sexta-feira, 30 de agosto de 2019

quantas pessoas precisam pra trocar uma lâmpada


Peruas
Duas: uma chama o eletricista e a outra prepara os drinques.

Psicólogos
Apenas um, mas a lâmpada PRECISA QUERER ser trocada.

Loiras
Cinco: uma para segurar a lâmpada e outras quatro para girarem a cadeira.

Bêbados
Um só pra segurar a lâmpada, enquanto o teto vai rodando.

Ativistas Gays
Nenhum: A lâmpada não precisa mudar, o que precisa e que seja aceita pela sociedade..

Cantores sertanejos
Dois: um troca a lâmpada e o outro escreve uma canção sobre os bons tempos da lâmpada antiga…

Machões
Nenhum: macho não tem medo de escuro.

Patricinhas
Duas: uma pra segurar a Coca Light e outra pra chamar o papai.

Mulher com TPM
Só ela! Porque ninguém, dentro desta casa sabe como trocar uma lâmpada! São um bando de IMPRESTÁVEIS! Eles nem percebem que a lâmpada queimou! Eles podem ficar em casa no escuro por três dias antes de notar que a bosta da lâmpada queimou! E quando eles notarem vão passar mais cinco dias esperando que EU troque a lâmpada porque acham que eu sou a ESCRAVA deles! E quando eles se derem conta de que eu não vou trocar a lâmpada, ainda vão ficar mais dois dias no escuro porque não sabem que as lâmpadas novas ficam dentro da merda da dispensa! E se, por algum milagre, eles encontrarem as lâmpadas novas, vão arrastar a poltrona da sala até o lugar onde está a lâmpada queimada e vão arranhar o piso todo, porque são INCAPAZES de saber onde a escada fica guardada! É inútil esperar que eles troquem a lâmpada, então sou eu mesmo quem vai trocá-la! E como eu sou uma mulher independente, vou lá e troco! INFERNO!!!!





 Deisi Perin


Praça





Ah, essa remodelada praça...
Costumava passear por aqui.
Quando minha vida não precisava ser perfeita. Nem imperfeita.
Quando minha sensibilidade regia as regras e o prazer não precisava ter utilidade.
Quando eu amava matéria e espírito; palavras e poesia.

Ah, essa  praça...
Com seus transeuntes interagindo ou não continua a mesma,
e por não ter consciência de que ela precisa ter razão para ser,
ela existiu, existe e existirá.

E eu, dissolvido
entre o passado e a mim mesmo,
passeio pela praça que eu costumava frequentar
quando eu costumava estar vivo.


 Deisi Perin
Nenhuma revolução
nem sonho de esperança no ar
só conversas de esquina
beijos dispersos , trocas de impressões
- marcas de um tempo quase sem rima.

Márcio Diogenes Mello
A vida química dos pergaminhos
na decomposição das folhas
desintegra composições vitais.

Márcio Diogenes Mello
a luz que eu quero , eu não a verei : a minha vida é breve, eu sei, e meus olhos, maiores do que eu , só refletirão a claridade ausente que eu apalpo sob a indecisão formal da noite.

Moacyr Felix
Gosto demasiado da vida para deixar de chorá- la.

Moacyr Felix.in Dezoito Parêmias do Verão contraditório
Você a acha bonita, cadê seus óculos ?
Os olhos do coração não precisam de miradas artificiais.

Wilson Roberto Nogueira
Amizade é feita de pedaços
ligam-se delicadamente as partes
Para compor-se o objeto completo
do qual se reparte.

Márcio Diogenes Mello

Palavras ao vento

Para Hermes

Assim como as folhas secas são levadas
pelo vento,
o vento também levou embora as minhas
palavras todas.
Foi assim :
um dia,
enquanto eu escrevia o meu tratado de
uma vida perfeita,
o vento veio,
arteiro,
desgrenhou o meu cabelo,
arrancou a minha roupa
e levou tudo consigo.
Fiquei muda,
vazia.
Ando pelo mundo agora em busca de
palavras,
em busca de sentidos .
Na parede do meu quarto
já colei meia dúzia de substantivos,
alguns verbos
E tenho escrito uma história secreta,
incerta,
que eu desconfio que seja minha.

Mônica Menezes

Lua de Março

A lua está despida
O vento despiu a lua
O vento arrancou ao corpo da lua
Assuas vestes de nuvens. E agora ela está nua,
inteiramente nua.
Mas já não coras ,
Ó lua impudica ?
Pois tu não sabes
Que não é bonito estar nua ?

Langston Hughes.

Fumaça da memória



deletar amizades virtuais na vida real é um ácido que dissolve lembranças esfumaçadas pelo sol enganador de espelhos que projetavam nossas esperanças mascaradas em falsos ídolos.
Assassinar o que existe em nós noutro é criar calabouços onde o carrasco somos nós mesmos ou é alguma forma de  libertação do verdadeiro Outro que nós colonizamos  ?

Wilson Roberto Nogueira

Onde está você
nas ferida do "Tá na rua "
no teatro de televisão
no cais mais próximo
na esquina,
na festa de roupa escura
no amanhecer de ouro ou prata
no over
no nada.

Márcio Diogenes mello

Soluço

Para Monalisa

Todos os meus soluços são relâmpagos
Anunciam trovões e tempestades
Mas apenas anunciam
Todos os meus gritos são soluços
Todos os soluços são silencio

Mônica Menezes.

O melhor amigo

Muita coisa já foi dita
Sobre o melhor amigo do homem
vendo a foto de Dorico
Até as palavras somem.
A pobreza franciscana
Do homem que anda na rua
Não impede que ele seja
Grandioso como a Lua
No saco que traz nas costas
Nem precisa ter apostas
No buraco que está aberto
tem um cão de olhar esperto
o cãozinho é felizardo
E não pesa como o fardo
Para o dono do bichinho
O mundo é bem mais mesquinho.
Desprovido de riqueza
o velhinho é só nobreza
Ele tem um bem profundo
O melhor amigo do mundo.

Maranúbia Barbosa


METAMORFOSE

Ao virar a esquina do tempo
desgastado pela chuvas dos dias
assisto com estupefacção
à mudança que fere a existência

O Sol continua a nascer
nos locais onde os dias acordam
mas a luz já fere o olhar

As estrelas regressam na noite
pois não sabem escapar-se do céu
mas a sua presença é difusa
encoberta nas teias de fumos
e repelentes cortinas de gases

Os mares crescem no tempo
engrossados na indiferença aos sinais
que se espalham à vista de todos
e os ventos volteiam raivosos
como feras ululantes de dor
incitadas por maus tratos constantes

Os Homens fomentam discórdias
germinadas em intolerências crescentes
alimentadas pelos senhores da guerra
e as crianças choram com fome
nos desertos da indiferença humana
perante as tragédias alheias

Assistimos à metamorfose
da borboleta que foi este mundo
na crisálida que agora habitamos

A lagarta espreita no tempo ...

João Carlos Esteves        25 de janeiro de 2011 20:51
JCE 01/2011

Amor desentravado
mistério de presença
em noites vadias
olhar suave sobre olhos
_inadvertido olhar.

Márcio Diogenes Mello

Segredo

Para Li Po

Vou te contar um segredo
Me apaixonei pela lua
Quando , em noite de sonho,
Ela pra mim se mostrou
Tão linda a lua
Tão alta
Longínqua
Amanheceu
E o meu amor transbordou
Chovi chovi chovi
Uma forte chuva de amor
E quando , em noites de lua,
A chuva insiste em molhar
Sou eu que não resisto
E viro chuva
Pra te beijar.

Mônica Menezes

A política e justiça Brasileira E a desigualdade social



Autor poeta
Raimundo nonato da silva

Na política brasileira
Conheço político ingrato
Quando o rato se prepara
Para enganar o gato
Entram o lobo e a raposa
Que roubam mais do que rato

O legislativo é falho
Igual a fogo de palha
Executivo faz pouco
E o pouco que faz falha
E o nosso judiciário
Dorme mais do que trabalha

Legislativo não presta
O executivo é ruim
O poder judiciário
Não deixa de ser assim
E por dizer a verdade
Alguém não gosta de mim

Só legisla em causa própria
O poder legislativo
Executa muito pouco
O chamado executivo
O judiciário a coita
Os dois por algum motivo

Legislativo só aumenta
Seu nível salarial
Só faz lei em causa própria
O poder cara de pau
E o trabalhador da roça
Ganha pouco e come mal

Todo candidato ruim
Falo mal dele e não corro
Tem o candidato homem
E candidato cachorro
Em defesa da pobreza
Primeiro Deus depois Zorro


Dos políticos brasileiros
Só dez por cento me atrai
Porem noventa por cento
Não gosta do povo e trai
Na conversa de corrupto
Doido é o homem que cai

Entra um ruim outro ruim sai
É assim de noite a dia
Respeito mas, não concordo.
Com nossa democracia
Que ninguém coloca em pratica
Fica só na teoria

No poder judiciário
Honesto só dez por cento
Em toda regra hoje tem brecha
Eu tenho conhecimento
Da justiça brasileira
Ruim só noventa por cento

Já pensou se no Brasil
Tivesse pena de morte
Só morria o pobre fraco
Só vivia o rico forte
Onde o pobre é infeliz
Só o político tem sorte

Sei que com a felicidade
Todo Brasileiro sonha
Nosso povo não é besta
O político diz ai tônha
Invés de trazer orgulho
O político faz vergonha

Caros amigos leitores
Agora estou convencido
Que dos nossos três poderes
Só dez por cento é colhido
O político só tem ganhado
O pobre só tem perdido

Raimundo Nonato



O vazio preenche o quarto na tela do computador
O reflexo de todas as cores vida insipida e incolor
inodora existência no quarto de tapetes gastos

a poeira alimenta multidões invisíveis
banquete de ácaros nas células mortas  do dia
dia noite morte e meia vadiando existência

de vidro opaco coleta de cacos de horas mortas
sobram sombras no entardecer  de ruínas
de inconstruídos templos onde jazem altares
sagrados de vida partida sem adeus na saída.

Wilson Roberto Nogueira .
Atirei um limão doce
Na janela de meu bem :
Quando as mulheres não amam,
Que sono as mulheres têm !

Sombra da nuvem no monte,
Sombra do monte no mar
Água do mar em teus olhos
Tão cansados de chorar.

Manuel Bandeira
Em tuas mãos suaves
Deposito
meu coração cansado
E quero , adormecido
no sonho bom
de teu semblante,
Despertar sem passado.

Araldo Sassone
Perdidos na rua
mais que meninos, enganos,
tudo de rua;
triste face
delicadamente,
cruelmente se nos apresenta.

Márcio Diogenes Mello . RJ

O cisco

Assopra.
Tira o cisco.
O cisco não sai.
Não sai o cisco.
O cisco sou eu.
Um cisco.

Mônica Menezes. Sergipe

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Mulher de vestido e sapatilhos

Comprei frutas e frésias  na feira . Ares  primaveris pelo corpo. liguei pro moço de braços lindos . O tempo fechou a carranca para Sarah e seu drama fútil. Não há dias em que você duvida que tenha nascido ? O avião esgarça a nuvem , dá para ver daqui desse inferno inclinando um pouco a cabeça fora do carro. A fra (n )queza é cabotina.Atrás de suprir mistérios cutuca vespas." Um cérebro intrigante sobre pernas imbatíveis ". Ava nunca foi polida consigo, mas deveria . Supera-se. Tarde lavanda . Nem o mar me falta.
Ledusha Spinardi. in Risco no Disco. Mais ! . FSP.. 25/07/99

As belas corujas sabem mais.




De repente eu fale de mim,
Que sou assim,
E mais além.

De repente eu queira alguém
Por perto,
Quando não tiver ninguém.

De repente eu confie meus
Tesouros aos olhares dos doutos,
Que os querem,
Sem querer.

De repente o futuro cure o passado,
De repente a luz ilumine a treva.

De repente essa gente se vá,

De repente.

Uma instância de silêncio
Se sobressai à minha paz.

E vou

Pelos mares revoltos, encantos
Em olhares secos.

Os meus olhos estão secos,
E meu ser não se nega.

Ontem eu voei por todo o globo
Ontem eu fui eu mesmo.
Hoje também serei.

Ninguém viu minha luz.
Todos me deram conselhos
Sobre a dor.

Eu repetia que queria asas.
Que não poderiam me dar.
Eu voaria para minha casa,
Eu rumaria para um lugar.

Hoje sonho sonhos
Em preto e branco.

Hoje reclamo de tudo
Com o olhar.

Pois aprendi que mar é mar
E ali,

Tudo é navegar.
ACM

A Ordem

Como o torvelinho da noite tinha terminado de triturar o fio do sentido daqueles dias loucos , como tudo isso era fato que ninguém mais podia contestar , digo que eu estava ali, simplesmente lavando minhas mãos . No início veio a ordem para que evacuássemos  do ponto . Que atravessássemos o mato , depois o mangue . E que alcançássemos o outro lado do amanhecer . Era uma praia . Ali deveríamos esperar a barca que nos levaria para onde ninguém mais sabia o nome , se é que a mensagem se referia ao nome de algum destino. Sei que naquele ponto eu lavava as mãos no mar . E que na areia um peixe se oferecia a uma gaivota que descia lenta . Um dos homens me pediu alguma coisa, esfaimado. Antes que eu entendesse , tirei meu disfarce e disse : " É teu ."

João Gilberto Noll. in Relâmpagos. ; FSP. 19/06/00

O desejo de ser alguém




Os muitos lodos em terabytes
De escolhas e vitupérios da forma
O juízo do bom gosto,
Pra quê?

Tuas elites consomem.
Teus analfabetos se encolerizam
Teus amores fogem
E tua ideia não é tua.

Fuja para o alto de si mesmo
Seja mais que o amanhã.
Encontre teus amigos, os livros
Que jamais te darão sorrisos
Nem abraços,
E nem porto, e nem calor.

As palavras extintas te despertarão
A curiosidade,
Poderes ocultos do além mar.

As epopeias te distraiam
Pelo éter da tua pequenez
Quando te detivestes a se perguntar.
No meio do mar,
Tudo é navegar.

A cultura te inspira superioridade,
E os estilos bailam por tua
Tez em êxtase.

Comete barbáries em expressões
Obedece ao teu exterior.

Julgue, por ora, apenas que os
Pássaros voam,
E nada mais.

Eu venho das terras habitadas,
Eu venho de onde se conhece
O amor.

Fuja para o deserto dos teus olhos,
Corra, pois os significados estão famintos
De palavras.

E destroem toda liberdade,
Impondo o ser.
ACM

Janela de Bonnard

O sol saltou para o centro da sala e instalou-se feliz como um ovo estalado. A barra ondulada do toldo inventa o horizonte , a orelha do cão fareja feito radar o farfalhar das folhas do jornal que dormiu na varanda . Tudo é fresco : o perfume e cor. Através do vidro adivinho águas no entardecer , apesar do azul  dourado que pousa  sobre a cidade . As vidraças esmeram-se em refletir a luz  abrumante das árvores  e a profusão de rosas , jacintos  e begônias . Pêras duras , pão e queijo sobre a mesa que dá para os jardins . a gata Virgínea cochila enroladinha sobre uma " Vanity Fair ".

Ledusha Spinardi . in Risco no Disco ; Mais ! FSP 31/10/99

Dos dicionários do amanhã




Do alto do estandarte da ideia
Os rumores do amor clichê
Se espraiam pela areia.

Abstrata a palavra alude ao valor
Poesia,
E por que não voar?

Por sobre o mar,
Sim, por sobre o mar.

Teus pés alcançarão, no máximo
O chão do ego.

Tudo é deserto e de sentimentos,
Sei falar.
Com a graça da inteligência,
Com a luz do luar.

A epopeia do pensamento
Crítico
A historicidade do navegar,

A diligência da naus
Sobre a qual porto retornar.
Navegam, velas suntuosas
Desafiam ventos e sóis, e universos.
Também.

Voltarão pelos abismos
Para três mundos coloridos,
Dos quais não voltarão jamais.

Os felizes finais dos tempos
Ancestrais, despertarão olhares livres.
E firmes seguirão os pássaros
Na direção do ocaso
E de aurora em aurora escoarão
Suas forças intelectuais.

Como eu, muitos serão felizes,
E tristes.
Experimentarão
Os experimentos estéticos,
E fugirão de desconhecidos
Impérios de trevas
Da ignorância.

Arrebatarão multidões,

Amarão a solidão.
ACM

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A primeira rede social




Os seguidores de Vênus estavam acima da estupidez humana

Em 1761, mais de 500 pessoas participaram de um projeto científico traçando o curso de Vênus pelo céu da Europa. Ardia a feroz Guerra dos Sete Anos entre as grandes potências europeias, mas os seguidores de Vênus pertenciam a uma comunidade apátrida, cujos interesses estavam acima, no caso literalmente, de questões geopolíticas e da estupidez humana.

Eram pessoas que se correspondiam e pertenciam ao que depois seria chamado de República das Letras, uma nação epistolar sem sede ou fronteiras, unida apenas pela curiosidade intelectual. O projeto Vênus foi um dos primeiros exemplos de ação conjunta desta precursora de rede social, arregimentada pelos e-mails da época.

A origem do movimento está na “república literária” de Cícero, um ideal romano de preservar o conhecimento e o pensamento livre de qualquer limite que ressurgiu na Renascença, produziu ou inspirou gente como Copérnico, Galileu e Descartes e o Iluminismo e definiu, às vezes hereticamente, uma identidade própria para o “Ocidente”, já que depois da ruptura de Lutero e das descobertas no novo mundo nem a religião nem o isolamento geográfico asseguravam isto. Para chegar a ser um paradigma, o ideal ciceroniano teve que sobreviver ao obscurantismo e aos estragos da história.

A única cópia conhecida do seu manuscrito “República” foi descoberta no século 19 embaixo de uma transcrição de comentários de Santo Agostinho sobre os salmos. Não deixa de ser uma metáfora perfeita para a tirania cultural da Igreja durante séculos devermos nosso conhecimento deste texto de Cícero ao fato de monges relapsos não terem raspado o pergaminho adequadamente antes de reusá-lo.

Como as redes sociais atuais, a primeira rede social também tinha sua língua própria, o Latim clássico, depurado do Latim escolástico e oficial, e desenvolveu práticas peculiares de comunicação e disseminação – todas relacionadas com a dificuldade, na época, de simplesmente fazer uma carta chegar ao seu destino em pouco tempo – equivalentes aos sinais, às abreviaturas e aos atalhos usados nos tuiters e facebooks de agora.

A diferença entre a República das Letras e a Internet é que uma manteve viva uma tradição de humanismo e curiosidade cientifica, às vezes em luta aberta com a ortodoxia prepotente das igrejas, enquanto a outra, sem nenhum inimigo que a contenha ou religião que a esconjure, parece servir a uma republica transnacional da banalidade.

Fumar em lugar fechado está sendo proibido em todo o mundo para evitar a contaminação do vizinho, que pega fumaça e seus males de segunda mão. Acho que deve-se pensar em obrigar quem tem telefone celular a também ir usá-lo na rua. O objetivo seria nos proteger da contaminação pela vida alheia. Não precisamos saber do furúnculo da tia Elvira. E agora, com os pods e pads que fazem de tudo e informam tudo, há uma nova praga. Gente que no cinema, no meio do filme, liga o troço.

Se ainda fosse para saber como está o índice Bovespa. Mas não, geralmente é para saber da tia Elvira.


- LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO.: 28 Aug 2011
O tempo desloca-se dentro de si próprio movido pela angústia ou pelo desejo. O tempo não tem vontade, tem instinto. O tempo é menos do que um animal a correr. Não pensa para onde vai. Quando pára, é a angústia ou o desejo que o obrigam a parar.

José Luis Peixoto

Tantas pessoas, prolongamentos de nós, que chegaram e foram e só deixaram rumores de terem existido. Tantas pessoas que chegaram e continuam e não passarão de rumores para outros, como a criança que, ainda assim, me aviva a passagem do tempo. Resigno-me, no entanto, a este destino. Resignei-me aos outros que foram acontecendo à medida que foram acontecendo. Sou, na passagem das horas, no olhar de quem amo, todas as resignações, todos os dias que já fui. (Todos os dias)

Jorge Reis Sá

O arco e a flecha




RIO DE JANEIRO - Do distante CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) que frequentei, guardei apenas uma definição de guerra: é o conflito violento de duas vontades. Perguntaram a um especialista como seria o próximo conflito mundial e ele respondeu: "a arco e flecha".
Mês passado, no aeroporto de Viena, precisei tirar os sapatos para provar que não tinha nem arco nem flecha escondidos. E confiscaram uma tesourinha de unha que levava na bagagem de mão.
Stefan Zweig se revoltava contra a exigência dos passaportes; ele usava um cartão amarelo dado por uma instituição internacional. Daí que nunca deixou de ser um pacifista radical e chegou a ser criticado por isso, mas não renunciou ao ideal de uma humanidade sem fronteiras e sem guerras.
O 11 de Setembro iniciou, de fato, um tipo de guerra que é o conflito de duas vontades antagônicas, duas visões de mundo que se chocam, uma não entendendo a outra. Não é uma medição de forças. A frota de porta-aviões da Marinha dos EUA pode destruir um continente inteiro em poucos minutos.
O poderio militar, econômico e tecnológico dos EUA levou dez anos para destruir um sujeito magro, que morava em cavernas e andava com um bastão como um pastor de ovelhas inexistentes. O terrorismo é antigo no mundo.
Lembro que uma vez, no metrô da Picadilly Circus (Londres), havia um cartaz com a foto de Menachem Begin, então procurado internacionalmente como responsável pelo atentado ao hotel King David, em Jerusalém, em que morreram diversos oficiais ingleses. Begin chegou a ganhar o Nobel da Paz, em 1978.
Os dois conceitos de mundo e de vida, mesmo para concepções religiosas monoteístas (cristãos, judeus e muçulmanos), esgotados os recursos da economia e da tecnologia, terminarão apelando para o arco e a flecha.


CARLOS HEITOR CONY -  13 Sep 2011

O amor perdoa tudo




Fotos de amor são ridículas, mas ainda mais ridículo é nunca tirar fotos de amor.

Não há como esnobar certas aparições, manter pose de intelectual e prometer que dessa máquina não beberei.

Existem fotografias obrigatórias na nossa existência, fiascos essenciais que continuaremos reproduzindo até o Juízo Final. Representam estreias, nascimento, inaugurações, onde é impossível rejeitar o clique. Guarde a reclamação e a timidez no estojo, ficará condicionado a tolerar o xis, olhar o passarinho, arrumar um lugar na barreira e aceitar as ordens de incentivo do fotógrafo.

São imagens que partilham o mistério da música brega: ninguém conhece, todos sabem a letra.

Referem-se às cenas fundamentais do ciclo da vida, espécie de cartões-postais familiares. Sem eles, a sensação é de que não nascemos, de que não tivemos família, de que não pertencemos à normalidade fotogênica do mundo.

É o mesmo que visitar o Egito e não posar na frente das pirâmides, visitar Paris e não ostentar a Torre Eiffel ao fundo do plano, passar pela China e desdenhar as curvas da Muralha.

De que flagrantes estou falando?

Daqueles que não podemos fugir, senão demonstraremos indiferença, frieza, falta de emoção.

Daqueles que debochamos ao encontrar na gaveta dos outros e que ocupam a maior parte de nossos porta-retratos.

Um deles é a troca de cálices no casamento. Quando o noivo e a noiva embaralham os braços. Apesar do desconforto tentacular, o casal tem que sorrir. Qual o menos pior: este brinde de espumante ou o corte a dois do bolo do casamento? Trata-se de uma disputadíssima concorrência para abrir o álbum.

Lembro também do clássico beijo do pai na barriga da gestante. A grávida sempre está nua, o que é involuntariamente engraçado. O homem surge agachado com roupa social diante de sua companheira pelada. Se não fosse a criança por vir, estaria na parede de uma borracharia.

Não dá para esquecer a grande angular do baile de debutantes: as adolescentes como time de futebol, posicionadas em diferentes degraus. E a nossa foto tomando o primeiro banho, usada pela mãe para nos envergonhar na adolescência. E sem os dentes da frente, e lambuzado de chocolate, e sendo lambido pelo cachorro.

Fotos ridículas e inesquecíveis, adequadas para chantagem e suborno, mas que se tornam – por vias tortas – recompensas do amor.

São justamente as fotos que vamos procurar para sentir saudade. E, ao lado dos filhos, rir e chorar ao mesmo tempo.



FABRÍCIO CARPINEJAR - 13 Sep 2011 

Três lances de vergonha cívica




Voltavam os dois para o hotel, depois de um  pesado dia de trabalho – tão pesado que,parase ressarcir da correria e sufoco (estavam em Montevidéu, cobrindo mais um golpe militar), resolveram dar cabode uma garrafa de vinho antes dese recolher.Na suposição de que no Uruguai tomar apenas uma garrafa é descortesia com os nativos,tomaram outra e,por via das dúvidas,uma saideira.De forma que repórter e fotógrafo trocavam a spernas quando, em seu modesto hotel, passaram pela solitária figura do recepcionista, um velhinho sorridente.

Mal chegados ao quarto, um deles ligou para a recepção:
– Señor, por favor, dos chicas.

Depois de uns segundos de perplexidade, o porteiro se pôs a explicar que aquele era um hotel de família, razão pela qual não poderia atender o jovem brasileiro em seu pedido de duas garotas.
– Dos chicas, señor, por favor – insistiu o rapaz, com a inflexibilidade bovina dos bebuns.
–Lo que usted me pide no es permitido en este hotel – volveu o velhinho, e já estava para perder a paciência quando veio de lá, pastosa, a frase que por pouco não lhe destronca a inteligência:
– Bueno, ¡entonces dos jugos de naranja!

* * *

Eu estava em Estocolmo para cobrir o casamento do rei Carlos Gustavo com a meio brasileira Silvia Sommerlath,e,no meu ímpeto atabalhoado de jovem repórter, tratei de reivindicar credenciais para todos os eventos.E não me conformei ao saber que não teria acesso a um deles – justamente o coquetel que o casal ofereceria à imprensa nas dependências do palácio. Ah, isso é que não! – e tanto insisti que, contrafeitos, me deram a credencial.

Só fui perceber o quanto fora impertinente quando cheguei à galeria onde o coquetel estava para começar:havia um mar de cabelos louros e olhos azuis (as cores, aliás, da bandeira sueca), e nele eu seria o único, desgarrado forasteiro. Corpo estranho até em sentido literal, com meus cabelos castanhos e encaracolados, me refugiei num canto – até de mim se aproximar um cavalheiro, que me chamou pelo nome.

Pronto, pensei, descobriram tudo. Queira me acompanhar, disse ele em português, e, abrindo caminho na massa unanimemente sueca, me conduziu ao centro de uma roda: este é o Sr. Werneck, do Jornal da Tarde, Brasil. Apontou para mim – dois minutos! – e me deixou na companhia do rei e sua noiva. Depois soube que era diplomata e ali estava exclusivamente para pajear um brasileiro enxerido.

Tinham me contado que a Suécia funciona, mas não precisava exagerar!

* * *

Aquele outro brasileiro,senhor de si e dos outros, chegou a Estocolmo com uma indicação de hotel cinco estrelas – em cuja recepção perdeu a pose ao ser informado de que não havia vagas. Como não?!– trovejou,declinando sua condição de enviado especial de uma importante revista brasileira, o senhor está me entendendo?,para cobrir o casamento do seu rei! Exatamente por isso, fez lhe ver o recepcionista, pelo fato de o rei estar se casando,éque o hotel estava lotado.

Ciente agora de que carteira das tropicais não funcionam na Escandinávia, o camarada ligou para o Brasil e desabafou para cima d opatrão:a Suécia só tem fama! – saiba o senhor que corro o risco de dormir no banco da praça!

Meia hora depois, tendo baixado a fervura, encontrou pouso num bom hotel e esqueceu o assunto. Dias mais tarde, porém, quando tomávamos café no centro de imprensa, seu nome foi chamado pelo alto-falante. Senhor fulano? – certificou-se um amável funcionário, e lhe perguntou se estava bem instalado na cidade. Magnificamente! – sorriu o colega. Então o senhor não está dormindo no banco da praça?–tornou o funcionário, enquanto o jornalista, gaguejante em mau francês, se dava conta do que se passara: o patrão fora queixar-se ao embaixador da Suécia, que pediu informações ao ministério em Estocolmo. Caiu sobre nós uma espessa vergonha cívica, enquanto meu compatriota era delicadamente instado a assinar uma declaração de que não,não estava dormind ono banco da praça.


 - HUMBERTO WERNECK. 28 Aug 2011 


Poemas de José Oswald de Sousa Andrade




Poemas
--

3 de maio

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi
.

Ditirambo

Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade
.

Ocaso

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
.

Vício na fala

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
.

Erro de português

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
.

Oferta

Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor

José Oswald de Sousa Andrade 

                (...) Porque lábios libertinos ou venais lhe haviam murmurado frases parecidas, quase não acreditava na pureza das que ouvia agora, achava que se devia fazer desconto nas expressões exageradas que escondiam aflições medíocres - como se a plenitude da alma não se extravasasse, às vezes, nas mais vazias metáforas, pois que ninguém pode jamais dar medida exata às próprias necessidades, concepções ou dores, e já que a palavra humana é como um caldeirão fendido em que batemos melodias para fazer dançar os ursos, quando antes queríamos enternecer as estrelas. (Madame Bovary)

Gustave Flaubert

Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen




Poemas:


Liberdade

Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.

_


Data

Tempo de solidão e de incerteza

Tempo de medo e tempo de traição

Tempo de injustiça e de vileza

Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira

Tempo de mascarada e de mentira

Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro

Tempo de silêncio e de mordaça

Tempo onde o sangue não tem rasto

Tempo da ameaça

_

Exílio

Quando a pátria que temos não a temos

Perdida por silêncio e por renúncia

Até a voz do mar se torna exílio

E a luz que nos rodeia é como grades

_

Os troncos das árvores

Os troncos das árvores doem-me como se fossem os meus ombros

Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal

Dói-me o luar como um pano branco que se rasga.

_

Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma possuirá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.

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Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto (Portugal), em 1919, e morreu em 2004. Estudou filologia clássica na Faculdade de Letras de Lisboa. Estreou em 1944, com "Poesia". Além de poemas, escreveu contos, literatura infantil e ensaios. Traduziu Eurípedes, Dante e Shakespeare. Recebeu inúmeros prêmios, entre os quais destacam-se o "Camões" (1999) e o "Reina Sofía" (2004).



Durante algum tempo minha cabeça seria assim como uma casa em obras, com palavras novas subindo por um ouvido e o entulho descendo por outro. Sem dúvida me daria pena ver se desperdiçarem tantas palavras belas, azulejos, por culpa de umas poucas peças que eu usara de forma desastrada. (Budapeste)

Chico Buarque


Estou só. Mas é-me impossível gritar - para quê? Às vezes, raramente, o grito sobe, entala-se-me na garganta e o mundo recua bruscamente para uma estranheza absurda. Mas é raro e tudo reflui de novo como uma pedra que subisse muito alto e desistisse por fim. E ainda bem, porque os sentimentos são um vício - ou não? O povo diz "o comer e o ralhar vai do começar". Mas tudo vai do começar: o amor, o ódio, o choro, a ternura, o medo. E quando caímos nisso o que nos sustenta não é o objeto do sentimento, mas o próprio sentimento. Porque o objeto é um pretexto, e o sentimento é o prazer de nós próprios. que não somos pretextos - será assim? (Alegria Breve)

Vergílio Ferreira

Poemas de Cruz e Sousa




Poemas

Da Lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem,
Como fulguram os prados
Da lua aos raios prateados,
Há vagos silfos alados
Do rio azul pela margem
Da lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem.



.



Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares
Para as asas abrir, ruflantes e nervosas,
Dos parques através e dos moitais de rosas, Nos floridos jardins, nas hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,
Das folhagens do campo em meio da espessura,
Das auroras de abril nas cristalinas festas.

Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso
O quente lar do amor, o carinhoso ninho,
De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso
De um outro mais gentil e meigo passarinho.

Não temer o verão e não temer o inverno Para tudo alcançar na leve subsistência, No contínuo lidar, no labutar eterno,
Que é talvez da alegria a mais feliz essência.

Viver, enfim, de luz e aromas delicados Nascido dentre a luz, gerado dentre aromas, Sonorizando o azul, sonorizando os prados
E dormindo da flor sob as cheirosas comas.

Voar, voar, voar, voar eternamente, Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,
E ser pássaro, é ter em cada asa fremente
Um sol para aquecer o frio de algum seio.



.



Torva Babel das lágrimas, dos gritos,
Dos soluços, dos ais, dos longos brados,
A Dor galgou os mundos ignorados,
Os mais remotos, vagos infinitos.

Lembrando as religiões, lembrando os ritos,
Avassalara os povos condenados,
Pela treva, no horror, desesperados,
Na convulsão de Tântalos aflitos.

Por buzinas e trompas assoprando
As gerações vão todas proclamando
A grande Dor aos frígidos espaços...

E assim parecem, pelos tempos mudos,
Raças de Prometeus titânios, rudos,
Brutos e colossais, torcendo os braços!



.



Ocaso no mar

Num fulgor d'ouro velho o sol tranquilamente desce para o ocaso, no limite extremo do mar, d'águas calmas, serenas, dum espesso verde pesado, glauco, num tom de bronze. No céu, de um desmaiado azul, ainda claro, há uma doce suavidade astral e religiosa. Às derradeiras cintilações doiradas do nobre Astro do dia, os navios, com o maravilhoso aspecto das mastreações, na quietação das ondas, parecem estar em êxtase na tarde. Num esmalte de gravura, os mastros, com as vergas altas, lembrando, na distância, esguios caracteres de música, pautam o fundo do horizonte límpido. Os navios, assim armados, com a mastreação, as vergas dispostas por essa forma, estão como que a fazer-se de vela, prontos a arrancar do porto. Um ritmo indefinível, como a errante, etereal expressão das forças originais e virgens, inefavelmente desce, na tarde que finda, por entre a nitidez já indecisa dos mastros... Em pouco as sombras densas envolvem gradativamente o horizonte em torno, a vastidão das vagas. Começa, então, no alto e profundo firmamento silencioso, o brilho frio e fino, aristocrático das estrelas. Surgindo através de tufos escuros de folhagem, além, nos cimos montanhosos, uma lua amarela, de face chata de chim, verte um óleo luminoso e dormente em toda a amplidão da paisagem.
.


Incensos

Dentre o chorar dos trêmulos violinos,
Por entre os sons dos órgãos soluçantes
Sobem nas catedrais os neblinantes
Incensos vagos, que recordam hinos...

Rolos d'incensos alvadios, finos
E transparentes, fulgidos, radiantes,
Que elevam-se aos espaços, ondulantes,
Em Quimeras e Sonhos diamantinos.

Relembrando turíbulos de prata
Incensos aromáticos desata
Teu corpo ebúrneo, de sedosos flancos.

Claros incensos imortais que exalam,
Que lânguidas e límpidas trescalam
As luas virgens dos teus seios brancos.



.



Os cânticos

No templo branco, que os mármores augustos e as cinzeluras douradas esmaltam e solenizam com resplandecência, dentre a profusão suntuosa das luzes, suavíssimas vozes cantam. Coros edênicos inefavelmente desprendem-se de gargantas límpidas, em finas pratas de som, que parecem dar ainda mais brancura e sonoridade à vastidão do templo sonoro. E as vozes sobem claras, cantantes, luminosas como astros. Cristos aristocráticos de marfim lavrado, como fidalgos e desfalecidos príncipes medievos apaixonados, emudecem diante dos Cânticos, da grande exalção de amor que se desprende das vozes em fios sutilíssimos de voluptuosa harmonia. O seu sangue delicado, ricamente trabalhando em rubi, mais vivo, mais luminoso e vermelho fulge ao clarão das velas. Dir-se-ia que esse rubi de sangue palpita, aceso mais intensamente no colorido rubro pela luxúria dos Cânticos, que despertam, ciliciando, todas as virgindades da Carne. Fortes, violentas rajadas de sons perpassam convulsamente nos violoncelos, enquanto que as vozes se elevam, sobem, num veemente desejo, quase impuras, maculadas quase, numa intenção de nudez. E, através da volúpia das sedas e damascos pesados que ornamentam o templo, das luzes adormentadoras, dos perturbadores incensos, da opulência festiva dos paramentos dos altares e dos sacerdotes, das egrégias músicas sacras, sente-se impressionativamente pairar em tudo a volúpia maior - a volúpia branca dos Cânticos.

 João da Cruz e Sousa, 




Tesourinhas de unha




RIO DE JANEIRO - Na minha crônica anterior, citei um especialista que garantiu uma terceira guerra mundial na base do arco e flecha.
Nada de lutas corpo a corpo, baionetas, trincheiras, questões econômicas ou territoriais. Haverá um equilíbrio nuclear que espaçará batalhas na base do custo-benefício. Somente grupos terroristas terão motivação para bagunçar o coreto mundial.
Citei também que, recentemente, no aeroporto de Viena, tive de tirar os sapatos -medida de segurança já adotada em quase todo o mundo. O que me espantou foi o exame minucioso que fizeram na minha bagagem de mão, confiscando minha tesourinha de unha, uma Solingen que me acompanhava havia anos.
Bem, com arco e flecha eu até poderia criar uma confusão durante o voo, mas considero remotíssimas as possibilidades de sequestrar um avião com uma tesourinha de unha, pilotá-lo até a Casa Branca, o Capitólio ou a basílica de São Pedro e fazer um estrago considerável no concerto dos povos.
De qualquer forma, do jeito como as coisas estão indo, medidas cautelares devem ser tomadas para impedir ou adiar, dentro do possível, a próxima e terceira guerra mundial.
A única certeza é que ela não será como as outras, "day by day", avanços e recuos em terrenos pantanosos, mudanças de tática, ordens do dia inflamadas, boletins da CNN e da BBC. A tecnologia já existente e acessível não apenas às grandes potências, mas aos grupos fundamentalistas espalhados por todos os continentes, impedirá o armagedon previsto no Apocalipse.
O negócio terá de ser feito na base do arco e da flecha previstos pelo especialista, ou com tesourinhas de unha que conseguiremos esconder em nossas sacolas de mão.
Desde a Guerra do Peloponeso não temos uma guerra que mereça um Tucídides.


CARLOS HEITOR CONY -  15 Sep 2011 

Reclamações




Acabo de passar os olhos nos jornais e, naturalmente, li muito sobre corrupção, mas bem menos que em dias anteriores. É natural, não só foi feita uma faxina, ainda que meio estranha, como, principalmente, o assunto começa a ficar velho. Da mesma forma que em relação a um produto qualquer, cansamos do velho e queremos novidades. O noticiarista tem de matar um leão por dia, se quiser continuar tendo leitores. E aí vem esse papo de corrupção, espocam notícias e fofocas irrequietas e todo mundo entra no bonde, mas não completa a viagem, que acaba ficando chata mesmo, de tão repetitiva.

Isso se deve em grande parte ao fato de não acontecer nada com os corruptos, a não ser um comentário de um jornal ou outro. Até quando parece que pegaram mesmo um corrupto, é foro especial pra cá, é recurso de todo tipo pra lá e o fato é que o bicho continua próspero, meio gordote e feliz por nunca ter trabalhado e ganhar uma bela aposentadoria de deputado, para não falar nas “colocações” de parentes, protegidos e assemelhados.

Mesmo que houvesse punição, o Brasil é muito avaro com elas. De vez em quando se anuncia que Fulano foi condenado a, sei lá, seis anos de cadeia, mas logo se descobre que, se valendo disso e daquilo, estará em regime semiaberto dentro de alguns meses e praticamente solto. Outro dia, muitos de vocês devem ter visto na TV um rapaz sorridente confessar numa delegacia de polícia que foi coautor ou cúmplice de um assassinato. Mas, como o próprio delegado explicou, ele se apresentou espontaneamente, era réu primário, patati-patatá e foi imediatamente solto, só faltando um abraço no delegado e um aceno para as câmeras. O mesmo ocorre com o indivíduo que enche a cara, pega o carro, faz uma série de barbeiragens embriagadas e mata quatro pessoas de uma vez. Réu primário, coisa e tal, paga fiança, responde ao processo em liberdade e depois lhe dão as colheres de chá legais que lhe permitirão matar mais quatro ou cinco daí a uns dois anos.

Apesar de algumas mudanças recentes, a tendência tem sido procurar as “causas” do comportamento antissocial, o que acaba por levar à conclusão de que ninguém é culpado ou responsável por nada. O culpado é a causa, não o agente do delito. E a função da pena é a “recuperação” do condenado, mesmo por crimes muito graves, sua “reinserção na sociedade”. Creio que continua politicamente correto pensar assim, mas já há especialistas que acham que essa “recuperação” é no mais das vezes falaciosa. E a severidade da punição tem passado a ser vista como básica, mesmo para a obtenção de alguns casos de recuperação. Mas, no Brasil, as penas são leves e suavizáveis a pretexto de praticamente qualquer coisa. Cala-te, boca, mas não posso evitar a suposição, oxalá falsa, de que, com tanto legislador pendurado numa ilegalidadezinha, seria uma imprudência da parte deles estabelecer penas pesadas para — quem sabe quando o Cão atenta? — um delito pelo qual vários ou muitos deles mesmos podem vir a ser condenados.

A repercussão do assassinato da juíza Patrícia Acióli foi vergonhosa para quem quer que seja cioso das instituições republicanas e compreenda a gravidade desse ato. O fato teve e ainda está tendo cobertura ampla. Mas nenhum governante chamou a atenção para a agressão às instituições assim cometida, ao que parece nenhuma autoridade foi ao sepultamento da juíza e tudo o que ouvimos dessas autoridades foram as habituais declarações de lamentável isso e aquilo e providência disso e daquilo. Agora descobre-se que as balas usadas para matar a juíza eram munição da Polícia Militar, certamente deflagradas por armas também da Polícia Militar. Enfim, descobre-se que agentes da lei mataram uma magistrada e não há a indignação, o clamor e o vigor de reação com que um fato dessa magnitude exigiria e que ajudaria na sua avaliação adequada por parte da população atingida, ou seja, nós todos, de uma forma ou de outra. Aqui é praticamente apenas mais um simples fato policial — lamentável etc. Claro que a comparação é falha, mas imagino um juiz americano fuzilado com armas e munições de policiais. Aqui é tratado como ocorrência normal e vem o medo de que se torne corriqueiro.

Mais um medo, entre todos com que aprendemos a conviver e já nem notamos. Apareceu até uma novidade, o medo da ambulância. No Rio foi descoberto um ramo de comércio que já deve estar implantado também em outras cidades, considerando a rapidez com que essas coisas se espalham, pois o brasileiro é muito observador e atento a novas descobertas. Agora o sujeito passa mal — como sempre em plena madrugada — e aí a candidata a viúva telefona aflita para uma ambulância. Os operadores da ambulância então levam o doente, não ao hospital que ele quer ou que mais convém a seu estado. Levam o infeliz para o hospital ou clínica que os remunerarem de acordo com uma complexa tabela. A clínica está sem freguesia — talvez porque hajam morrido todos os seus pacientes — e aí paga um modesto estipêndio aos condutores da ambulância, para refazer a clientela. Claro, pensei logo na possibilidade de uma clínica dessas contratar transplantes, caso em que o paciente acordaria sem um rim, num hospital desconhecido, que ainda cobraria pela intervenção. Talvez vocês achem isto um exagero, mas puxem pela memória, porque já devem ter lido sobre coisas piores.

Escrevo sobre estes assuntos e penso novamente na corrupção. Há quem considere a corrupção um problema político menor ou que se trata de uma questão de moralismo. Não é nem uma coisa nem outra, é por causa dela que enfrentamos os problemas que mencionei e tantos outros com que também sofremos. E ter senso de moralidade distingue os homens dos bichos.


 – João Ubaldo Ribeiro. 28 Aug 2011 


Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis




Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim...

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.

Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos...

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

(9/10/1964)


.

(Texto extraído do livro "Com Vocês Antônio Maria", Editora Paz e Terra - São Paulo, 1994, pág. 127).

Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis

Antônio Maria


Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim...

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.

Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

— Que é que houve? O senhor está mais velho?

Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos...

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

(9/10/1964)


Antônio Maria teria completado 80 anos no dia 17/03/2001. A ele o nosso abraço, esteja onde estiver.

Texto extraído do livro "Com Vocês Antônio Maria", Editora Paz e Terra - São Paulo, 1994, pág. 127.
  Antônio Maria

terça-feira, 27 de agosto de 2019


E de Novo, Lisboa...

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?



Alexandre O'Neill

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Pensamentos reais

Desloco as consciências ,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida .
Multiplico, desarticulado longe
Como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos,
na tua superprodução de máquina humana .
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
O tempo é a minha matéria,
o tempo presente,
a vida presente,
O mundo se tinge com as tintas
da antemanhã
e o amor não abre caminhos na noite.
E um dia sei que estarei mudo
Eu não tinha esse coração
que nem se mostra
saudades e cinzas foi o que restou.
que não seja imortal e
todos vão sorrir , voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida   e
feliz a cantar.

Letícia Tonon
23 de Setembro de 1991

Pensamentos Reais



Leticia Tonon

Desloco as consciências,
A rua estava com os meus passos,
E ando nos quatro cantos da vida
Multiplico , desarticulado
Nada me fixa nos caminhos do mundo...
Estou preso a vida e olho meus companheiros
O tempo é a minha matéria,...
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã,
O amor não abre caminhos na noite
E um dia sei que estarei mudo
Eu não tinha esse coração que nem se mostra
Saudades e cinzas foi o que restou.

23 de Setembro de 1991

Um rap para São Paulo da garoa.


Luiza Silva Oliveira        

São Paulo da garoa,
da chuva que não escoa,

das enchentes, das nascentes...

Cemitério da Consolação,
Augusta e Paulista,
arco-íris e ametista.

São Paulo ronda os butecos,
há sangue no bar,
você não soube me amar,

gente louca, varrida,
hemorroidas e polaróides,
academias e poluição,

esteiras e samba-canção,
solto gritos de emoção!

Garganta seca,
CADÊ A NEGA??

Solta aí uma cachaça,

são os borburinhos dos bares,
é a eliminação de todos os males,

solta a tensão!
Stress, depressão, poluição,

olha, que isso dá uma canção...

The end.


sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Curitiba é uma boa cidade se você for a pedra solta na rua ,
o galho seco na árvore,
a pena de pardal soprada ao vento.

Dalton Trevisan

"Essa é a condição da prosa para mim, ser outro quando escrevo, ou melhor, ser outro para escrever. (...) A literatura é um sonho dirigido. Sua condição, para mim, é eu deixar de ser quem supostamente sou. Como num sonho."

Ricardo Piglia, "Os anos felizes: o diários de Emilio Renzi", p. 117-118.

A aranha:




Num desenho octogonal,
a aranha, noite e dia,
traça e destraça linhas, teimando em resolver
o seu problema de trigonometria.

Obesa e mole, de ventre bojudo,
ainda faz seus treinos
de trapézio e de corda:
bem triste velhice
de uma profissional...

Já remendou, mais de uma vez, a rede,
para a mosca que não vem...
Bem que ela poderia
pescar arco-íris, nas gotas de orvalho
penduradas
do fino chamalote...

Aranha triste, aranha fiandeira,
podendo envolver-te na tua própria teia,
por que tanto tardas em te amortalhar?...


Magma, Graciliano Ramos

Idade




A morte desgoverna a vida.
Hoje sou mais velha
que meu pai.

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Helena Kolody
               

Pânico




Não há mais lugar no mundo.

Não há mais lugar.



Aranhas do medo

fiam ciladas no escuro



Nos longes, pesam tormentas.

Rolam soturnos ribombos.



Súbito,

precipita-se nos desfiladeiros

a vida em pânico.

Helena Kolody


Viver em função da escrita não é necessariamente escrever sempre. Às vezes são importantes longos hiatos sem escrita alguma. Viver em função da escrita é sobretudo viver em função do que se pretende escrever, ainda que esse escrever esteja num futuro remoto. Viver em função da escrita é viver em função desse desejo; é viver na condição de que a vida, ou parte dela, venha a se converter em escrita -- e esta escrita dê alguma ilusão de sentido à vida que não tem sentido nenhum.
Olw

Gargalhada:




Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...

Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...

Magma, Graciliano Ramos

Romance - II




Bem na frente
de um retrato empoeirado,
uma aliança esquecida...


Magma, Graciliano Ramos

Noite morta:
todas as almas são pardas
toas as ruas são largas
todas as luas são baças
e se deixam refletir,
sem nenhuma timidez,
pobres, nuas e loucas,
nas poças sujas
de todos os becos
de todas a bocas.

Noite alta:
todas as esperanças são mortas.

Otto Leopoldo Winck

Egoísmo




Se fosse só eu
a chorar de amor,
sorriria

Magma, Graciliano Ramos


Romance - I




No cinzeiro cheio
de cigarros fumados,
os restos de uma carta

Magma, Graciliano Ramos