sábado, 25 de junho de 2011

Naufrágio






Mergulhou ao fundo, buscou o casco coberto de limo e algas, colou as partes que se partiram. Refez a pintura, poliu. Refez a sala de jantar com suas finas louças de cristal e porcelana antes de abrir um espumante que recolocou na garrafa colada. Aos poucos, a bebida tomou a cor delicada e borbulhou sensual na longa taça, que ela ergueu num brinde ao olhar para o grande relógio acima da lareira. Sentiu o gelado de sua bebida preferida adoçando-lhe a boca, que de repente se fizera vermelha, contrastando com o vestido de um salmon quase rosado deslizando em duas delicadas saias sobre o corpo esbelto que refizera.

Olhou os fantasmas que não via, mas supunha, e resolveu refazê-los, porém não quis que lhe olhassem ou lhe sorrissem, quis apenas observá-los. Então refez o salão de festas, a piscina, o saguão, e desfilou atenta e silenciosa, engolindo, extasiada, cada sorriso e cada conversa, cada olhar e cada silêncio. Não sabiam de nada, mas ela sabia.

Brincou de Deus naquele instante, olhando, às vezes com piedade, para os inquietos do grande salão, as damas elegantes e delicadas, as jovens que ainda fantasiavam o brilho de um casamento promissor, banqueiros com olhos que reluziam cifras, sonhando com suas fortunas nos cofres, nos bancos e em seus corações vazios. Não suspeitavam de nada, mas ela já sabia, era Deus passeando entre mortais que já nem existiam mais se não porque ela os queria ali mais uns segundos. Nesse instante julgou-se egoísta, perguntando a si mesma se queria ver a dor outra vez naqueles rostos. Não vira. Imaginara.

Fecha os olhos acariciando a pele macia do colo que tantas vezes sentira os amores ardentes de sua juventude cobiçada e desejada. Melhor soltar os cabelos e sentir a brisa fria brincar com eles tornando a sua visão ainda mais sensual para si mesma, queria se desejar aquele instante como deveria ter se desejado a vida inteira. Queria sentir a si mesma, descobrir-se e penetrar no mais profundo de seu próprio eu e de sua beleza descuidada, de seus sonhos cheios de limo, um limo verde e lamacento que não desgrudava mais.

Viu uma dama sendo cortejada numa mesa próxima a janela. Sentiu-se como que insuflada por uma substância gélida e sem doce, causando-lhe um mal estar duvidoso, mal estar que tinha outro nome que não queria recriar. Foi tomada de um súbito medo de sentir-se humana de novo, porque naquele momento invejou aquele sorriso, o colo perfeito. Depressa, arrumou a postura lembrando-se que era deus, podia deixá-la só e infeliz para que sentisse depressa o gosto amargo que se sente depois de se embriagar naquela bebida tola chamada amor. Então lembrou-se de que aquela pobre jovem, tão ingênua, não desconfiava de nada, mas que ela sabia tudo e foi tomada por uma apreensão que se transformou numa angústia doentia lhe fazendo lembrar por que viera ali.

Suspira quase angustiada querendo desfazer o casal, mas dirige os olhos com uma piedade tão intensa para aquela figura linda perto da janela, olhando de vez em quando para o céu negro e imaginando o mundo imenso que julgava estar prestes a engolir e nunca engoliu. Seus olhos pareciam paralisados como se visse a si mesma, tão cheia de sonhos; queria tocá-la e sentir a maciez dos seus cabelos avermelhados. Sente aquela substância salgada tocar seus lábios, contrastando com o doce do champanhe que acabara de beber, como a vida contrasta o doce e o amargo em cada pedaço de silêncio que entrega.

Caminha aflita até o grande relógio, girando os ponteiros para que chegasse logo a hora, e desfaz todos os gritos e sorrisos, todos os rostos e sonhos. Seria egoísta até mesmo com sua solidão. Queria estar só para sentir as águas geladas cobrirem seu corpo frágil sob a seda suave. Queria estar só para sentir-se dona da noite e daquele pedaço imenso de tragédia.

Então, naquele instante a popa começa a desaparecer coberta pelas águas, já não tinha mais para onde ir, mas não fugiria. Engole a noite com os olhos ardentes de silêncio, engole o brilho das estrelas para sentir-se iluminada. Não havia mais tempo e a sensação do limite já lhe tocava os pés, que nunca tocaram o chão. Ali chegara finalmente à borda. Não pensa em mais nada. Recusa-se. Não queria dividir aquele momento com suas lembranças, não queria que personagens de seu passado ou presente fizessem parte daquela passagem árdua e ao mesmo tempo extasiante.

O cume escuro já quase desaparecia, o vestido flutuava fazendo volume na água. Não cairia. Sentia o corpo congelando, mas sentiria cada segundo. Sentia somente o gelo explorar cada centímetro de seu corpo, da mulher que fora um dia, cheia de sensações. Abdômen, seios, ombros e nuca. Permite-se um sorriso enquanto faz amor com a morte em meio ao êxtase silencioso de seu delírio.

Queixo, lábios e o ar foge sem ter para onde ir, fazendo borbulhas na água, como uma imensa taça de champanhe esquentando sem ninguém beber.



Nasci em Paranaguá, mas de coração sou de Iguape, é lá que fica a casinha encantada da minha infância, onde recebi meus primeiros livros pelo correio; clássicos diversos, como Cinderela, despertaram a paixão pelo lúdico. A paixão pela vida se concretizou recentemente, com a chegada da minha filhinha. Aceitei o convite de Drummond e agora ando com uma vontade ardente de viver, de amar, de andar de “mãos dadas” com as pessoas participando o presente antes que o presente se esvaia, por isso resolvi perder o medo e publicar esse conto.


Luciane Martins Monteiro


Sou metida a escrever desde os onze, mas foi na faculdade de Letras que descobri que podia me explorar bem mais. Gosto de mergulhar na alma, masculina, feminina, desvendar os nós de cada um, me enredar entre eles e fingir que sou mais de um, sou tantas, às vezes nenhuma, às vezes fera, outras, água calma, sou assim mesmo, diversa, sou mulher.





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