Acabo de passar os olhos nos jornais e, naturalmente, li
muito sobre corrupção, mas bem menos que em dias anteriores. É natural, não só
foi feita uma faxina, ainda que meio estranha, como, principalmente, o assunto
começa a ficar velho. Da mesma forma que em relação a um produto qualquer, cansamos
do velho e queremos novidades. O noticiarista tem de matar um leão por dia, se
quiser continuar tendo leitores. E aí vem esse papo de corrupção, espocam
notícias e fofocas irrequietas e todo mundo entra no bonde, mas não completa a
viagem, que acaba ficando chata mesmo, de tão repetitiva.
Isso se deve em grande parte ao fato de não acontecer nada
com os corruptos, a não ser um comentário de um jornal ou outro. Até quando
parece que pegaram mesmo um corrupto, é foro especial pra cá, é recurso de todo
tipo pra lá e o fato é que o bicho continua próspero, meio gordote e feliz por
nunca ter trabalhado e ganhar uma bela aposentadoria de deputado, para não
falar nas “colocações” de parentes, protegidos e assemelhados.
Mesmo que houvesse punição, o Brasil é muito avaro com elas.
De vez em quando se anuncia que Fulano foi condenado a, sei lá, seis anos de
cadeia, mas logo se descobre que, se valendo disso e daquilo, estará em regime
semiaberto dentro de alguns meses e praticamente solto. Outro dia, muitos de vocês
devem ter visto na TV um rapaz sorridente confessar numa delegacia de polícia
que foi coautor ou cúmplice de um assassinato. Mas, como o próprio delegado
explicou, ele se apresentou espontaneamente, era réu primário, patati-patatá e
foi imediatamente solto, só faltando um abraço no delegado e um aceno para as
câmeras. O mesmo ocorre com o indivíduo que enche a cara, pega o carro, faz uma
série de barbeiragens embriagadas e mata quatro pessoas de uma vez. Réu
primário, coisa e tal, paga fiança, responde ao processo em liberdade e depois
lhe dão as colheres de chá legais que lhe permitirão matar mais quatro ou cinco
daí a uns dois anos.
Apesar de algumas mudanças recentes, a tendência tem sido
procurar as “causas” do comportamento antissocial, o que acaba por levar à
conclusão de que ninguém é culpado ou responsável por nada. O culpado é a
causa, não o agente do delito. E a função da pena é a “recuperação” do
condenado, mesmo por crimes muito graves, sua “reinserção na sociedade”. Creio
que continua politicamente correto pensar assim, mas já há especialistas que
acham que essa “recuperação” é no mais das vezes falaciosa. E a severidade da
punição tem passado a ser vista como básica, mesmo para a obtenção de alguns
casos de recuperação. Mas, no Brasil, as penas são leves e suavizáveis a
pretexto de praticamente qualquer coisa. Cala-te, boca, mas não posso evitar a
suposição, oxalá falsa, de que, com tanto legislador pendurado numa
ilegalidadezinha, seria uma imprudência da parte deles estabelecer penas pesadas
para — quem sabe quando o Cão atenta? — um delito pelo qual vários ou muitos
deles mesmos podem vir a ser condenados.
A repercussão do assassinato da juíza Patrícia Acióli foi
vergonhosa para quem quer que seja cioso das instituições republicanas e compreenda
a gravidade desse ato. O fato teve e ainda está tendo cobertura ampla. Mas
nenhum governante chamou a atenção para a agressão às instituições assim
cometida, ao que parece nenhuma autoridade foi ao sepultamento da juíza e tudo
o que ouvimos dessas autoridades foram as habituais declarações de lamentável
isso e aquilo e providência disso e daquilo. Agora descobre-se que as balas
usadas para matar a juíza eram munição da Polícia Militar, certamente
deflagradas por armas também da Polícia Militar. Enfim, descobre-se que agentes
da lei mataram uma magistrada e não há a indignação, o clamor e o vigor de
reação com que um fato dessa magnitude exigiria e que ajudaria na sua avaliação
adequada por parte da população atingida, ou seja, nós todos, de uma forma ou
de outra. Aqui é praticamente apenas mais um simples fato policial — lamentável
etc. Claro que a comparação é falha, mas imagino um juiz americano fuzilado com
armas e munições de policiais. Aqui é tratado como ocorrência normal e vem o
medo de que se torne corriqueiro.
Mais um medo, entre todos com que aprendemos a conviver e já
nem notamos. Apareceu até uma novidade, o medo da ambulância. No Rio foi
descoberto um ramo de comércio que já deve estar implantado também em outras
cidades, considerando a rapidez com que essas coisas se espalham, pois o
brasileiro é muito observador e atento a novas descobertas. Agora o sujeito
passa mal — como sempre em plena madrugada — e aí a candidata a viúva telefona
aflita para uma ambulância. Os operadores da ambulância então levam o doente,
não ao hospital que ele quer ou que mais convém a seu estado. Levam o infeliz
para o hospital ou clínica que os remunerarem de acordo com uma complexa
tabela. A clínica está sem freguesia — talvez porque hajam morrido todos os seus
pacientes — e aí paga um modesto estipêndio aos condutores da ambulância, para
refazer a clientela. Claro, pensei logo na possibilidade de uma clínica dessas
contratar transplantes, caso em que o paciente acordaria sem um rim, num
hospital desconhecido, que ainda cobraria pela intervenção. Talvez vocês achem
isto um exagero, mas puxem pela memória, porque já devem ter lido sobre coisas
piores.
Escrevo sobre estes assuntos e penso novamente na corrupção.
Há quem considere a corrupção um problema político menor ou que se trata de uma
questão de moralismo. Não é nem uma coisa nem outra, é por causa dela que
enfrentamos os problemas que mencionei e tantos outros com que também sofremos.
E ter senso de moralidade distingue os homens dos bichos.
– João Ubaldo Ribeiro. 28 Aug 2011
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