ventiladores
fazem girar o ar quente, no gemido constante dos motores incansáveis. Até as
moscas sentem o peso da atmosfera, o clima inexorável, e sabem que não vai
chover tão cedo.
Mas eu preciso trabalhar. Cronista não tem férias. Quem
mandou largar o emprego fixo, a vida segura, o ar condicionado da repartição?
Você não queria ser escritor? Aguente o tranco. Levante esse traseiro gordo da
rede, como dizem os filmes dublados – mas nem isso o faz rir. Abra o notebook,
escreva uma frase qualquer e toque em frente, seguindo o conselho dos
clássicos. Quem sabe dê certo?
Mas resisto. Sair da rede é uma tarefa acima das minhas
forças. Busco uma desculpa para continuar fazendo nada: talvez antes um banho
de mar, contrariando todos os meus princípios? Cada vez que me imagino andando
naquela areia fervente que agarra e queima os meus pés chatos, enquanto o sol,
sádico, arranca lascas da minha pele rala, os olhos espremidos de fotofobia e
lágrimas, a claridade brutal, ou ainda o desconforto grudento dos cremes
supostamente protetores que me transformam num bacon humano – cada vez que vou
ao mar descubro minha identidade secreta de vampiro, o horror à luz do sol que
há de me transformar em pó, a atração irresistível pelo frio e pela noite.
Feliz do lagarto, que tem sua toca escura! Mas a água é saudável – vamos, não
pense, entre lá e mergulhe!, dizem os evangelistas da saúde em torno, os
parentes aflitos pelo meu sofrimento, salve sua alma da preguiça e do calor! –
e me imagino entrando no mar violento, sentindo a onda inóspita que me derruba
e me afoga no caldo em seguida, e ainda me arrasta de cambulhada na areia
grossa, de onde me ergo de joelhos para levar outro balde de água fria na
cabeça, as pernas trêmulas. Dizem que é bom para a saúde.
Não. Melhor escrever logo a crônica. O banho de mar pode
esperar.
Cristovão Tezza
Gazeta do Povo.28/01/2014
Escrita de libertação
A literatura como um exercício de libertação: eis como a
pratica o escritor Bernardo Kucinski, de quem a Cosac Naify lança a coletânea
de contos Você Vai Voltar pra Mim, além de relançar o premiado romance K.. Sua
escrita é um exorcismo dos dolorosos anos da ditadura militar originada pelo
golpe de 1964. Não é, porém — como se pode temer em um primeiro instante —, uma
“literatura engajada”, ou panfletária. Kucinski não escreve panfletos, mas
ficção da mais alta qualidade. Nela incluída improváveis histórias pessoais,
pequenos sentimentos, dores secretas e toda a miudeza atroz de aflições que
definem o humano.
É uma escrita objetiva, seca, substantiva, como observamos
no conto “O Garoto de Liverpool”, história de um rapaz “magro, de rosto chupado
e miúdo, do qual só se viam o nariz, a boca e parte dos olhos”, que vem para o
Brasil fazer uma reportagem sobre os índios da Amazônia e a construção da
Transamazônica e acaba preso, confundido com um guerrilheiro. Depois da
tortura, é jogado em um buraco de quatro metros onde passa longos dias de
horror. Só é salvo porque aparece um oficial que morou na Inglaterra, lhe dá
ouvidos e consegue, assim, entendendo sua verdadeira história, libertá-lo. A
história é feita não só de grandes atos, mas também de pequenos mal-entendidos.
A ação do acaso — a chegada inesperada do militar — tem, tantas vezes, a mesma
força que a mais terrível barbaridade.
Kucinski nos mostra, em seus relatos, os interiores da
ditadura. Não só o grande sofrimento — repressão, brutalidade, torturas, ódio —
mas as pequenas dores que quase ninguém viu. É o caso do conto “A Suspeita” no
qual um grupo de amigos discute, tempos depois, sua responsabilidade ou não
sobre a loucura de um homem considerado, por engano, um informante da
repressão. Admitem o erro, carregam agora o peso de um homem ter enlouquecido
por causa deles. Mas, para se salvarem, se apegam a uma explicação racional: “É
como diz o filósofo: o homem e suas circunstâncias. O sorriso era do homem, o
DNA da loucura também já estava nele e as circunstâncias foram da ditadura. E
ponto final”. Kucinscki não passa a mão nas cabeças, tampouco nas consciências,
daqueles que tiveram a coragem de se engajar na luta clandestina contra o
regime ditatorial. Reconhece sua coragem e a grandeza de seu esforço, mas os
vê, antes de tudo, como homens comuns, que cometem enganos e deslizes também.
O livro traz alguns retratos preciosos como em “Um Homem
Muito Alto”, a história de um bravo militante que não precisou de delatores:
sua própria altura incomum o denunciou. Pernalonga, King Kong, Golias — teve
muitos apelidos, até passar a ser chamado de Jamanta, codinome dado pelos
serviços secretos. Escreve Kucinski: “Antes mesmo de cair prisioneiro da
repressão, tornou-se prisioneiro do próprio corpo”. No fim, ao sair para
comprar cigarros, é preso em um subúrbio do Rio de Janeiro. Condenado a
dezessete anos de cadeia, uma das penas mais longas para casos como o dele.
“Uma pena tão descomunal quanto sua altura”, resume, sem se negar uma dose de
humor.
Alguns contos, como “Terapia de Família”, passam apenas nas
bordas da história política. Depois da Lei da Anistia, um pai anistiado é
tratado como o centro da família, enquanto o filho passa seus dias trancado no
quarto, em fuga do mundo. A família — esgotada — decide submeter-se a uma
terapia familiar. Surge então o ressentimento do rapaz, abatido porque a mãe só
dava atenção ao pai herói. Durante os seis anos de cadeia, embora enviasse
cartas para a mulher e para a filha, só lhe destinou o silêncio. As sessões de
terapia em família se revezam com sessões individuais. O rapaz diz que não
procura emprego porque precisa “arrumar o quarto antes”. Mas, ao terapeuta,
admite: “A arrumação do quarto é uma desculpa; eu passo as vinte e quatro horas
do dia pensando em maneiras de destruir meu pai”. A terapia fracassa, o impasse
afetivo — efeito secreto da ditadura — derrota a família.
Outras vezes não, como constatamos na leitura de “Pais e
Filhos”. Quando soube que o filho Augusto é suspeito de ter participado de um
atentado, o dr. Nicolau Junqueira, médico-cirurgião, fica possesso. Depois de
muito buscá-lo, encontra o filho escondido na casa de uma tia. O pai é um
defensor intransigente do regime militar. Um dia, o rapaz é intimado a entrar
para o comando da organização clandestina a que pertence. Prefere fugir para o
Chile. Só um ano depois, através da mãe, entrega ao pai seu endereço em
Santiago. Os pais viajam para visitá-lo. O encontro é tenso, parece desastroso,
até que o doutor convida o rapaz para uma caminhada a dois pela cidade. O fecho
do conto é especialmente forte: “Já na rua, o velho médico colocou o braço em
torno do ombro do filho, e assim caminharam, lado a lado, abraçados, por muitos
e muitos quarteirões”. Sem trocar uma única palavra. O afeto mais profundo e
difícil, muitas vezes, não encontra palavras que a ele correspondam. Só se diz
em silêncio. Sentimentos paradoxais, como a ironia, o desconcerto, o amor e o
humor, Kucinski nos mostra, também fazem parte da história da ditadura militar.
O estilo intimista — embora escrito em um tenso realismo —
dá o tom também, como seus leitores já sabem, do premiado romance K., que agora
ressurge em nova edição. Inspirado no desaparecimento, 40 anos atrás, da irmã
de Kucinski, Ana Rosa, e de seu marido Wilson, o romance guarda um forte
caráter autobiográfico que, no entanto, não o encarcera no mero testemunho. Há
uma recriação corajosa da história pessoal, o que reafirma a posição da
literatura como lugar não só de transformação, mas de libertação. Embora sua
identificação com as vítimas da ditadura seja indisfarçável, Kucinski faz, todo
o tempo, um esforço (bem-sucedido) para ampliar seu olhar, colocando-os assim
em seu devido tempo e circunstâncias, arrancando-os da simples mitologia
política e devolvendo-os ao terreno do humano. O que pode parecer que os
apequena, na verdade os engrandece. A História, mesmo a mais heroica, é feita
por homens frágeis e cheios de contradições e isso só reafirma o valor de sua
luta.
José Castello.
Gazeta do Povo. 23/02/2014
Assinar:
Postagens (Atom)