Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém se deparou com ele ao
dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Nunca ninguém duvidou que ele se
passeava invisível por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras
que eram indubitavelmente do passeante invisível. Alguns afirmavam ter ouvido
sons abafados, momentâneos arrastamentos de pés, que comprovavam que ele se
passeava por ali.
A cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Os homens
precisam de um lugar coletivo para viver. Estarem juntos dá conforto e
segurança, mas demasiada proximidade torna-se inquietante. Estar a sós com
outro homem numa rua deserta, noite alta, é tão ou mais assustador do que
enfrentar os silêncios e os ruídos da noite na floresta, na serra, no campo. Os
homens precisam de estruturas, muros que os separem dos outros homens. O
passeante invisível construira a cidade, mantinha as estruturas fortes, escorraçava
os inimigos, assegurava os fornecimentos. Ele é forte e destemido; passeia-se
por toda a cidade, sobretudo no ermo da noite. Dizem. Porque veem sombras,
ouvem certos sons reveladores, porque só pode andar por lá, invisível.
— Olhem, lá vai a sombra dele, por entre os pilares daquelas
arcadas — diz um.
— Olhem, vi agora mesmo um reflexo dele no vidro daquela
montra — assevera outro.
Ninguém punha em dúvida estes avistamentos fantasmáticos.
Toda a gente sabia que o passeante invisível andava por lá. Nalgum sítio havia
de estar: nas arcadas, nos vãos das portas, nas gares rodoviárias ou marítimas.
Os seus sinais vislumbravam-se sempre a desaparecer por detrás de alguma
estrutura da cidade. Ele andava lá, mas invisível.
Conta-se que, em tempos que ninguém já recorda, um jovem,
irreverente como todos os jovens, ao ouvir alguém dizer, pela milésima vez, que
acabara de avistar a silhueta do passeante invisível, não se conteve, como
seria prudente:
— O passeante invisível não existe!
Um grande burburinho se gerou entre os que ouviram tal
dislate. Quiseram bater-lhe, ou então que retirasse o que tinha dito, que
pedisse desculpa.
— Quem é que achas que construiu a nossa cidade, mantém as
estruturas fortes, afasta os nossos inimigos e assegura os fornecimentos de que
a cidade precisa? — confrontaram-no.
O jovem ainda tentou persistir no erro, mas compreendeu que
estava isolado e desacreditado. Pediu desculpa.
O alcaide, no entanto, não hesitou em tomar medidas que
devolvessem à população toda a confiança eventualmente perdida e até a
reforçassem. Emitiu um edital anunciando que, a partir de então, por especial
mercê do passeante invisível, ele passaria a usar uma roupa que o tornasse
visível e identificável. Além disso, quem quisesse ver a roupa por ele usada,
bastaria dirigir-se à alcaidaria onde estaria exposta numa câmara junto à
entrada.
Os muitos cidadãos que lá acorreram viram o que parecia
andrajos de mendigo, dado o seu aspeto miserável, mas todos compreenderam que
eram os mais adequados para alguém tão humilde que evitava mostrar-se. A
confiança de todos fortaleceu-se. O passeante invisível continuava a proteger a
cidade e agora podia ser visto. E mais frequentemente passaram a avistá-lo nas
arcadas, nos vãos das portas, em outros abrigos precários. Se não era ele,
parecia, pelos trajes.
Joaquim Bispo
* * *
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