- IGNÁCIO DE LOYOLA
BRANDÃO
PARIS.Somente no terceiro dia percebi a pequena placa, à direita
da porta de entrada do Hotel Trois Collèges. Na minha chegada, após 12 horas de
voo e o táxi cortando a cidade em meio a congestionamentos provocados por blitz
da policia, por acidentes e pelo acúmulo de carros (pensam que é só em São
Paulo?), chegamos esbodegados ao hotel, às 6 da tarde. Banho, jantar e cama. No
segundo dia, a saída foi acelerada, era o último dia de uma exposição muito
comentada, Espadas, histórias e mitos, no Museu Cluny, que sabe tudo da Idade
Média. Na volta, fim da tarde, estávamos chapados por um calor que fazia os
parisienses se indagarem: será o fim do mundo? O outono começara, as folhas
estavam caindo sobre as calçadas e parques e o sol esturricava num céu sem uma
nuvem. Não verás Paris nenhum, pensei.
Na manhã do terceiro dia, esperávamos Camila, amiga de minha
filha, que tinha ido buscar um vestido de noiva. Feito de encomenda, lindo, de
bom gosto, custou 1.300, cerca de R$ 3 mil. "Por esse preço, em São Paulo,
eu nem alugava um vestido. Para mandar fazer, pediam por volta de R$ 12 mil. E
acham barato. Volto feliz", ela confessou.
Então, vi a plaquinha de bronze:
Neste hotel, em 1957, Gabriel García Márquez, prêmio Nobel,
escreveu seu romance Ninguém Escreve ao Coronel.
Foi o terceiro livro escrito pelo colombiano e o primeiro em
que ele acertou, começou a ter público. Corri a perguntar ao concierge se ele
sabia em que apartamento García Márquez tinha escrito e ele me disse que foi no
63, o mesmo que eu estava ocupando. Mas que na época era menor, tinha apenas
uma cama. Passei a olhar diferente aquele cubículo em que eu estava com Marcia
e Maria Rita, o único que conseguimos na alta estação, por ter feito
planejamento de ultimíssima hora. Um duas estrelas muito simples, simpático,
limpo, pessoal afável, café da manhã servido por uma cabo-verdiana alta, a
Alice. No segundo dia, ouvi-a falando português e me admirei:
- Então, você fala português?
- Pois desde ontem estou a falar português contigo e você me
respondia em francês.
Na sua autobiografia, Márquez conta que estava na cidade
como correspondente de um jornal, mas que o jornal fechou e ele ficou lá com um
restinho de dinheiro. Passou a enviar cartas aos amigos, pedindo socorro.
"Morava no sexto andar de um hotel sem elevador, e todos os dias descia
para ver se havia uma carta, e nunca havia. Foi quando a história de meu avô
começou a se desenhar na minha cabeça, porque este avô passou a vida esperando
a carta que confirmaria o seu direito a uma pensão do governo, por ter lutado
na guerra civil. Todos os dias até morrer foi ao porto esperar a carta que
nunca chegou. Meu avô ia ao porto, eu descia à portaria, e nada de cartas;
assim a história se escreveu."
Foi quando descobri uma segunda placa comemorativa. Andando
por Paris, olhem para as paredes e as portas. São milhares de placas contando
que um escritor, um cantor, uma celebridade morou ali. Ou indica o ponto em que
alguém da Resistência morreu. Você vai refazendo a história. A outra placa nos
conta que o escritor húngaro Miklós Radnoti, um dos mais queridos pelos seus
compatriotas, morou no Trois Collèges no fim dos anos 1930. Durante a guerra,
foi feito prisioneiro na Iugoslávia e enviado a Auschwitz, onde morreu aos 35
anos.
Também fiquei sabendo que o poeta Raoul Ponchon morou no
hotel entre 1911 e 1937, quando morreu. Um poeta que o Zé Celso, cultor de
Baco, adoraria. Segundo Apollinaire, Raoul ao cantar o vinho, as mulheres e as
flores, com bom humor, foi o último dos poetas báquicos. Verlaine o amava. Bela
companhia a minha. Passei a respeitar mais o Trois Collèges em sua humildade.
Também, das janelas dos quartos você dá com o maciço da Sorbonne. Imagino que o
nome seja em homenagem à Sorbonne, ao Collège de France, bastante próximo, e à
Faculdade de Medicina.
No avião, um dos filmes foi À Meia-Noite em Paris. Na
madrugada, na TV de minha poltrona acabei vendo dublado, sabe Deus por quê. E
me diverti. A certa altura, o tradutor traduziu Left Bank (a velhíssima Rive
Gauche) como "o banco da esquerda". De certo, o banco onde o Zé
Dirceu e o Lula põem o dinheirinho. Desliguei, dormi. Ao menos, me ficaram do
filme, entre outras, as imagens de restaurantes como o Le Polidor, onde
acabamos indo comer, e a galinha de angola é ótima; do Balsar, na Rua Des
Écoles, onde a Noix de Saint Jacques é delicada e o risoto de lagosta e
lasgotins estupendo, e demos uma olhada no Le Grand Velfour, dos mais
sofisticados da cidade. O menu mais barato custa 96, ali pelos R$ 250. Por
pessoa!!! Mas existe o Menu Plaisir pela "módica" quantia de 282
(vinho à parte), perto de R$ 800. Preciso levar um personal gourmet que me
ensine a comer cada prato, sozinho não dou conta. Ah! Agora o Trois Collèges
tem elevador. Meu modesto sonho, delírio de posteridade: será que um dia
colocarão uma placa dizendo que ali reescrevi a terceira versão de minha novela
Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos?
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