segunda-feira, 24 de março de 2014

hoje você não sabe o que eu fiz hoje
a minha intuição de que 2013 era meu último ano na arte, tava certa
me sinto realmente cada vez mais distante
tenho visto gente morta (viva)
pode que seja por eu ainda estar entre elas, mais do que por ter poderes especiais
sobre a minha briga pesada de ontem, chego em óbvias conclusões: todo mundo tem ajuda de algum lugar (quem dera o meu pai, também um senhor de respeito como aquele - por alguns momentos pensei que ele estivesse armado, não sei -, estivesse na minha manga pra uma cartada pacificadora), todo mundo está devendo pra alguém, todo mundo está mordendo alguém, todo mundo está se submetendo a alguém
se bem que, fora da moral, eu pudesse afirmar: dívidas tenho muitas, dúvidas sobre elas bem mais ainda
o que eu fiz até aqui, eu fiz
alguns podem achar bom
a maioria pode achar uma merda
pensem o que quiserem, sei lá se escrever é uma íntima pesquisa humana
sei lá se escrever é entrar num laboratório afetivo e
recombinar uma série de poções explosivas
sei lá se escrever é inventar outros mundos possíveis e impossíveis
sei lá se escrever nada responde
sei lá se escavo, se vasculhe o que não compreendo, se ao escrever queimo mais a mão
enquanto você couber, você suportar, tudo é pesar do mundo (tirei isso mais ou menos de um poema da Ana Cristina Cesar)
e deve de ser por aí a certeza de estarmos vivos
vou terminar o livro que tô escrevendo, aí vou fazer mais um do mesmo tamanho
com eles, mais o Dragãozinho Ferido, fecho a Trilogia da Geada
e então, deu
se você acorda de manhã, tem que se voltar pro coração
em rancor, júbilo, fétido bafo da boca aberta, tédio, esperança, pele quente qual pão saído do forno, coragem, dor, você tem que se voltar pro coração
chame estar vivo do que for, tem muito segredo aí
a vida ainda não se negou
por pouco calor que haja
por pouca luz, pouco amor, a vida não se negou
sabe, de todas as pessoas com quem já discuti “ideias” ao longo da vida, de grandes intelectuais a alcoólatras donos de botecos, sempre sempre sempre que seus argumentos terminavam, vinha o golpe desesperado: que que cê tá falando, você é um playboy de merda
é o típico jeito de tentarem me ofender
lido com tal baixeza tem anos
pra muitos eu sou um playboy de merda
por outro lado, alguns playboys (de merda?) de verdade (sim, eu os conheço) me chamam de poeta
serão esses playboys mais sensíveis que parte do “pessoal da cultura” da cidade?
ah realmente não sou um dentuço cheio de ânimo
um dia tive uma namorada e a nossa canção era Alma Gêmea, do Fábio Jr - eu curtia muito
pode que hoje não tenha flores no café da manhã, mas buzinas
elas ao menos provam que você ainda não tá sozinho num mundo de sozinhos
uma cidade “pode destruir um indivíduo ou permitir sua realização, dependendo muito da sorte” (não sei onde li, mas li)
você acorda de manhã e pode entoar a Oração Védica, se quiser
onde há ventos suaves, rios tranquilos, plantas que são alimento e remédio
e árvores com doces frutos
e vacas que emitem luz e sol no self
e a terra é benéfica de forma igual pra todos
mas o mundo andergraude (de todas as suas “ontem a noite”) é bem uma igrejazinha como qualquer outra
e mesmo nela a hipocrisia reina – humano seu nome é hipócrita
meus amigos politizados não querem que eu seja um produto
meus amigos politizados não admitem que eu seja um produto
vejo em mim a indiferença por alguns atores crescer vertiginosamente
e pelo mundo do teatro em geral
sinto-me tolo por ter acreditado em mentiras como aquela de que no futuro o teatro será o último oásis onde o homem encontrará o homem numa espécie de redenção
um bando de passarinhos cruza o céu e entra nas árvores – lindo
uma mulher gorda se inclina cobrindo os seios com os braços cruzados – lindo
as cabeças dos homens de negócio parecem frutas amadurecidas demais, estranguladas pelos colarinhos – massa
chegam-me porções de rostos sem sorrisos mas com a Oração Védica ou sem ela, se você acorda
tem que voltar pro coração, logo, pro clichê incansável dos publicitários do amor, que são os compositores populares de todos os tempos e os seus imitadores baratos infestando as noites dos bêbados de sempre com seus aplausos de marionetes uns dos outros
sim, tenho visto gente morta (viva)
e pode que seja por eu ainda estar entre elas, mais do que por ter poderes especiais
daí que pode que eu esteja vivo nesse buraco
e que alguém que vê gente morta (viva) esteja me vendo
a umidade faz mal aos brônquios
e o cara do andar de baixo tem calopsitas de estimação soltas no apartamento
lá fora, por outro lado, há o transporte coletivo “da melhor qualidade”, segundo a assessoria dos políticos – ambos, políticos e assessores, são “u ó”
mas ninguém jamais ficará sozinho num mundo de sozinhos provando quando onde e como o modelo do fordismo é a coisa mais escrotamente antidemocrática
ein?, pergunta um campeão
andar por essa vida a essa hora é mesmo um puta de um demasiado contar com a sorte
sobre o trabalho musical que um dia fiz, bom, nunca pretendi mais do que poder afirmar: eu sou uma dupla sertaneja
então, foda-se
hoje já não tenho dúvida que aquele foi o meu último ano na arte

Luiz Felipe Leprevost 

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