8 de abril
Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa
tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora,
porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu
para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve-me a
impertinência; os gostos não são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de novembro e o
lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bonds, estava um burro
deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não
estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos
o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os nossos furavam-lhe a pele, os olhos
meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mas tão
frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com
água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou
quem quer que é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não
foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta,
receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água;
estava para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal. Um
deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar
com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos,
porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca.
Diga-se a verdade; não o fez — ao menos enquanto ali estive, que foram poucos
minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há
justiça na terra, valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu
fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência.
Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão
dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por
pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a
princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna
necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvida que é o exame da
consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que
presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion,
porventura maior; não decifrei palavras escritas, más idéias íntimas de
criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
"Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado
que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi
nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso
mesmo antes de haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do
verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quanto ao zurro, usei dele como
linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar
por ser costume velho, não com idéia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no
chão. Quando passei do tílburi ao bond, houve algumas vezes homem morto ou
pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o
cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando a autoridade.
"Passando a ordem mais elevada de ações, não acho em
mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública.
Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que,
não havendo nenhuma revolução declarando os direitos do burro, tais direitos
não existem. Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os
obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em
conta os interesses dá minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau.
O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima, que é, em resumo, o
meu único defeito. Quando não teimava, mordia freio, dando assim um bonito
exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas;
bastava sentir o freguês o tílburi ou o apito do bond, para sair logo. Até aqui
os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.
"A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando
depressa tílburi e o namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em
lugar onde o moço que ia nobond podia mirar a moça que estava na janela. Não
poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei
filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na
quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria
fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio dele, deixando que me desse tapas e
punhadas na cara. Enfim...”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que
pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de que um
burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros
devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, não seriam
menos exemplares que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral
do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga
também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são
superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro,
que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de novembro, achei o
animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo
repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não
havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos desse mundo. Sem exagerar o
mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não
inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in
pace.
Machado de Assis - "A Semana" (crônicas 1892-1900)
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