A literatura como um exercício de libertação: eis como a
pratica o escritor Bernardo Kucinski, de quem a Cosac Naify lança a coletânea
de contos Você Vai Voltar pra Mim, além de relançar o premiado romance K.. Sua
escrita é um exorcismo dos dolorosos anos da ditadura militar originada pelo
golpe de 1964. Não é, porém — como se pode temer em um primeiro instante —, uma
“literatura engajada”, ou panfletária. Kucinski não escreve panfletos, mas
ficção da mais alta qualidade. Nela incluída improváveis histórias pessoais,
pequenos sentimentos, dores secretas e toda a miudeza atroz de aflições que
definem o humano.
É uma escrita objetiva, seca, substantiva, como observamos
no conto “O Garoto de Liverpool”, história de um rapaz “magro, de rosto chupado
e miúdo, do qual só se viam o nariz, a boca e parte dos olhos”, que vem para o
Brasil fazer uma reportagem sobre os índios da Amazônia e a construção da
Transamazônica e acaba preso, confundido com um guerrilheiro. Depois da
tortura, é jogado em um buraco de quatro metros onde passa longos dias de
horror. Só é salvo porque aparece um oficial que morou na Inglaterra, lhe dá
ouvidos e consegue, assim, entendendo sua verdadeira história, libertá-lo. A
história é feita não só de grandes atos, mas também de pequenos mal-entendidos.
A ação do acaso — a chegada inesperada do militar — tem, tantas vezes, a mesma
força que a mais terrível barbaridade.
Kucinski nos mostra, em seus relatos, os interiores da
ditadura. Não só o grande sofrimento — repressão, brutalidade, torturas, ódio —
mas as pequenas dores que quase ninguém viu. É o caso do conto “A Suspeita” no
qual um grupo de amigos discute, tempos depois, sua responsabilidade ou não
sobre a loucura de um homem considerado, por engano, um informante da
repressão. Admitem o erro, carregam agora o peso de um homem ter enlouquecido
por causa deles. Mas, para se salvarem, se apegam a uma explicação racional: “É
como diz o filósofo: o homem e suas circunstâncias. O sorriso era do homem, o
DNA da loucura também já estava nele e as circunstâncias foram da ditadura. E
ponto final”. Kucinscki não passa a mão nas cabeças, tampouco nas consciências,
daqueles que tiveram a coragem de se engajar na luta clandestina contra o
regime ditatorial. Reconhece sua coragem e a grandeza de seu esforço, mas os
vê, antes de tudo, como homens comuns, que cometem enganos e deslizes também.
O livro traz alguns retratos preciosos como em “Um Homem
Muito Alto”, a história de um bravo militante que não precisou de delatores:
sua própria altura incomum o denunciou. Pernalonga, King Kong, Golias — teve
muitos apelidos, até passar a ser chamado de Jamanta, codinome dado pelos
serviços secretos. Escreve Kucinski: “Antes mesmo de cair prisioneiro da
repressão, tornou-se prisioneiro do próprio corpo”. No fim, ao sair para
comprar cigarros, é preso em um subúrbio do Rio de Janeiro. Condenado a
dezessete anos de cadeia, uma das penas mais longas para casos como o dele.
“Uma pena tão descomunal quanto sua altura”, resume, sem se negar uma dose de
humor.
Alguns contos, como “Terapia de Família”, passam apenas nas
bordas da história política. Depois da Lei da Anistia, um pai anistiado é
tratado como o centro da família, enquanto o filho passa seus dias trancado no
quarto, em fuga do mundo. A família — esgotada — decide submeter-se a uma
terapia familiar. Surge então o ressentimento do rapaz, abatido porque a mãe só
dava atenção ao pai herói. Durante os seis anos de cadeia, embora enviasse
cartas para a mulher e para a filha, só lhe destinou o silêncio. As sessões de
terapia em família se revezam com sessões individuais. O rapaz diz que não
procura emprego porque precisa “arrumar o quarto antes”. Mas, ao terapeuta,
admite: “A arrumação do quarto é uma desculpa; eu passo as vinte e quatro horas
do dia pensando em maneiras de destruir meu pai”. A terapia fracassa, o impasse
afetivo — efeito secreto da ditadura — derrota a família.
Outras vezes não, como constatamos na leitura de “Pais e
Filhos”. Quando soube que o filho Augusto é suspeito de ter participado de um
atentado, o dr. Nicolau Junqueira, médico-cirurgião, fica possesso. Depois de
muito buscá-lo, encontra o filho escondido na casa de uma tia. O pai é um
defensor intransigente do regime militar. Um dia, o rapaz é intimado a entrar
para o comando da organização clandestina a que pertence. Prefere fugir para o
Chile. Só um ano depois, através da mãe, entrega ao pai seu endereço em
Santiago. Os pais viajam para visitá-lo. O encontro é tenso, parece desastroso,
até que o doutor convida o rapaz para uma caminhada a dois pela cidade. O fecho
do conto é especialmente forte: “Já na rua, o velho médico colocou o braço em
torno do ombro do filho, e assim caminharam, lado a lado, abraçados, por muitos
e muitos quarteirões”. Sem trocar uma única palavra. O afeto mais profundo e
difícil, muitas vezes, não encontra palavras que a ele correspondam. Só se diz
em silêncio. Sentimentos paradoxais, como a ironia, o desconcerto, o amor e o
humor, Kucinski nos mostra, também fazem parte da história da ditadura militar.
O estilo intimista — embora escrito em um tenso realismo —
dá o tom também, como seus leitores já sabem, do premiado romance K., que agora
ressurge em nova edição. Inspirado no desaparecimento, 40 anos atrás, da irmã
de Kucinski, Ana Rosa, e de seu marido Wilson, o romance guarda um forte
caráter autobiográfico que, no entanto, não o encarcera no mero testemunho. Há
uma recriação corajosa da história pessoal, o que reafirma a posição da
literatura como lugar não só de transformação, mas de libertação. Embora sua
identificação com as vítimas da ditadura seja indisfarçável, Kucinski faz, todo
o tempo, um esforço (bem-sucedido) para ampliar seu olhar, colocando-os assim
em seu devido tempo e circunstâncias, arrancando-os da simples mitologia
política e devolvendo-os ao terreno do humano. O que pode parecer que os
apequena, na verdade os engrandece. A História, mesmo a mais heroica, é feita
por homens frágeis e cheios de contradições e isso só reafirma o valor de sua
luta.
José Castello.
Gazeta do Povo. 23/02/2014
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