Ao subir até minha biblioteca, algumas vezes tenho a
impressão de ouvir um discretíssimo burburinho. Um murmúrio, um ruído secreto,
como restos de palavras, ditas quase em silêncio, ou mesmo em silêncio. Como se
eu flagrasse meus livros, na minha ausência, mesmo fechados e imóveis, dialogando
entre si. Livros que conversam com outros livros, em um diálogo secreto que
arrasta o leitor, que o envolve e o alimenta. Penso nessa estranha sensação
enquanto leio duas narrativas infantis de Shel Silverstein que acabam de sair
pela Cosac Naify: A Parte Que Falta e A Parte Que Falta Encontra o Grande O.
Penso em um terceiro livro para crianças, Quando Meu Gato Era Pequeno, de
Gilles Bachelet, lançado pela Estação Liberdade, uma narrativa que dialoga com
as duas primeiras.
A primeira delas, A Parte Que Falta, narra a história de um
círculo a quem falta uma parte — como uma torta redonda que teve uma fatia
roubada. Silverstein conta a aventura deste círculo em busca de seu
complemento. Ele sai à procura da outra parte em outra parte, não em si mesmo.
Enquanto rola, canta uma canção: “Oh, busco a parte que falta em mim,/ a parte
que falta em mim./ Ai-ai-iô, assim eu vou,/ em busca da parte que falta em
mim”.
Como lhe falta uma outra parte, ele não consegue rolar muito
rápido — e assim pode conversar com uma minhoca, ou sentir o aroma de uma flor,
ou ainda brincar com um besouro. Um dia, acha que encontra a parte perdida —
alguém que tem o formato da fatia de torta roubada. Ela reage: “Não sou a parte
que te falta. Não sou parte de ninguém. Sou parte completa”. Segue em frente e
encontra outras partes, mas elas, pequenas demais, ou grande demais, nunca nele
se encaixam. “Certa vez, pareceu que tinha achado a parte perfeita, mas não a
segurou forte o bastante, e a perdeu”. Outra vez, segurou com força demais, e a
quebrou. Nada dá certo em sua busca.
Por fim, o círculo encontra uma parte que nele encaixa com
perfeição. Mas agora que está completo passa a rolar com muita rapidez e não
consegue mais cheirar uma flor, não pode sequer cantar. Entendeu que a fusão
absoluta é, na verdade, uma prisão. “E, com cuidado, pôs a parte no chão e
rolou devagar para longe”. A história continua no segundo livro, agora na
perspectiva da parte que falta, e não mais do círculo. Também ela busca um
encaixe, mas nenhum dos círculos que ela encontra lhe serve. Alguns deles
tinham muitas partes faltando, outros tinham partes demais e nelas sufocavam.
Até que um dia achou o círculo em que enfim se encaixava. Acontece que, depois
disso, a parte começou a crescer e o encaixe se tornou asfixiante. Sabe que não
pode recuar, que precisa continuar a crescer. Abandona, então, o círculo que,
desolado, sai cantando: “Busco a parte/ que falta em mim/ uma que não/ cresça
assim...”
Até que um dia a parte carente encontra o Grande O, um
círculo perfeito. “Acho que você é aquele que eu esperava”, ela diz. “Mas não
falta parte alguma em mim”, ele protesta. Desiludida, volta a ficar sozinha e
decide não mais procurar a parte que lhe falta. Ao contrário: resolve aprender
a rolar sozinha. No início é difícil, mas ela insiste e luta, até que consegue
começar a quicar. Está rolando! A parte que falta aprende que o encaixe que lhe
falta é com ela mesma. Que ela própria é o seu sentido e o seu destino, e não
alguém que venha de fora. Só depois disso, ela consegue, de fato, se aproximar
do Grande O. Quando descobre que mesmo uma parte é uma coisa inteira. E que a
verdadeira aproximação só se dá entre seres inteiros.
Os dois livros me levam à leitura de Quando Meu Gato Era
Pequeno, de Gilles Bachelet. A história simples de um homem que adota um gato e
os novos desafios que isso lhe traz. Esta é a história que lemos: um homem
adota um gato. Mas nas ilustrações do próprio Bachelet o gato não é um gato, é
um elefante. Que se aninha em sua cestinha para dormir. Que toma seu leite com
voracidade. Que arranha as poltronas e passa horas a dormir. Que gosta de
dormir entre as pernas de seu dono e se entristece sempre que ele sai de casa.
O choque entre palavra “gato” e a imagem do elefante produz no leitor um
delicioso estranhamento. Algo parece fora do lugar — algo parece incompleto,
como nas histórias de Silverstein. Algo parece estar faltando. Mas não: a
divergência entre a narrativa e os desenhos é uma afirmação veemente da
liberdade do autor, Gilles Bachelet. Em seu livro de ficção infantil, ele pode
tudo. Não precisa seguir a lógica, ou o bom senso. Não precisa ser claro, ou
coerente. É assim que chega a si — como o círculo e a parte de Silverstein, que
se bastaram sozinhos, e só assim puderam chegar ao outro. Aceitando a
diferença. Fazendo uso do incrível poder conferido pela liberdade.
Lembro aqui de meu sobrinho Eduardo, de nove anos, que
recentemente me perguntou. “Por que existem perguntas que não têm respostas?”
Tentei explicar que ele estava dando o primeiro passo num terreno muito
estranho, mas muito belo: a filosofia. Não sei se chegou a entender o que eu
quis dizer. “Onde ficam essas respostas que não encontram suas perguntas?”, ele
insistiu em perguntar. Tentei lhe dizer que as perguntas sem resposta não
precisam de respostas, e que as respostas sem perguntas não precisam de
perguntas também. Em outras palavras: tentei lhe mostrar que no mundo as coisas
nem sempre se encaixam, grande parte das vezes divergem. E que não existe o
encaixe perfeito, ou a perfeição. Assim que reencontrá-lo vou lhe dar de
presente os livros de Silverstein e de Bachelet. Não que neles meu sobrinho vá
encontrar as respostas que procura e não acha. Mas entenderá, tenho certeza, a
beleza das perguntas. Como, mesmo sem respostas, elas nos alimentam. Como elas
nos fazem bem.
Talvez venha daí o burburinho que acredito ouvir cada vez
que subo à minha biblioteca. Mesmo fechados, os livros falam ao mesmo tempo. Um
não espera resposta do outro — todos têm algo a dizer e isso lhes basta. Ou
pelo menos deveria bastar.
José G Castello.
Gazeta do Povo. 09/03/2014
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