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O primeiro livro do Dalton que li foi Abismo de Rosas. Nunca
mais parei de ler o mestre. Desde o começo sabia que sua obra faria bem de
perto acompanhamento especial em minha vida, fosse pelo exemplo máximo do gênio
artístico, pela devoção ao trabalho constante, pela coragem para ser único e
radical em sua escolha. Hoje, tantos anos depois, agora que não lembro detalhes
do Abismo de Rosas, mas sim de seu espírito maior, já que os contos do Dalton,
vistos ao longo dos anos, não são para mim senão que um verdadeiro “poema
contínuo”, um pulsante painel humano, fica-me como síntese a imagem daquela
capa azul, com a pálida mulher nua, os bicos dos seios roxos e grandes, a flor
no cabelo, o rosto de perfil que traz o olhar que, na época, considerei egípcio
e austero. Mais a arara vermelha que imediatamente me remetia à casa da avó
paterna em minha infância, ou seja, não só o signo lido na arara da Curitiba
que fora e já não era mais, porém o de um Brasil que sofria o mesmo fenômeno,
quero dizer, um país cuja exuberância recebia (e ainda recebe) em troca a moeda
das mais variadas formas de violência e, por consequência, da aparência
hipócrita que tenta canalhamente eximir culpados ou, até, produzir a ingênua
ignorância e inconsciência sobre os atos vis que a todos nos pareceriam não
mais que banalidades do cotidiano – motrizes, se é que me posso arriscar tanto
em teorizações, da obra de Dalton. E aquela mulher de seios coloridos,
voluptuosa, dada, nua, ao mesmo tempo sem cor, ou seja, sem presença, como que
perpetuamente (dentro de uma sociedade altamente machista e violentadora)
fazendo-se colorir pela obra do escritor, em todas as suas facetas (imagináveis
e inimagináveis), ao longo da vida. Isso, certamente, para dizer o mínimo.
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Quando olho, entre os tantos e inesgotáveis Daltons,
saltam-me um pouco mais nítidos quatro deles, que são, obviamente, facetas de
um mesmo. Talvez não sejam academicamente reconhecíveis, pois estão ligados
estritamente à minha experiência.
O primeiro. Minha avó materna era amiga da esposa do Dalton.
Elas se frequentavam bastante. O Dalton nunca ia. E meu avô julgava antipático
da parte do Dalton essa postura. Anti-social, pois. Mas não era só antipatia, a
meu ver. Era, até certo ponto, transgressor se pensamos numa determinada Curitiba
burguesa, de classe-média de trinta, quarenta anos atrás, bastante
conservadora, em que uma senhora cumpria certa agenda social sem o seu esposo.
Não devia ser nada agradável, para nenhum dos lados, nem para quem julgava,
tampouco para quem era julgado. Mas ainda assim, a esposa do Dalton (não me
lembro o nome dela, preciso perguntar para meu avô) mais o Dalton, bancavam tal
atitude, essa vontade (ou dificuldade, sei lá) dele. E nisso um modelo, um
padrão, dentro de uma comunidade, era colocado em xeque. Tem a ver com a vida
íntima do Dalton. Agora, me pergunto, quantos ali daquela roda liam a
literatura dele, compreendiam que sua postura também tinha a ver com a
construção de uma obra literária, quem compreendia que muitos de seus contos,
justamente, saiam de poções que incluíam até mesmo os afetos que aqueles
julgamentos todos provocavam? O quanto uma Curitiba nesse caso está dentro da
outra?
O segundo. Penso na Curitiba pré Jaime Lerner. Eu era muito
pequeno quando as transformações urbanas operadas por ele começaram. Minha
memória conhece mais uma cidade já mexida pelo Jaime do que a anterior. Mas
algo da anterior se mantém em algum lugar de mim, até mesmo saudosamente. O
segundo livro do Dalton que li foi a antologia (hoje um clássico) Em Busca de
Curitiba Perdida. Ali está a dura acusação de Dalton sobre um Lernismo que
forjasse, falsificasse uma cidade a partir de outra já existente, uma cidade,
por exemplo, merdosa, para inglês ver. Ali há o cruzamento temporal de duas
Curitibas, aquela dos colonos com suas galinhas nos quintais e seus vinhos de
garrafão sendo engolidos pela cidade tecnológica dos publicitários e designers,
a tal Curitiba de ponta. Dalton se vê no vórtice dessa pororoca temporal,
talvez por sua idade, por ter tido a oportunidade de viver a Curitiba anterior
e agora, ao longo dos anos noventa, saudável e na maturidade artística, estar
colocado no ponto nevrálgico dessa interseção entre o antigo, o moderno e
contemporâneo que se insinua. Ele encara e vive as transformações, pois não há
outra escolha para um artista de sua estatura. A cidade crescida,
inevitavelmente, agora incorpora outras múltiplas e polimorfas modalidades de
violência e, por que não?, de beleza, e a obra de Dalton tem o interesse por
cada uma delas.
Então, o Terceiro. O poeta do crack. Trágico, o crime sempre
ao alcance do ato de qualquer pessoa, do cidadão comum e inocente (será?), ou
do perverso inconsequente fora-da-lei. Na cidade cada vez mais amedrontada,
gradeada pela paranóia da segurança. É na rua que Dalton encontra as vozes de
seus bandidinhos viciados, de suas feiosas prostitutas de guetos. Até onde me
lembro, ele foi o primeiro escritor da cidade a enfiar em sua literatura de
modo explícito e sintomático o exacerbado consumo de drogas dos nossos dias,
seja pelos miseráveis, seja pelos meninos de família. E as consequências
físicas, psíquicas e, num âmbito mais amplo, sociais, que se seguem. Primeiro o
cidadão deixa de ser cidadão, depois o corpo deixa de responder ao mundo como
corpo e é só um estorvo a mais sobre o planeta do sem-sentido. O trafico também
não perdoa a dívida de ninguém. Nem o delegado corrupto perdoará. Foi Dalton
quem primeiro nos disse: olhem para isso. Sim, ele sempre viu e vê antes que
todos os outros.
O Quarto. Este Dalton se encerraria numa muito polêmica
frase que andei dizendo por aí um tempo atrás: todo Dalton Trevisan tem um
pouco de Emiliano Pernetta.
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Dalton é cruel, o estilo corte seco, sem dúvida, mas também,
nisso, sonoridade e exatidão, a preocupação rítmica, melódica, a eufonia. Não
só o uso da gíria da rua, mas a mistura de um vocabulário chulo com expressões
que são peculiaridades só dele, marcas que se repetem, se reinventam a cada
livro. A violência no/do amor, suas ninféias famintas, o incesto muito que
humano, as balzacas desesperadas por gozo, outras incendiadas vivas, anciões
babando a sopa rala do desejo. A prosa de Dalton está cada vez mais próxima da
poesia, logo, mais próxima de nós os seres vivos, cada vez mais sustentada por
um mínimo de ação em que o epifânico acontecimento da linguagem se dá anterior
a necessidade de se contar uma história. Epifania no sentido Joyceano, a da
vida que brota porque tem que brotar, seja dos lugares mais impossíveis, mais
sem esperança, no caso dele, em sua maioria, banais e miseráveis. É daí que
Dalton tira a poesia, e é para a vida que ele a devolve, diria, sem dó nem
piedade, mas com uma das mais fulgurantes cargas artísticas que a literatura
brasileira (e até mundial) já conheceu. Ele responde com arte, sempre com arte
e não com ideologia demagoga. Por este exemplo, sua atualidade já se firma. Mas
há mais, há a construção estética de algo infindável, o prazer de lê-lo nunca
abandonará os seres humanos enquanto houver seres humanos. O futuro lerá Dalton
Trevisan como hoje lemos Shakespeare. Lemos para aprender, para tentar
entender. Lemos porque ele refunda uma ideia de ser humano. Lemos para existir
fora da barbárie. É uma História maior a que Dalton confeccionou, é a História
da modernidade e sua continuação, que hoje estamos vivenciando, a História do
século XX entrada com lâminas sujas nas costas do XXI. Viremo-nos com isso, com
essa dolorosa beleza. O universo de Dalton está tão bem confeccionado que, já
se provou, uma só frase faz o mundo todo. Sua ficção vem cada vez mais, repito,
aproximada da poesia. Lírico, Dalton inventou-se raríssimo. Se seu ataque
inicial acabava por ir nos espaços mais sombrios de uma Curitiba provinciana de
décadas passadas, sua obra hoje é a de um autor que não admitiu para si
descansar na glória e parar no tempo. A cada novo livro, obriga-se a enfrentar
problemas relacionados a Curitiba do agora, que é uma metrópole, e que é o
mundo todo. Sem dúvida, ainda há resquícios da província de outrora encruada na
mentalidade dos habitantes deste estranho lugar – a tais dimensões complexas, o
escritor não se nega. No entanto, que espaço, senão o risível, restaria na
contemporaneidade para seu vampiro canalha, quando a realidade mais real é
também a mais absurdamente hostil e sanguessuga? Pobre vampiro acuado, o canalha
de hoje não cabe em estereótipo algum – as garotinhas de dezesseis anos do
Baixo Trajano fariam, ora bolas, picadinho de Nelsinho. O mundo está por demais
pornô (em muitos sentidos), feito os mais recentes livros de Dalton Trevisan.
Luiz Felipe Leprevost
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