segunda-feira, 24 de julho de 2017

A PALAVRA


vocês não entenderam nada, vocês não sabem nada
poesia não é querer escrever bem
poesia é o que eu ainda irei relatar em prosa
poesia é o que ainda pretendo escrever
para depois reler e dar risadas, imaginando o espanto de quem vier a ler o que escrevi
poesia é velocidade
do disparo de revólver verdadeiro, da janela, no automóvel que ia passando por aquele alvo escolhido ao acaso,
poesia é som,
o áspero ruído do gume de diamante sendo testado por dois especialistas em arrombamento na vitrina daquela loja de armas a 80 m. de distância de uma delegacia (eu esperava no carro) (se houvesse cedido, levávamos tudo)
poesia é luz
daquelas janelas abrindo-se todas ao mesmo tempo, todo mundo acordando para ver que espécie de confusão era essa, o que aquele bando de malucos fazia na rua àquela hora
poesia é noite
a outra noite, aquela (no HC, minha pressão caiu, e depois ainda tive que dar a notícia aos amigos)
poesia é dizer
é ela dizer: “como você me revoluciona por dentro”
poesia é escrever
com um cuidado enorme, pesando cada palavra, para não me declarar réu confesso
poesia é névoa
de fumaça enchendo o quarto, todo mundo a dar risadas sem conseguir parar
poesia é porrada
algo bem melhor do que briga de scholars, aqueles da outra universidade contra esses desta,
poesia grossa (cacete rombudo, que tal esta imagem?)
poesia é isso, é isto, também é aquilo, é agora
poesia é o que sempre soubemos
o conhecimento animal
um núcleo raivoso anterior à Queda
- Gnose
estou falando de filosofia, de essência,
uma exploração do desconhecido pelo corpo, através do corpo,
o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro todo
o que sei é onde penetrei,
- o telefonema que me traz lembranças de trinta anos atrás, de ontem, de agora, seu som a vibrar neste ar parado de noite antes de mais uma tempestade -
nada me interromperá
sempre usei uma linguagem direta,
Prometeu, Fausto
não quero falar, quero ser dito
sejamos densamente humanos
como a chuva
no ar saturado de excesso
parto ao encontro do núcleo selvagem de qualquer coisa
diamante ou lágrima perdida no fundo do bosque
ex-deusa
assim me despeço
mas eu a reencontrarei
lunar
resta saber o sonho, parábola da vida

Willer, Claudio . De Jardins da provocação (1981)


Nenhum comentário: