Publicado em 26/01/2014
Tenho comigo a nova edição da Poesia Completa, de Manoel de
Barros (Leya). Ela chega ao mercado trazendo um poema inédito, “A Turma”, de
2013, e acompanhada de um box de luxo batizado A Biblioteca de Manoel, com
todos os seus 18 livros individuais. É uma boa oportunidade para refletir a
respeito de um estigma que pesa sobre Manoel e sua poesia: o de que ele é um
poeta que só se repete e, mais ainda, de que confunde poesia com jogo infantil.
O interessante é que as duas restrições não deixam de ser
verdadeiras. A poesia de Manoel de Barros tem, de fato, uma marca inconfundível
que se derrama sobre toda a obra e que podemos chamar, imitando-o, de “manoelês
archaico”. Seus versos são inconfundíveis – assim como é inconfundível uma
imagem do monte Everest, da baía de Guanabara, ou do Grand Canyon. Há uma marca
original – um timbre – que não permite que ninguém dela se aposse, ou imite,
sem cair na desgraça da cópia fraudulenta. Algo que vem do fundamento, que é o
próprio fundamento, em uma poesia que não tem pudor algum em (mesmo elegante e
doce) se desnudar.
Mas Manoel não escreve para copiar a natureza, e sim para
reinventá-la. Seu poema inédito, “A Turma”, foi incorporado ao fecho de um livro
antigo, os Escritos em Verbal de Ave, que ele apresenta como uma “desbiografia”
de seu amigo Bernardo. O poeta não se interessa nem pelo natural, nem pelo
verdadeiro. Está mais empenhado em distorcer essas duas noções,
ultrapassando-as para que, enfim, a invenção se imponha como única norma.
“Videntes/ não ocupam o olho/ para ver – mas para transver”, ele nos diz em um
poema antigo.
Cristiano Castilho
No inédito “A Turma”, Manoel faz uma pergunta insistente a
respeito do ato poético, que sintetiza assim: “Ele queria mudar a Natureza?” E
responde de modo veemente: “Mas o que nós queríamos é que a nossa/ palavra
poemasse”. Arrancar das palavras toda relação de utilidade, todo conteúdo, todo
significado. Ficar com a palavra pura – como um objeto primário. Para, aí sim,
colocá-la em outro lugar, inverter sua posição, experimentar novos usos. “A
gente queria encontrar a raiz das/ palavras”, escreve. Valorizar o mal
comportamento, obedecer às desordens infantis; em vez de imitar a natureza,
“poemar”, o que é uma maneira de revirá-la em busca de seu fundo vazio.
Daí da lista de “desobjetos” de Bernardo constarem coisas
como um “martelo de pregar água”, um “guindaste de levantar vento” e um
“alicate cremoso”. Para que servem? Para nada. O nada – na estética radical de
Manoel – é a matéria da poesia. Gosta de lembrar do francês Gustave Flaubert
que, numa carta de 1852, disse que gostaria de fazer um livro sobre nada. Mas o
nada de Flaubert ainda não é o nada de Manoel. “Ele queria o livro que não tem
quase tema e se sustenta pelo estilo”, o poeta nos lembra. Já o seu nada é
diferente: “O nada de meu livro é nada mesmo. (...) O que eu queria era fazer
brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo”.
Tal atitude pode parecer ora soberba, ora desumana. Contudo,
a delicadeza de Manoel é indiscutível. E, por detrás de seus jogos verbais, é o
homem com seu grande vazio que se ergue e se presentifica. Releio “A Turma”: é
impressionante tanta lucidez infantil em um homem de idade tão avançada. “Nasci
para administrar o à toa, o em vão, o inútil”, escreveu certa vez. Será Manoel
indiferente aos significados, ou atento à criação de novos significados? Estará
Manoel só brincando ou, ao contrário, jogando um jogo mortal que só adultos
ousados se permitem experimentar?
É uma poesia indiferente à lógica, e interessada nas
verdades profundas, que não costumam ter lógica alguma. É um homem que mistura
as espécies naturais – quando fala, por exemplo, que o dia está “frondoso em
borboletas”. Não se interessa pela verdade, mas pelo que ela esconde de
invenção e de provocação. “Poesia é a infância da língua”, já escreveu também.
Poesia da origem, seus versos apontam para a origem da poesia. Que começa como
um sopro, um tombo, um engano. Que não tem lugar ou hora para nascer, precisando
só de um poeta que esteja disposto a lhe oferecer o corpo.
Sua poesia mistura pertencimentos: as palavras gorjeiam (mas
não são os pássaros?). A ordem da língua é quebrada: elas não gorjeiam “para
ele”, mas “nele” – “elas me gorjeiam”, escreve. À entrada de seu grande livro,
anuncia ainda que tem Aristóteles como mestre e que se baseia em seus
“impossíveis verossímeis”. Em resumo: Manoel de Barros faz poesia para inventar
o impossível. E, com isso, alarga o mundo, repuxa as fronteiras do humano,
transforma a alma em elástico. Em vez da coisificação existencialista do mundo,
na poesia de Manoel são as coisas que falam. A cada verso, afirma sua diferença
e sua solidão, mostrando o poeta como um menino solitário. “No recreio havia um
menino que não brincava/ com outros meninos/ O padre teve um brilho de
descobrimento nos olhos/ - POETA!”.
É como diz no Livro sobre Nada: “O menino de ontem me
plange”. Menino que tem outra versão a respeito da verdade: “Tudo o que não
invento é falso”. Menino e poeta que, portanto, incomodam com sua solidão
radical, excluindo-se dos grupos poéticos, das escolas e dos cânones.
Excluindo-se do sensato e do previsível. Não há outra maneira de ler Manoel de
Barros que não seja entregando-se complemente – sem ressalvas, sem suspeitas,
sem interrogações – ao magma de seus poemas. É preciso “ser” Manoel de Barros
para ler Manoel de Barros. Colocar-se neste lugar maravilhoso em que a palavra
se livra de toda incumbência e se torna só um jogo. Isso assusta. Isso não
parece poesia. Isso incomoda nossa necessidade de significações e de
explicações. Isso nos torna leves – livres do peso do mundo podemos enfim, como
as crianças, nos limitar a jogar com ele.
Um verso de Manoel resume: “Com pedaços de mim eu monto um
ser atônito”. Um ser que prefere as linhas tortas, como Deus. Menino, ele
sonhava em ter uma perna mais curta, para que todos o olhassem. Não teve a
perna mais curta, teve a poesia. Uns o olham de banda. Outros, a maioria, se
ilumina. Todos o olham. Parece loucura: “Trabalho arduamente para fazer o
desnecessário”, Manoel nos diz.
Cristiano Castilho
Gazeta do Povo.26/01/2014
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