quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Dividindo o quarto com García Márquez


- IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO



PARIS.Somente no terceiro dia percebi a pequena placa, à direita da porta de entrada do Hotel Trois Collèges. Na minha chegada, após 12 horas de voo e o táxi cortando a cidade em meio a congestionamentos provocados por blitz da policia, por acidentes e pelo acúmulo de carros (pensam que é só em São Paulo?), chegamos esbodegados ao hotel, às 6 da tarde. Banho, jantar e cama. No segundo dia, a saída foi acelerada, era o último dia de uma exposição muito comentada, Espadas, histórias e mitos, no Museu Cluny, que sabe tudo da Idade Média. Na volta, fim da tarde, estávamos chapados por um calor que fazia os parisienses se indagarem: será o fim do mundo? O outono começara, as folhas estavam caindo sobre as calçadas e parques e o sol esturricava num céu sem uma nuvem. Não verás Paris nenhum, pensei.

Na manhã do terceiro dia, esperávamos Camila, amiga de minha filha, que tinha ido buscar um vestido de noiva. Feito de encomenda, lindo, de bom gosto, custou 1.300, cerca de R$ 3 mil. "Por esse preço, em São Paulo, eu nem alugava um vestido. Para mandar fazer, pediam por volta de R$ 12 mil. E acham barato. Volto feliz", ela confessou.

Então, vi a plaquinha de bronze:

Neste hotel, em 1957, Gabriel García Márquez, prêmio Nobel, escreveu seu romance Ninguém Escreve ao Coronel.

Foi o terceiro livro escrito pelo colombiano e o primeiro em que ele acertou, começou a ter público. Corri a perguntar ao concierge se ele sabia em que apartamento García Márquez tinha escrito e ele me disse que foi no 63, o mesmo que eu estava ocupando. Mas que na época era menor, tinha apenas uma cama. Passei a olhar diferente aquele cubículo em que eu estava com Marcia e Maria Rita, o único que conseguimos na alta estação, por ter feito planejamento de ultimíssima hora. Um duas estrelas muito simples, simpático, limpo, pessoal afável, café da manhã servido por uma cabo-verdiana alta, a Alice. No segundo dia, ouvi-a falando português e me admirei:

- Então, você fala português?

- Pois desde ontem estou a falar português contigo e você me respondia em francês.

Na sua autobiografia, Márquez conta que estava na cidade como correspondente de um jornal, mas que o jornal fechou e ele ficou lá com um restinho de dinheiro. Passou a enviar cartas aos amigos, pedindo socorro. "Morava no sexto andar de um hotel sem elevador, e todos os dias descia para ver se havia uma carta, e nunca havia. Foi quando a história de meu avô começou a se desenhar na minha cabeça, porque este avô passou a vida esperando a carta que confirmaria o seu direito a uma pensão do governo, por ter lutado na guerra civil. Todos os dias até morrer foi ao porto esperar a carta que nunca chegou. Meu avô ia ao porto, eu descia à portaria, e nada de cartas; assim a história se escreveu."

Foi quando descobri uma segunda placa comemorativa. Andando por Paris, olhem para as paredes e as portas. São milhares de placas contando que um escritor, um cantor, uma celebridade morou ali. Ou indica o ponto em que alguém da Resistência morreu. Você vai refazendo a história. A outra placa nos conta que o escritor húngaro Miklós Radnoti, um dos mais queridos pelos seus compatriotas, morou no Trois Collèges no fim dos anos 1930. Durante a guerra, foi feito prisioneiro na Iugoslávia e enviado a Auschwitz, onde morreu aos 35 anos.

Também fiquei sabendo que o poeta Raoul Ponchon morou no hotel entre 1911 e 1937, quando morreu. Um poeta que o Zé Celso, cultor de Baco, adoraria. Segundo Apollinaire, Raoul ao cantar o vinho, as mulheres e as flores, com bom humor, foi o último dos poetas báquicos. Verlaine o amava. Bela companhia a minha. Passei a respeitar mais o Trois Collèges em sua humildade. Também, das janelas dos quartos você dá com o maciço da Sorbonne. Imagino que o nome seja em homenagem à Sorbonne, ao Collège de France, bastante próximo, e à Faculdade de Medicina.

No avião, um dos filmes foi À Meia-Noite em Paris. Na madrugada, na TV de minha poltrona acabei vendo dublado, sabe Deus por quê. E me diverti. A certa altura, o tradutor traduziu Left Bank (a velhíssima Rive Gauche) como "o banco da esquerda". De certo, o banco onde o Zé Dirceu e o Lula põem o dinheirinho. Desliguei, dormi. Ao menos, me ficaram do filme, entre outras, as imagens de restaurantes como o Le Polidor, onde acabamos indo comer, e a galinha de angola é ótima; do Balsar, na Rua Des Écoles, onde a Noix de Saint Jacques é delicada e o risoto de lagosta e lasgotins estupendo, e demos uma olhada no Le Grand Velfour, dos mais sofisticados da cidade. O menu mais barato custa 96, ali pelos R$ 250. Por pessoa!!! Mas existe o Menu Plaisir pela "módica" quantia de 282 (vinho à parte), perto de R$ 800. Preciso levar um personal gourmet que me ensine a comer cada prato, sozinho não dou conta. Ah! Agora o Trois Collèges tem elevador. Meu modesto sonho, delírio de posteridade: será que um dia colocarão uma placa dizendo que ali reescrevi a terceira versão de minha novela Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos?



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