sábado, 15 de março de 2014

O assassinato da poesia


Um amigo me mandou o recorte com a notícia bizarra: um professor russo matou a facadas um colega por este defender a tese de que a única literatura verdadeira é a prosa. Parece que estavam bêbados, o que torna a coisa mais verossímil. O amor dos russos pela literatura é desses paradoxos históricos inexplicáveis – de meados do século 19 às primeiras décadas do século 20, o país foi um dos centros fundamentais da literatura moderna, ao mesmo tempo em que se mantinha como um dos mais atrasados do mundo, uma autocracia cega reinando sobre uma imensidão de pobreza medieval. Mas São Petersburgo e Moscou eram centros literários extraordinários, em que se moviam monstros como Dostoiévski, Turguenev, Tolstói e Tchekov.

A partir da década de 1930, o terror stalinista destruiu a inteligência do país onde quer que ela levantasse a cabeça – Mikhail Bulgákov (1891-1940) talvez tenha sido o último grande gênio da prosa russa, mas sua obra-prima O mestre e Margarida foi publicada apenas décadas depois de sua morte. E o célebre autor de Lolita, Vladimir Nabokov, só sobreviveu de fato ao se tornar um escritor americano.
Os russos leem muito e têm a poesia em altíssima conta – recitais de poesia com uma multidão de ouvintes eram eventos comuns na Rússia. Assim, a discussão de dois russos bêbados em torno do valor da prosa e da poesia começa a soar como uma cena realista. Basta ler algumas páginas de Dostoiévski para entrar no clima – seus personagens estão permanentemente no limite das questões transcendentais da vida, numa tensão mortal de pontos de vista contrastantes.

É verdade que ninguém precisa matar por isso, mas a distinção entre prosa e poesia fascinou este modesto cronista nos seus tempos de universidade a partir de um outro russo, o filósofo Mikhail Bakhtin (1895-1975). Em um de seus textos, Bakhtin sugere que a voz do poema é sempre a voz do poeta; o poeta se confunde completamente com o verso que canta. E a voz do prosador é sempre a voz de uma outra pessoa; o prosador, covardemente, esconde-se na linguagem dos outros.

Fiquei tão apaixonado pela ideia que escrevi uma dissertação acadêmica a respeito, tentando convencer o mundo desta verdade cristalina. Mas ninguém concordou: meu trabalho dava a impressão de que os poetas são uns egocêntricos autocentrados e os prosadores, uns caras legais que ouvem os outros. Parecia que eu estava falando em causa própria, já que nunca escrevi um verso que prestasse. Pior: os poetas seriam “autoritários”, enquanto os prosadores posariam de “democráticos”. Num tempo como o nosso, nada pode soar pior. Bem, não quero dar uma de oportunista, mas a notícia de jornal parece comprovar empiricamente a minha tese: o poeta, ao ouvir aquela besteirada do prosador, simplesmente puxou da faca, fez justiça com as próprias mãos e foi beber mais um trago.


Ainda bem que sou brasileiro, ou não estaria mais aqui.

Cristovão Tezza.
Gazeta do Povo. 18/02/2014

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