domingo, 19 de junho de 2011

Moleque

AO LEITOR, NOSSO IGUAL, NOSSO IRMÃO.




A você que por pouco não é transparente, apesar de sua solidez aflitiva. Que tem a alma folgada como os sapatos de carlitos. A você que sai de casa para entrar no mundo. Que enxerga peixes nas poças da chuva. A você que é um franciscano brutal. Que alimenta os pombos com parafusos. Você que é um relógio onde o tempo estragou. Você que nunca superou as drogas. Que nunca venceu aquela paixão. Que não pode ver uma mesa de cartas. Que come terra. Que é um sapo asfaltado. Você que estrategicamente colocou a cadeira de balanço na corda-bamba. Que titubeia no fio da lâmina, entre herói de você mesmo e vilão dos outros. Que ora tem cansados olhos portuários, de ancoradouros, ora os olhos espreitantes de mato fundo. Que aprendeu a respirar ouvindo as praias. Que tem a chave para todas as praças da cidade. Que bebe junto com o gado as águas estigiais. Que construiu escadas que vão dar no teto. Que inventou janelas inacessíveis. Que construiu mansardas sem alicerces. Que tem uma mitologia de cães cegos. A você que é esta florescência de miasmas. Você cuja alegria é uma careta. Cujo sangue é de auroras. Cujos pêlos são de raízes e líquen. Cujos ossos são de tijolos. E cuja alma é de querosene. Você cuja matéria ao apodrecer virará música. Você que guarda um curió na traquéia. Que tem cabelos no coração. Que tem asas ímpares. Que sai pelas ruas como uma charanga de calúnias. Você que vadia as estrelas. Que porta um revólver carregado de baladas. Que desconfia dos poderes sobrenaturais da linguagem. E que ainda assim diz, diz desesperadamente as coisas, como se fosse arrastado por um desacampamento de ciganos, como se uma guerra começasse por sua causa, como se um mágico tirasse moedas de sua boca, como se as esferográficas guardassem a velha herança das navalhas ruins, como se dizer confortasse seu futuro fantasma. A você que se alberga sob as marquises do luar. A você que tem medo de ser eterno. Que vive o precário vaudeville dos instantes. Que aprendeu a dar cambalhotas com os bobos de shakespeare, com didi mocó. Você que é do tamanho de seu sonho e de sua queda. Você que é do tamanho de seu cadáver. Cuja coragem é um navio de ratos. Cujo temor é uma roça de leopardos. Cujo bom-senso é o pavio da combustão. Cujo reino é uma cratera. Cuja coroa é o nariz do palhaço. E cujo assassinato é um ressuscitar-se. Você que é, às quatro da manhã, a única janela acesa. Você que se intoxica de deus. Que perdeu a identidade. Que perdeu o emprego. Que perdeu o ônibus. Que perdeu a graça. Que perdeu os sisos. Que perdeu o bilhete premiado. Que perdeu o fio de ariadne. E que, ainda assim, volta para casa sangrando como quem assobiasse. A você que canta seus versos para a platéia dos não-nascidos. Que faz parelhas para os afogados. A você que sempre quis ser o poeta de Tróia. O poeta da boca-de-fumo. O poeta de porta-de-cadeia. O poeta dos obituários. O poeta oficial dos nasceres do sol. O poeta oficial da Vila Hauer. E que, ao fim, não é poeta oficial nem de você mesmo. Você que toca trombone dentro de uma piscina vazia. Você que tem queimaduras de terceiro grau por dentro. Você que cata os rebotalhos da cultura materialista e recicla do jeito que dá e não dá, e junca de esperança todos os impedimentos. Você que leva pela mão o menino que foi um dia. Ou que é o idiota entalado no escorregador do parquinho. Você que quase assalta as gurias de retoques e não-me-toques. Você, pescador na avenida das piranhas, que rumina um coração de galinha. Você que está na sarjeta, no apartamento de luxo, no meio do mato, na metrópole, na província, na margem da margem da margem. Na margem da cidade, ainda que no meio dela. Na margem das escolas, das academias. Na margem de todas as liturgias. Na margem de todas as caligrafias. Você, exilado de um país fictício. Você que manipula venenos. Que enlouquece sozinho. Que é, depois do dilúvio, um cogumelo atômico. Você que é uma vela queimando dos dois lados. Que é este ser fronteiriço entre azul e precipício. Que escova os dentes com chuva e maçarico. Você que ama como quem enfarta. Que sobra em sombra. Que é um grampeador de vento. Que é uma colônia de percevejos abstratos. Filho de todas as razias. A você que por mais um pouco seria invisível.







RODRIGO MADEIRA

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