“A minha empatia não suporta desumanidade nas políticas
públicas.”
Salvador Célia
Noite dessas, sonhei com o Scliar. O clima era obscuro, mas
dava para ver claramente. Ele vestia camisa azul, terno, gravata. Pedia ajuda
no conserto de um lustre. Apertamos dois parafusos, e acendeu-se a luz.
Passei a manhã sem vontade de interpretar o sonho. Sentia-me
feliz de vivê-lo, e pronto! Foram alguns instantes com o Scliar, a implicar-me
com o seu pedido, e isto valia mais do que qualquer explicação. Estava em
Fortaleza e fui dar uma volta. Na Beira-Mar, havia um monte de prédios luxuosos
e muita gente dormindo na rua. Então me lembrei do poema O Bicho, do Manuel
Bandeira e da prosa do Emile Zola.
Também do quadro Guernica, do Picasso, e pensei que estes
caras reacenderam o mundo onde andava mais apagado. Daí a imaginá-los apertando
parafusos para ativar um lustre, foi um passo. E davam-se muitos, perto do mar.
Voltei a pensar no sonho como forma de resgatar a aventura humana.
Mas a presença do Scliar era viva e também parecia maior.
Embalado pelo Bandeira e o Zola, repassei algumas cenas em que vi a arte acudir
a vida. Numa delas, trabalhava no abrigo de crianças abandonadas pela
dificuldade de mulheres serem mães, e homens, pais.
Tínhamos contado a história dos três porquinhos e agora
propúnhamos um teatro. Meus colegas e eu acreditávamos que, se uma criança ouve
histórias e aprende a encená-las, ela adquiriu a capacidade de lidar com a vida
e com a morte. Havíamos providenciado um punhado de palha, outro de madeira e
uns tijolos. Estava tudo ao alcance de nossos protagonistas. Os três meninos
seguiram o roteiro da primeira cena e se despediram da menina-mãe.
Disseram que iam embora, porque desejavam conhecer o mundão,
palavra deles. Já se preparavam para fazer de conta que construíam as casas
quando a menina, de repente, recriou a sua personagem e proibiu os filhos de
saírem. Era agora uma mulher enorme com o olhar atento para acolher demandas,
colocar limites e desempenhar o papel principal de mãe que ama. Permaneceram
todos juntos, longe do texto original e perto de quem mais queriam. Tinham ido
ao reino da imaginação, de onde costuma voltar-se fortalecido para a realidade.
Arte em vida, parafuso apertado, lustre aceso. A
possibilidade de reinventar a própria casa, consertar o mundinho real até que
ele seja maior ou, pelo menos, conforme precisamos. Era o que pensava, mas o
reflexo do sol no vidro dos prédios alcançou os mendigos bocejando. Então,
parei de explicar e voltei a sonhar com o Scliar.
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