Um amigo me mandou o recorte com a notícia bizarra: um
professor russo matou a facadas um colega por este defender a tese de que a
única literatura verdadeira é a prosa. Parece que estavam bêbados, o que torna
a coisa mais verossímil. O amor dos russos pela literatura é desses paradoxos
históricos inexplicáveis – de meados do século 19 às primeiras décadas do
século 20, o país foi um dos centros fundamentais da literatura moderna, ao
mesmo tempo em que se mantinha como um dos mais atrasados do mundo, uma
autocracia cega reinando sobre uma imensidão de pobreza medieval. Mas São
Petersburgo e Moscou eram centros literários extraordinários, em que se moviam
monstros como Dostoiévski, Turguenev, Tolstói e Tchekov.
A partir da década de 1930, o terror stalinista destruiu a
inteligência do país onde quer que ela levantasse a cabeça – Mikhail Bulgákov
(1891-1940) talvez tenha sido o último grande gênio da prosa russa, mas sua
obra-prima O mestre e Margarida foi publicada apenas décadas depois de sua
morte. E o célebre autor de Lolita, Vladimir Nabokov, só sobreviveu de fato ao
se tornar um escritor americano.
Os russos leem muito e têm a poesia em altíssima conta –
recitais de poesia com uma multidão de ouvintes eram eventos comuns na Rússia.
Assim, a discussão de dois russos bêbados em torno do valor da prosa e da
poesia começa a soar como uma cena realista. Basta ler algumas páginas de
Dostoiévski para entrar no clima – seus personagens estão permanentemente no
limite das questões transcendentais da vida, numa tensão mortal de pontos de
vista contrastantes.
É verdade que ninguém precisa matar por isso, mas a distinção
entre prosa e poesia fascinou este modesto cronista nos seus tempos de
universidade a partir de um outro russo, o filósofo Mikhail Bakhtin
(1895-1975). Em um de seus textos, Bakhtin sugere que a voz do poema é sempre a
voz do poeta; o poeta se confunde completamente com o verso que canta. E a voz
do prosador é sempre a voz de uma outra pessoa; o prosador, covardemente,
esconde-se na linguagem dos outros.
Fiquei tão apaixonado pela ideia que escrevi uma dissertação
acadêmica a respeito, tentando convencer o mundo desta verdade cristalina. Mas
ninguém concordou: meu trabalho dava a impressão de que os poetas são uns
egocêntricos autocentrados e os prosadores, uns caras legais que ouvem os
outros. Parecia que eu estava falando em causa própria, já que nunca escrevi um
verso que prestasse. Pior: os poetas seriam “autoritários”, enquanto os
prosadores posariam de “democráticos”. Num tempo como o nosso, nada pode soar
pior. Bem, não quero dar uma de oportunista, mas a notícia de jornal parece
comprovar empiricamente a minha tese: o poeta, ao ouvir aquela besteirada do
prosador, simplesmente puxou da faca, fez justiça com as próprias mãos e foi
beber mais um trago.
Ainda bem que sou brasileiro, ou não estaria mais aqui.
Cristovão Tezza.
Gazeta do Povo. 18/02/2014
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