Uma poesia que dança. Uma poesia que coloca o jogo divertido
das palavras acima do protocolo dos significados. Uma poesia nômade, ambulante,
que passeia por vários mundos. Eis a poesia de Luis Turiba, de quem leio Qtais
(7 Letras). Antes de tudo, o império dos sons, como em “Ser Minério É Coisa
Sério”, poema em homenagem a Minas e aos mineiros. Antes de qualquer coisa, a
busca do novo: “Caminhar é pisar chão/ sem pisá-lo de antemão”. O poeta é um
caminhante – é uma espécie de ambulante que avança apoiado em seu cajado. Um
poeta libertário, cujo cajado (a língua?) dele também se desvia. “Meu cajado é
libertário/ temos quase a mesma altura/ caminhando em paralelo/ olhando o mundo
às avessas”.
Avançam os dois, “plugados à lei do impulso”, em uma grande
aventura zen. Vão aos tropeções, mas deles, em vez de tirar dores, tiram
lições. O poeta caminha contra a lógica: “A lógica dos lógicos já não me
interessa/ (...)/ Meu tempo está no vento peso q não pesa”. Avança sem uma
bússola, parece um sonâmbulo, Turiba nos faz ver. “Sou cego e calado e escrevo
ensimesmado”, define-se. Ainda assim, cultiva uma intensa luz interior. Diz a
si mesmo: “Não apague a luz interna e intensifique-se”. Sem direção, resta-lhe
a própria força para construir seu caminho: “levo-me leve em voos sem lei/ meu
fio terra é madeira de fibra/ sou andarilho”. Carrega um cajado “alado e
desconfiado” e assim privilegia a leveza, os voos e os grandes saltos. “Um
fariseu distraído/ afável & aviolado”.
Muitas vezes ligamos a poesia ao peso, à densidade, ao
sofrimento – mas é contra essas relações difíceis que Luis Turiba escreve. É um
poeta que escreve, antes de tudo, para se divertir. A poesia como brincadeira,
como dança sem método e sem partitura, como improviso. Assim Turiba brinca
enquanto faz poesia, e nós, seus leitores, nos deliciamos. Vai buscar seus
materiais nos cantos mais remotos – como em “O Que É o Sol?”, segundo ele
escrito “a partir de um poema oral búlgaro do século 5”. Verdade? Mentira? E
isso importa? Interessa sim a distância que o poeta toma para desenrolar seus
versos. Para erguer-se em seu tapete voador. Faz uma poesia que voa, mas que é
também uma poesia andante, que rasteja, que cheira o chão e suas brechas. Seja
como for, escreve uma poesia que canta. Importante definir o que faz? Não
parece. “Ainda não aprendi teu nome/ Mas já sei (quase) tudo sobre”, ele diz,
descortinando uma resposta.
Busca um verso “arrítmico”, aos soluços, aos impulsos.
“Quisera fazer um verso/ com a sublime arritmia do amor/ um verso míssil/
neurastênico e febril/ ar do dia anterior à criação do universo”. Destino dos
poetas, não só de Turiba: estar às voltas com as origens. “Um verso de trivela/
transverso e subversivo”, prossegue em seu sonho. “Um verso de fogo e batom/
histórico, histérico e erudito”. Origem (fogo) e beleza (batom) se misturam
para anunciar uma estratégia que o traz de muito longe e leva para mais distante
ainda. Matéria da poesia: o tempo, que nas mãos de Turiba se converte em um
material maleável e perigosamente desdobrável.
Uma poesia na qual as identidades se misturam e é assim que
se aproximam, como está dito: “quem manda em mim/ sou ela”. Poesia da mistura,
mas também da confluência e do diálogo feliz entre as palavras. Nos versos elas
encontram seu lugar de honra, encontram provavelmente seu berço. Por exemplo,
quando Turiba brinca assim: “caramba/ carambolas/ sou de jambo/ não me amora”.
Uma escrita contra o senso, uma escrita de contrassensos: “agnóstico/ benzo-me
ao olhar o Cristo Redentor”. Exatamente como somos, seres de contradição e de
desmentidos, seres instáveis, de pequenas demências, dos quais a poesia é a
língua mais exemplar.
Há nela um gosto não só pelos sons, mas pela desafinação. O
poeta relata: “Mas cuíca também falha/ Em plena Sapucaí/ Quebra a vara, rompe o
couro/ Desarma o circo e o estilo”. A desafinação como uma nova maneira de os
sons se encontrarem e se desencontrarem. Como uma outra arritmia, que perde o
prumo, mas não deixa de avançar. O poeta, precavido, multiplica seus
instrumentos. “Por isso, digo em sigilo:/ Tenho duas cuícas/ Florença e
Nikita”. Iguais, mas diferentes – e é dessa diferença que vem a desafinação
inevitável e original. “Enquanto Florença aflora/ Nikita quica/ E assim
floreiam o mundo/ Desafinadas as cuícas”. Também a desarmonia tem seu valor.
Também o desajuste é promotor de beleza, o poeta nos leva a ver. O mundo não é
uma orquestra afinada e impecável; ao contrário, é um grande sopro de
desencontros, e muita beleza sai disso.
Um poeta, portanto, que desconfia das excessivas
habilidades. E que privilegia as diferenças. Por exemplo, a estranheza que ele
encontra nas girafas. “ouvi dizer que elas dormem/ dez minutos a cada hora/
também pudera, natureza mátria/ com aqueles pescoços quilométricos/ (que um dia
hei de beijá-los)/ um cochilo faz descansá-los”. Girafas: exceções em um mundo
de exceções, e eis aí a origem da poesia. Nesses desencontros, nesses desalinhamentos.
Em um poema como “Língua à Brasileira”, Turiba evoca Caetano Veloso, José
Saramago, Guimarães Rosa, os irmãos Campos, tornando difícil que o leitor
vislumbre uma ascendência nítida para sua poética. Poeta da mistura, Turiba
louva seus vários caminhos, que volta a percorrer como um ermitão em busca do
próprio nascimento.
Aprecia o indecifrável, o vago, aquilo que causa medo – tudo
que os poetas de gabinete veriam como obstáculo e atrito, ele enxerga como
impulso e leveza. Sabe que “dos signos, a linguagem é a mais subversiva”. Por
isso não se interessa em organizar o desorganizado, ou em hierarquizar o que
não tem posição fixa. Não: Turiba é um poeta em que a alegria de escrever
(viver) serve de combustível primeiro. Escreve “por escrever”, e por isso é tão
dono de sua escrita, ainda que ela lhe fuja a cada verso, ainda que lhe dê
rasteiras e subverta sua própria palavra. As palavras se impõem, e Luis Turiba
sabe ouvi-las. Vê Exu (perigo, mas energia) “até nas lesmas/ do mago Manoel de
Barros”. Exu, anjo das manhas, em torno de quem o poeta se contorce para
escrever.
José G Castello
Gazeta do Povo.09/02/2014
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