Toda essa exuberância de interações me pôs num estado que
tem muito de vontade de morar em São Paulo
Vejo a cara de Criolo que olha para mim antes de andar até o
microfone. Estamos no escuro esperando a deixa para começarmos nosso número. MV
Bill é quem nos anuncia no VMB. Essa festa de premiação é o B do VMA? Enquanto
espero, vejo Bento Ribeiro e acho que Tatá Wernek num telão: eles atuam num
outro palco que parece ficar a quilômetros do que Criolo e eu ocupamos. Bill,
Bento e Tatá, três cariocas em Sampa — e eu e Criolo cantando “Não existe amor
em SP”. São Paulo está cheio de amor. Eu tinha feito o ensaio com uma segurança
que me surpreendeu. Na hora H, nervoso e emocionado, quase me perco nas
palavras e nas notas. Nos corredores e camarins, pude falar com Erasmo (grande
momento: toda a nossa atividade em Sampa nos anos 60 veio à cabeça), Arnaldo
Antunes, Mallu Magalhães, Tulipa, Tiê… Queria poder ter falado com os
humoristas da MTV (Dani Calabresa, Marcelo Adnet, Tatá e, sobretudo, Bento, que
não vejo pessoalmente desde sua puberdade).
Penso na chegada da MTV ao Brasil, com Deborah Cohen
organizando e dirigindo. Foi Deborah, amiga com quem já trabalhei em viagens
internacionais, uma americana que fala português muito bem (e francês
perfeito), quem, logo antes de o canal ser lançado ao público, me fez a pergunta:
“Você acha que devemos pronunciar Emtivi, à inglesa, ou Emetevê, dizendo o nome
das letras na pronúncia portuguesa?” E eu respondi sem hesitar: “Emetevê.”
Nunca me ocorreu dizer agá-bê-ó em vez de eitch-bi-ou ao me referir à HBO, mas
sempre achei que MTV é parente de Fenemê, entra natural na fala brasileira. Mas
é claro que Deborah perguntou a outras pessoas e suponho que todas estavam
loucas para simplesmente repetir o nome em inglês da emissora (só
anglófilosamericanófilos estavam a par da existência de tal canal de TV). Havia
até aquela canção do Dire Straits (por vezes acusada de sexista, racista e
homofóbica), “Money for nothing”, em que Sting (como artista convidado ) repete
(com a melodia de “Don’t stand so close to me”) o grito “I want my MTV”. Mas eu
decidi me manter fiel à minha decisão declarada a Deborah.
Eu adorava “clips” (que é como os brasileiros chamam, em
inglês, o que os americanos chamam simplesmente de “video”, como uma
abreviatura de “music video”). Ainda gosto. Em horas mortas a emissora ainda os
exibe, se bem que a nova direção tem tendido a fazer da MTV uma estação mais
musical. Mas eu adoro os humoristas. Assisti a inúmeros VMBs. Foi lá que
conheci Mano Brown. Os amigos de meu filho de 14 anos não acreditavam quando eu
dizia que já tinha falado com Mano Brown e que ele tinha sido muito amável —
tendo inclusive me pedido para ir até a mesa em que estava sentado para me
apresentar a sua mulher: os adolescentes da Zona Sul (no que se igualam aos da
Zona Norte e aos das favelas) têm Brown como um semideus, um líder inatingível.
Pois, na noite em que acabara de ensaiar com Criolo na MTV, anteontem, Brown me
convidou para assistir a Boogie Naipe, um projeto paralelo que ele toca com
amigos de dentro, de fora, de perto e de longe do quarteto dos Racionais. Ice
Blue está com ele sobre o palco. Cantores e rappers (Helião, Lino Krizz,
Vanessa Jackson, Flora Matos, Terra Preta), DJs (Sing e CIA) e dançarinos (com
as caras pintadas de branco, em reconhecimento à importância que teve Marcel Marceau
na criação da break dance) — e Seu Jorge. Este é, em muitos sentidos, um caso à
parte: é o único instrumentista dentre os artistas presentes, e sua linguagem
corporal é tão carioca (ele usava uma camisa onde se lia “Menino do Rio”) que o
estilo paulistano da black music (com muito de disco) do coletivo fica
ressaltado em sua precisão, inocência e originalidade. Não era a primeira vez
que eu via esse bando em ação. Justamente para levar Tom e seus incrédulos
amigos para ver o líder dos Racionais, fui ao Centro do Rio assistir a uma
apresentação do Boggie Naipe, pouco menos de um ano atrás. Tal como agora em
São Paulo, vimos um Brown sorridente, em quase nada semelhante em atitude ao
sisudo frontman dos Racionais MCs, muito soul, disco, funk, Seu Jorge e tudo o
mais. Os amigos de Tom ficaram impressionados com a costumeira amabilidade do
Mano em relação a mim (aliás, ele foi muito mais formal com os meninos do que
comigo: educado, não finge intimidade
com quem não tem, embora demonstre calor com quem já conhece e a quem já
deu mostras de amizade).
Tal como tinha acontecido no Rio, Mano Brown me chamou para
que subisse ao palco e cantasse “Sampa”. Como todos sabem, é a canção que
anuncia que São Paulo, uma vez chamada de “túmulo do samba”, é futuro quilombo
de Zumbi, o que pôde ser tomado como uma profecia do nascimento de coisas como
os Racionais. Depois de ter ensaiado “Não existe amor em SP” com Criolo (que
Fernando Salem observou que tem parecença física com Diogo Nogueira), toda essa
exuberância de interações (de Tatá Wernek a Terra Preta) me pôs num estado de
ânimo que tem muito de vontade de morar em São Paulo, saudade do tempo em que
vivi aqui, esperanças na união de forças das novas gerações de paulistas e
cariocas (o eixão Rio- Sampa existe e não deve ser demonizado, embora Fábio
Cascadura seja um dos melhores cantores que o rock, o Brasil, já teve e mora na
Bahia , enquanto o fino Glauber Guimarães está em Sampa produzindo
mas ainda não reprofissionalizado), um flash do enfrentamento dos Browns,
Carlinhos e Mano, um sentimento da força do pop, com o Brasil nele.
Caetano Veloso__24 Oct 2011
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