Os seguidores de Vênus estavam acima da estupidez humana
Em 1761, mais de 500 pessoas participaram de um projeto
científico traçando o curso de Vênus pelo céu da Europa. Ardia a feroz Guerra
dos Sete Anos entre as grandes potências europeias, mas os seguidores de Vênus
pertenciam a uma comunidade apátrida, cujos interesses estavam acima, no caso
literalmente, de questões geopolíticas e da estupidez humana.
Eram pessoas que se correspondiam e pertenciam ao que depois
seria chamado de República das Letras, uma nação epistolar sem sede ou
fronteiras, unida apenas pela curiosidade intelectual. O projeto Vênus foi um
dos primeiros exemplos de ação conjunta desta precursora de rede social,
arregimentada pelos e-mails da época.
A origem do movimento está na “república literária” de
Cícero, um ideal romano de preservar o conhecimento e o pensamento livre de
qualquer limite que ressurgiu na Renascença, produziu ou inspirou gente como
Copérnico, Galileu e Descartes e o Iluminismo e definiu, às vezes
hereticamente, uma identidade própria para o “Ocidente”, já que depois da
ruptura de Lutero e das descobertas no novo mundo nem a religião nem o
isolamento geográfico asseguravam isto. Para chegar a ser um paradigma, o ideal
ciceroniano teve que sobreviver ao obscurantismo e aos estragos da história.
A única cópia conhecida do seu manuscrito “República” foi
descoberta no século 19 embaixo de uma transcrição de comentários de Santo
Agostinho sobre os salmos. Não deixa de ser uma metáfora perfeita para a
tirania cultural da Igreja durante séculos devermos nosso conhecimento deste
texto de Cícero ao fato de monges relapsos não terem raspado o pergaminho
adequadamente antes de reusá-lo.
Como as redes sociais atuais, a primeira rede social também
tinha sua língua própria, o Latim clássico, depurado do Latim escolástico e
oficial, e desenvolveu práticas peculiares de comunicação e disseminação –
todas relacionadas com a dificuldade, na época, de simplesmente fazer uma carta
chegar ao seu destino em pouco tempo – equivalentes aos sinais, às abreviaturas
e aos atalhos usados nos tuiters e facebooks de agora.
A diferença entre a República das Letras e a Internet é que
uma manteve viva uma tradição de humanismo e curiosidade cientifica, às vezes
em luta aberta com a ortodoxia prepotente das igrejas, enquanto a outra, sem
nenhum inimigo que a contenha ou religião que a esconjure, parece servir a uma
republica transnacional da banalidade.
Fumar em lugar fechado está sendo proibido em todo o mundo
para evitar a contaminação do vizinho, que pega fumaça e seus males de segunda
mão. Acho que deve-se pensar em obrigar quem tem telefone celular a também ir
usá-lo na rua. O objetivo seria nos proteger da contaminação pela vida alheia.
Não precisamos saber do furúnculo da tia Elvira. E agora, com os pods e pads
que fazem de tudo e informam tudo, há uma nova praga. Gente que no cinema, no
meio do filme, liga o troço.
Se ainda fosse para saber como está o índice Bovespa. Mas
não, geralmente é para saber da tia Elvira.
- LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO.: 28 Aug 2011
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