sábado, 15 de março de 2014

Poesia atônita


Publicado em 26/01/2014
Tenho comigo a nova edição da Poesia Completa, de Manoel de Barros (Leya). Ela chega ao mercado trazendo um poema inédito, “A Turma”, de 2013, e acompanhada de um box de luxo batizado A Biblioteca de Manoel, com todos os seus 18 livros individuais. É uma boa oportunidade para refletir a respeito de um estigma que pesa sobre Manoel e sua poesia: o de que ele é um poeta que só se repete e, mais ainda, de que confunde poesia com jogo infantil.

O interessante é que as duas restrições não deixam de ser verdadeiras. A poesia de Manoel de Barros tem, de fato, uma marca inconfundível que se derrama sobre toda a obra e que podemos chamar, imitando-o, de “manoelês archaico”. Seus versos são inconfundíveis – assim como é inconfundível uma imagem do monte Everest, da baía de Guanabara, ou do Grand Canyon. Há uma marca original – um timbre – que não permite que ninguém dela se aposse, ou imite, sem cair na desgraça da cópia fraudulenta. Algo que vem do fundamento, que é o próprio fundamento, em uma poesia que não tem pudor algum em (mesmo elegante e doce) se desnudar.

Mas Manoel não escreve para copiar a natureza, e sim para reinventá-la. Seu poema inédito, “A Turma”, foi incorporado ao fecho de um livro antigo, os Escritos em Verbal de Ave, que ele apresenta como uma “desbiografia” de seu amigo Bernardo. O poeta não se interessa nem pelo natural, nem pelo verdadeiro. Está mais empenhado em distorcer essas duas noções, ultrapassando-as para que, enfim, a invenção se imponha como única norma. “Videntes/ não ocupam o olho/ para ver – mas para transver”, ele nos diz em um poema antigo.
Cristiano Castilho 

No inédito “A Turma”, Manoel faz uma pergunta insistente a respeito do ato poético, que sintetiza assim: “Ele queria mudar a Natureza?” E responde de modo veemente: “Mas o que nós queríamos é que a nossa/ palavra poemasse”. Arrancar das palavras toda relação de utilidade, todo conteúdo, todo significado. Ficar com a palavra pura – como um objeto primário. Para, aí sim, colocá-la em outro lugar, inverter sua posição, experimentar novos usos. “A gente queria encontrar a raiz das/ palavras”, escreve. Valorizar o mal comportamento, obedecer às desordens infantis; em vez de imitar a natureza, “poemar”, o que é uma maneira de revirá-la em busca de seu fundo vazio.

Daí da lista de “desobjetos” de Bernardo constarem coisas como um “martelo de pregar água”, um “guindaste de levantar vento” e um “alicate cremoso”. Para que servem? Para nada. O nada – na estética radical de Manoel – é a matéria da poesia. Gosta de lembrar do francês Gustave Flaubert que, numa carta de 1852, disse que gostaria de fazer um livro sobre nada. Mas o nada de Flaubert ainda não é o nada de Manoel. “Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustenta pelo estilo”, o poeta nos lembra. Já o seu nada é diferente: “O nada de meu livro é nada mesmo. (...) O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo”.

Tal atitude pode parecer ora soberba, ora desumana. Contudo, a delicadeza de Manoel é indiscutível. E, por detrás de seus jogos verbais, é o homem com seu grande vazio que se ergue e se presentifica. Releio “A Turma”: é impressionante tanta lucidez infantil em um homem de idade tão avançada. “Nasci para administrar o à toa, o em vão, o inútil”, escreveu certa vez. Será Manoel indiferente aos significados, ou atento à criação de novos significados? Estará Manoel só brincando ou, ao contrário, jogando um jogo mortal que só adultos ousados se permitem experimentar?

É uma poesia indiferente à lógica, e interessada nas verdades profundas, que não costumam ter lógica alguma. É um homem que mistura as espécies naturais – quando fala, por exemplo, que o dia está “frondoso em borboletas”. Não se interessa pela verdade, mas pelo que ela esconde de invenção e de provocação. “Poesia é a infância da língua”, já escreveu também. Poesia da origem, seus versos apontam para a origem da poesia. Que começa como um sopro, um tombo, um engano. Que não tem lugar ou hora para nascer, precisando só de um poeta que esteja disposto a lhe oferecer o corpo.

Sua poesia mistura pertencimentos: as palavras gorjeiam (mas não são os pássaros?). A ordem da língua é quebrada: elas não gorjeiam “para ele”, mas “nele” – “elas me gorjeiam”, escreve. À entrada de seu grande livro, anuncia ainda que tem Aristóteles como mestre e que se baseia em seus “impossíveis verossímeis”. Em resumo: Manoel de Barros faz poesia para inventar o impossível. E, com isso, alarga o mundo, repuxa as fronteiras do humano, transforma a alma em elástico. Em vez da coisificação existencialista do mundo, na poesia de Manoel são as coisas que falam. A cada verso, afirma sua diferença e sua solidão, mostrando o poeta como um menino solitário. “No recreio havia um menino que não brincava/ com outros meninos/ O padre teve um brilho de descobrimento nos olhos/ - POETA!”.

É como diz no Livro sobre Nada: “O menino de ontem me plange”. Menino que tem outra versão a respeito da verdade: “Tudo o que não invento é falso”. Menino e poeta que, portanto, incomodam com sua solidão radical, excluindo-se dos grupos poéticos, das escolas e dos cânones. Excluindo-se do sensato e do previsível. Não há outra maneira de ler Manoel de Barros que não seja entregando-se complemente – sem ressalvas, sem suspeitas, sem interrogações – ao magma de seus poemas. É preciso “ser” Manoel de Barros para ler Manoel de Barros. Colocar-se neste lugar maravilhoso em que a palavra se livra de toda incumbência e se torna só um jogo. Isso assusta. Isso não parece poesia. Isso incomoda nossa necessidade de significações e de explicações. Isso nos torna leves – livres do peso do mundo podemos enfim, como as crianças, nos limitar a jogar com ele.


Um verso de Manoel resume: “Com pedaços de mim eu monto um ser atônito”. Um ser que prefere as linhas tortas, como Deus. Menino, ele sonhava em ter uma perna mais curta, para que todos o olhassem. Não teve a perna mais curta, teve a poesia. Uns o olham de banda. Outros, a maioria, se ilumina. Todos o olham. Parece loucura: “Trabalho arduamente para fazer o desnecessário”, Manoel nos diz.

Cristiano Castilho
Gazeta do Povo.26/01/2014

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