remorrer acontece a quem enterra a honra a cada dia
não há outro caminho a percorrer alem das vísceras do cobarde dia a dia
a remorrer..
Morrerei uma vez sem mais .
Wilson Roberto Nogueira
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
NO TEMPO DA MINHA INFÂNCIA
NO TEMPO DA MINHA INFÂNCIA
No tempo da minha infância
Nossa vida era normal
Nunca me foi proibido
Comer açúcar ou sal
Hoje tudo é diferente
Sempre alguém ensina a gente
Que comer tudo faz mal
Bebi leite ao natural
Da minha vaca Quitéria
E nunca fiquei de cama
Com uma doença séria
As crianças de hoje em dia
Não bebem como eu bebia
Pra não pegar bactéria
A barriga da miséria
Tirei com tranquilidade
Do pão com manteiga e queijo
Hoje só resta a saudade
A vida ficou sem graça
Não se pode comer massa
Por causa da obesidade
Eu comi ovo à vontade
Sem ter contra indicação
Pois o tal colesterol
Pra mim nunca foi vilão
Hoje a vida é uma loucura
Dizem que qualquer gordura
Nos mata do coração
Com a modernização
Quase tudo é proibido
Pois sempre tem uma Lei
Que nos deixa reprimido
Fazendo tudo que eu fiz
Hoje me sinto feliz
Só por ter sobrevivido
Eu nunca fui impedido
De poder me divertir
E nas casas dos amigos
Eu entrava sem pedir
Não se temia a galera
E naquele tempo era
Proibido proibir
Vi o meu pai dirigir
Numa total confiança
Sem apoio, sem air-bag
Sem cinto de segurança
E eu no banco de trás
Solto, igualzinho aos demais
Fazia a maior festança
No meu tempo de criança
Por ter sido reprovado
Ninguém ia ao psicólogo
Nem se ficava frustrado
Quando isso acontecia
A gente só repetia
Até que fosse aprovado
Não tinha superdotado
Nem a tal dislexia
E a hiperatividade
É coisa que não se via
Falta de concentração
Se curava com carão
E disso ninguém morria
Nesse tempo se bebia
Água vinda da torneira
De uma fonte natural
Ou até de uma mangueira
E essa água engarrafada
Que diz-se esterilizada
Nunca entrou na nossa feira
Para a gente era besteira
Ter perna ou braço engessado
Ter alguns dentes partidos
Ou um joelho arranhado
Papai guardava veneno
Em um armário pequeno
Sem chave e sem cadeado
Nunca fui envenenado
Com as tintas dos brinquedos
Remédios e detergentes
Se guardavam, sem segredos
E descalço, na areia
Eu joguei bola de meia
Rasgando as pontas dos dedos
Aboli todos os medos
Apostando umas carreiras
Em carros de rolimã
Sem usar cotoveleiras
Pra correr de bicicleta
Nunca usei, feito um atleta,
Capacete e joelheiras
Entre outras brincadeiras
Brinquei de Carrinho de Mão
Estátua, Jogo da Velha
Bola de Gude e Pião
De mocinhos e Cowboys
E até de super-heróis
Que vi na televisão
Eu cantei Cai, Cai Balão,
Palma é palma, Pé é pé
Gata Pintada, Esta Rua
Pai Francisco e De Marré
Também cantei Tororó
Brinquei de Escravos de Jó
E o Sapo não lava o pé
Com anzol e jereré
Muitas vezes fui pescar
E só saía do rio
Pra ir pra casa jantar
Peixe nenhum eu pagava
Mas os banhos que eu tomava
Dão prazer em recordar
Tomava banho de mar
Na estação do verão
Quando papai nos levava
Em cima de um caminhão
Não voltava bronzeado
Mas com o corpo queimado
Parecendo um camarão
Sem ter tanta evolução
O Playstation não havia
E nenhum jogo de vídeo
Naquele tempo existia
Não tinha vídeo cassete
Muito menos internet
Como se tem hoje em dia
O meu cachorro comia
O resto do nosso almoço
Não existia ração
Nem brinquedo feito osso
E para as pulgas matar
Nunca vi ninguém botar
Um colar no seu pescoço
E ele achava um colosso
Tomar banho de mangueira
Ou numa água bem fria
Debaixo duma torneira
E a gente fazia farra
Usando sabão em barra
Pra tirar sua sujeira
Fui feliz a vida inteira
Sem usar um celular
De manhã ia pra aula
Mas voltava pra almoçar
Mamãe não se preocupava
Pois sabia que eu chegava
Sem precisar avisar
Comecei a trabalhar
Com oito anos de idade
Pois o meu pai me mostrava
Que pra ter dignidade
O trabalho era importante
Pra não me ver adiante
Ir pra marginalidade
Mas hoje a sociedade
Essa visão não alcança
E proíbe qualquer pai
Dar trabalho a uma criança
Prefere ver nossos filhos
Vivendo fora dos trilhos
Num mundo sem esperança
A vida era bem mais mansa,
Com um pouco de insensatez.
Eu me lembro com detalhes
De tudo que a gente fez,
Por isso tenho saudade
E hoje sinto vontade
De ser criança outra vez!
No tempo da minha infância
Nossa vida era normal
Nunca me foi proibido
Comer açúcar ou sal
Hoje tudo é diferente
Sempre alguém ensina a gente
Que comer tudo faz mal
Bebi leite ao natural
Da minha vaca Quitéria
E nunca fiquei de cama
Com uma doença séria
As crianças de hoje em dia
Não bebem como eu bebia
Pra não pegar bactéria
A barriga da miséria
Tirei com tranquilidade
Do pão com manteiga e queijo
Hoje só resta a saudade
A vida ficou sem graça
Não se pode comer massa
Por causa da obesidade
Eu comi ovo à vontade
Sem ter contra indicação
Pois o tal colesterol
Pra mim nunca foi vilão
Hoje a vida é uma loucura
Dizem que qualquer gordura
Nos mata do coração
Com a modernização
Quase tudo é proibido
Pois sempre tem uma Lei
Que nos deixa reprimido
Fazendo tudo que eu fiz
Hoje me sinto feliz
Só por ter sobrevivido
Eu nunca fui impedido
De poder me divertir
E nas casas dos amigos
Eu entrava sem pedir
Não se temia a galera
E naquele tempo era
Proibido proibir
Vi o meu pai dirigir
Numa total confiança
Sem apoio, sem air-bag
Sem cinto de segurança
E eu no banco de trás
Solto, igualzinho aos demais
Fazia a maior festança
No meu tempo de criança
Por ter sido reprovado
Ninguém ia ao psicólogo
Nem se ficava frustrado
Quando isso acontecia
A gente só repetia
Até que fosse aprovado
Não tinha superdotado
Nem a tal dislexia
E a hiperatividade
É coisa que não se via
Falta de concentração
Se curava com carão
E disso ninguém morria
Nesse tempo se bebia
Água vinda da torneira
De uma fonte natural
Ou até de uma mangueira
E essa água engarrafada
Que diz-se esterilizada
Nunca entrou na nossa feira
Para a gente era besteira
Ter perna ou braço engessado
Ter alguns dentes partidos
Ou um joelho arranhado
Papai guardava veneno
Em um armário pequeno
Sem chave e sem cadeado
Nunca fui envenenado
Com as tintas dos brinquedos
Remédios e detergentes
Se guardavam, sem segredos
E descalço, na areia
Eu joguei bola de meia
Rasgando as pontas dos dedos
Aboli todos os medos
Apostando umas carreiras
Em carros de rolimã
Sem usar cotoveleiras
Pra correr de bicicleta
Nunca usei, feito um atleta,
Capacete e joelheiras
Entre outras brincadeiras
Brinquei de Carrinho de Mão
Estátua, Jogo da Velha
Bola de Gude e Pião
De mocinhos e Cowboys
E até de super-heróis
Que vi na televisão
Eu cantei Cai, Cai Balão,
Palma é palma, Pé é pé
Gata Pintada, Esta Rua
Pai Francisco e De Marré
Também cantei Tororó
Brinquei de Escravos de Jó
E o Sapo não lava o pé
Com anzol e jereré
Muitas vezes fui pescar
E só saía do rio
Pra ir pra casa jantar
Peixe nenhum eu pagava
Mas os banhos que eu tomava
Dão prazer em recordar
Tomava banho de mar
Na estação do verão
Quando papai nos levava
Em cima de um caminhão
Não voltava bronzeado
Mas com o corpo queimado
Parecendo um camarão
Sem ter tanta evolução
O Playstation não havia
E nenhum jogo de vídeo
Naquele tempo existia
Não tinha vídeo cassete
Muito menos internet
Como se tem hoje em dia
O meu cachorro comia
O resto do nosso almoço
Não existia ração
Nem brinquedo feito osso
E para as pulgas matar
Nunca vi ninguém botar
Um colar no seu pescoço
E ele achava um colosso
Tomar banho de mangueira
Ou numa água bem fria
Debaixo duma torneira
E a gente fazia farra
Usando sabão em barra
Pra tirar sua sujeira
Fui feliz a vida inteira
Sem usar um celular
De manhã ia pra aula
Mas voltava pra almoçar
Mamãe não se preocupava
Pois sabia que eu chegava
Sem precisar avisar
Comecei a trabalhar
Com oito anos de idade
Pois o meu pai me mostrava
Que pra ter dignidade
O trabalho era importante
Pra não me ver adiante
Ir pra marginalidade
Mas hoje a sociedade
Essa visão não alcança
E proíbe qualquer pai
Dar trabalho a uma criança
Prefere ver nossos filhos
Vivendo fora dos trilhos
Num mundo sem esperança
A vida era bem mais mansa,
Com um pouco de insensatez.
Eu me lembro com detalhes
De tudo que a gente fez,
Por isso tenho saudade
E hoje sinto vontade
De ser criança outra vez!
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
segunda-feira, 16 de dezembro de 2019
Há um anjo em meu nome...,
Tecido de sonhos suas asas.
Sentimento do amor que,
perpassa a pele...
Flue como um fluído que escorre
e, aquecido evapora...
Inserido no tempo
impermanente, do chegar e ir embora.
Leve, qual perfume,
Temperança esvoaça
na fragrância do lume
que o incenso esfumaça.
O silêncio impreciso reverbera
sentidos aleatórios
Na complexidade do agora.
Angela Gomes
ADORMECENDO PALAVRAS
Sem a palavra, simplesmente silencio.
Há, no pavio, uma chama renitente
Que queima, aos poucos... a explosão... que é iminente...
Espalha ardentes emoções no ar sombrio.
Sou um ser frágil... tenho asas, bico... garras,
Sublimo o céu em cada sonho que me dou,
Se me açoitam, sou barco, solto as amarras
E assim, no vento... me liberto...voo... e vou.
Minha palavra é projétil, ave e flor...
Com ela amo, fantasio... dinamito,
Meu coração é a pulsação do meu amor.
Bendito o homem que liberta a emoção
Aprisionada, mas que voa, com seu grito,
Quando adormece no seu próprio coração.
- Luiz Poeta Luiz Gilberto de Barros
Em 14 de Janeiro de 2018 do Rio de Janeiro - Brasil - 10h e
24min - registrado e publicado no Recanto das Letras - Visite-nos
O Absurdo Banal
Não se dorme mais
para que o tempo pare,
os sonhos não nos atormentem
enquanto a angústia corrói.
Respira-se, é fato!
Mas não mais aquele ar de antes,
do anseio pelo eterno
da coragem de olhar pro sol.
O que ainda vive é um mecanismo
que oscila entre o neutro e o absurdo.
O rastejar nas possibilidades
repletas de "impossíveis..."
Morrer jamais será um fim
Claro que não! Sabemos
O mundo só se contenta
se observar a putrefação
E então alguém olha
aperta o nariz com as mãos
cheirando o hidratante da vez
E comenta: Que podridão!
Alessandro Jucá (15/12/2019)
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019
DEMÔNIOS INTERIORES
(SANTANA, Ivan Justen.)
Refugiada no fundo de um poço
Úmido abrigo escuro de vermes
Esquecido, amaldiçoado, vil, sinistro
Uma alma grita desesperada
Uma linda canção de ódio e de prece
A todos seus abomináveis e ocultos
Demônios interiores
Demônios interiores
Demônios interiores
Demônios interiores
Faces contorcidas, rugas de desgosto
Estão escondidas sob a máscara do seu rosto
Curitiba, 1989.
Como tenho falado, em "Que fim levaram todas as
flores" há uma série de listas. Aqui vai algumas delas, como aperitivo:
"Galeria Tijucas, Galeria Asa, Galeria Minerva, Galeria
Osório, Galeria Lustosa, Galeria Suíssa, Galeria Andrade, Galeria Tobias de Macedo...
Muito antes dos shopping centers, e dos centros comerciais que lhes
antecederam, eram as galerias os locais de compra protegidos das intempéries e
do frio, onde nos acotovelávamos, contemplando as vitrines, futricando,
flanando, flertando, conspirando, matando o tempo. Era, numa provinciana
Curitiba, o nosso sucedâneo das passages parisienses. Quantas passantes
pós-baudelarianas não vimos e não perdemos de vista em seus interiores? Tenho a
impressão, inclusive, de que naquele funesto outubro avistei Conceição, de
tailleur, lenço na cabeça e óculos escuros, numa dessas galerias. Corri atrás
dela. Olhei para um lado, olhei para o outro. Nada. Não havia mais nenhum sinal
dela. Curitiba podia estar bem longe de ser uma Paris, mas já tinha o tamanho
suficiente para as pessoas se perderem – para sempre – umas das outras em suas
galerias."
"Passo do França, Arroio do Pulo, Arroio da Ordem,
Arroio do Andrade, Arroio do Pulgador, Arroio do Passo do Melo, Córrego Vista
Alegre, Rio do Wolf, Córrego Capão Raso, Córrego Vila Isabel, Rio Barigui, Rio
Passaúna, Rio Ponta Grossa, Rio do Moinho, Arroio do Espigão, Arroio do Prensa,
Rio Atuba, Rio Iraí, Rio Iguaçu... Rios de Curitiba, rios, córregos, arroios,
ribeiros, riachos, regatos, cursos d’água, regos, valos, veios, olhos, fontes:
somando tudo não dá um Tejo, um Sena, um Guaíba. No máximo, no máximo, um
Tietê. (No entanto, as formidáveis águas que despencam das Cataratas do Iguaçu
e banham as cidades de Montevidéu e Buenos Aires, na Bacia del Plata, são
nascidas modestamente aqui.)"
"Além de cânhamo, a Cannabis sativa é conhecida pelas
alcunhas de abango, abangue, aliamba, baga, bagulho, bango, bangue, baseado,
baurete, bengue, birra, bongo, bola, brenfa, breu, bucha, bunfa, camarão,
caneta, cangonha, canjica, capim, capim seco, carne seca, caroçuda, chá, charo,
chibata, chico, chinfra, chirona, chocolate, chuim, congo, cristina, daga,
diamba, dirijo, douradinha, erva, erva do dianho, fino, finório, fuminho, fumo,
fumo d’angola, ganja, gongo, grama, iberonha, jerê, jererê, jero, liamba,
lombra, majinba, malva, manga rosa, maria joana, marijuana, marofa, massa,
mato, melro seco, mexicana, mingote, nadiamba, pango, paranga, perna de grilo,
rafael, rafi, rafo, riamba, rojão, santa maria, seruma, soruma, suruma, tabanagira,
tarugo, tijolo, tocha do balão, tora, tripa, tronco, umbaru, verde, xiba,
xibaba ou – como é mais conhecida no Brasil – maconha."
Detalhe: a lista de galerias são só das galerias existentes
em Curitiba em 1968; as gírias da maconha, igualmente, são só daquelas usadas
até esse ano. Não foi mole a pesquisa não. Mas foi muito divertida.
Otto Leopold Winck
O RISONHO
(Urban/Santana)
O risonho anda por aí
Assustando as pessoas
Que não têm pra onde ir
O risonho anda por aí
Caçando os condenados
Que não têm como fugir
Risonho, risonho, HA-HA-HA-HA!
O risonho é um cara estranho
O risonho anda pela sombra
Gargalhando seu riso medonho
Assombrando deus e o demônio
Risonho, risonho, HA-HA-HA-HA!
Curitiba, 1989
DECADISMO
Cortei os pulsos
do poente.
(Nas ruas onde descaminho o sangue escorre das nuvens
nessa hora em que outrora havia ângelus e anjos acendiam as
estrelas
onde hoje se acendem os anúncios luminosos...)
Cortei os pulsos
do poema
e vim à rua
contemplar o sol desfalecido.
Era fatal que me tornasse poeta.
(O sangue espirra sobre a pia e sobre o copo
e sobre o tubo de dentifrício e sobre o espelho onde outrora
eu via
um rosto...)
Cortei os pulsos
do poente
e vim à rua
perpetrar o meu último poema.
Otto Leopoldo Winck
Bifurcação
Invisível
Meu ser ao teu
Olhar transcendental
Imperceptível, ao toque
Marginal teu corpo ao meu, à cama,
O medo tão perto, tão distante, ofegante
Retas paralelas, intangíveis, oscilantes. Somos nós?
Fotografias esquecidas, congeladas
No tempo, nas lembranças frias
Afogo-me em desejos vãos
Estreitar antigos laços
Refilmar os fatos
Ilusão
Babel
Linguagem
Que nos arrasta
Ora afasta, ora aproxima
De todas as línguas mal faladas
Das mortas, das vivas das fusionadas
Das mudas, mutáveis, das questionáveis
Só me interessa aquela que troco, que toco contigo
A língua das noites em sonhos românticos
A língua das rimas em versos cânticos
A língua da boca tua na minha
Que se funde e nos confunde
Friccionáveis, flexionáveis
Ciesta
deixo
que chegue
tenra e morna
e que seu hálito
tenro dos sonhos
dos sonhos morno
seja o ritmo de hoje
que em meu peito
e meus ombros
e meus braços
desarmônica
acomode-se
durma
Volmar Camargo Junior
Colheita
sedutora
de invulgar e
irresistível beleza
planta rara de raizes rotas
que dá frutos que não se dão
que não matam por seu veneno
frutos somente, nenhuma semente
colhe-se só iracunda e vil
joga ao chão os pomos
ignora aos vermes
pobres coitados
a si apodrece e
autodevora
[conforma-te]
conforma-te
ei-la, como pediste,
a praia longa e branca
basta de ritos funerários
basta de tormentas marinhas
basta de esperar ser consumido
conforma-te, é o fim da vida no mar
sente, o sol aqui é mesmo o sol
o chão caminha com o vento
e a paisagem, por si, muda
a praia longa e branca
ei-la, como pediste
conforma-te
Volmar Camargo Junior
Libertinagem
by Jú
Blasina
Tudo começou, como sempre – mensagem anônima no celular:
Sexta-feira – 21:00 hs
Você sabe o que e aonde....
O champagne é por tua conta.
A surpresa é por minha...
Ele sorriu, apagando imediatamente a mensagem – já fazia
tempo, muito tempo, desde o último encontro. Tanto que a simples menção de
“surpresa” associada com a lembrança de Val, seminua em meias 7/8, bastou para
excitá-lo. Olhou discretamente as mesas ao redor – era hora de almoço, o
escritório quase vazio, silencioso – o som de uma nova mensagem – “Ah, celular
barulhento” ele resmunga fazendo ainda mais barulho na tentativa de ser
discreto.
E então, garanhão?
Posso te considerar... dentro?
“Ah... cachorra sem vergonha” – ele ria, sem perceber que
pensava alto, enquanto caminhava em direção ao banheiro, apagando, aflito, a
nova mensagem. Lá passaria o resto do seu intervalo, lendo e apagando, lendo e
apagando, sucessivamente, mais rápido, gradualmente mais excitado, lendo e
apagando, lendo e ahh... pagando. Era hora de responder:
Confirmando:
Mesma hora, local, Pau – ops!
(risos) E não esqueça as meias!
Bjs - Cris
Ele passou o dia tão ansioso, tão absorto em pensamentos
obscenos que quase se esqueceu de comprar o champagne. Tudo o que precisava
levar era: um bom champagne, o corpo disposto e alguma imaginação – agora a
lista estava completa!
Val sempre se encarregava dos detalhes – e como era boa
nisso... Perfeccionista ao extremo! Ela e sua maleta hermeticamente organizada
de onde saiam as mais diversas e inesperadas coisas. Segundo Cris, aquilo era o
“chapéu mágico do sexo”. Mal sabia ele quanto tempo e dinheiro ela gastava para
manter seu arsenal abastecido, atualizado e principalmente organizado. E ele ainda
insistia em lembretes do tipo “não esqueça as meias” – uma piadinha interna,
pois ela nunca esquecia nada.
Em cima da hora, ele chegou ao flat. Funcionava como um
esconderijo secreto e compartilhado, que há meses alugavam para seus encontros
– nunca ao acaso – apenas, sempre e somente mediante aviso por ela enviado,
como havia ocorrido hoje pela manhã.
Ao abrir a porta, Cris notou as pequenas mudanças que
renovavam o ambiente, “como sempre”. Cada vez que visitava o local,
encontrava-o redecorado, habito que ela mantinha, não apenas com o flat – Val
era cheia de surpresas e a ansiedade por encontrá-la o deixava louco...
Havia velas acesas espalhadas por toda a parte, iluminando e
perfumando o ambiente. A música já estava tocando. Era algo envolvente, mas não
apelativo “Moby? talvez”, pensou ele, largando o champagne no balde de gelo que
o aguardava sobre a mesa de centro. Tirou o casaco, tentando aparentar
tranqüilidade, até que ouviu o som do salto se aproximando – toc, toc, toc –
virou-se e lá estava ela: espartilho, salto agulha e meias... ah... meias 7/8
pretas, arrastão.
O champagne esquentou e não foi o único: a combustão
imediata daqueles corpos fez com que as roupas saltassem quase que
espontaneamente. Depois de algum tempo, prazeroso tempo, até as amadas meias
sumiram. O flat, antes tão arrumado, agora parecia ter sido atingido por um
terremoto ou furacão. E de certa forma o foi. Lá estavam os sobreviventes, nus,
enrolados em corpos e lençóis, bebendo o champagne já quente, cujo gelo havia
ganhado outras finalidades durante o processo. Agora, recuperado o fôlego, conversavam
sobre as supostas e postiças vidas que um apresentava de forma mais mirabolante
ao outro. E entre mentiras e risadas recíprocas, as coisas pareciam funcionar –
e satisfazer muito bem – a ambos.
“Mais barato que terapia” dizia ela às amigas
“Melhor que uma esposa ou prostituta qualquer” dizia ele a
si mesmo.
Ao amanhecer, após dormir, comer, mentir, rir, banheira e
sexo, em repedidas e desordenadas vezes, era chegada a hora de montar o
“quebra-cabeças” do quarto.
— Viu minha camisa?
— Na sala – respondia ela, enquanto reorganizava sua maleta.
— Viu minha cueca?
— Hum... aqui! Toma aqui – alcançava ela, enquanto terminava
de se vestir, de maneira muito mais comportada do que havia se apresentado na
noite anterior.
— E minha meia, viu?
— Qual? Esta que está no seu ombro, Cris?
Ele riu — Esta também. E a outra?
Olharam em volta e nada da meia. Começou então a procura –
ela revirava as cobertas já arrumadas, enquanto ele, parado, olhava para os
móveis, sem mover um dedo, como se pudesse enxergar através deles – ela, agora
de joelhos, procurava por todo o canto, atrás a cômoda, na poltrona, sob a
cama.
— Achei!
Gritou ele, orgulhoso, de algum lugar da sala.
Ela permanecia ajoelhada no mesmo local, apreensiva com algo
que trazia nas mãos.
Cris voltava ao quarto, já de meias, fechando a camisa,
enquanto ela levantava lentamente – uma expressão fria, nenhuma palavra.
— O que foi Val? Ah, achou a tua meia também?
— Não.
— Como não? E o que é isso na tua mão? Parece até eu. Haha,
te peguei agora, perdendo coisas!
Ela permanecia com o semblante fechado. Largou a meia 7/8
preta, vagarosamente, no centro da cama, sobre o lençol vermelho. Ainda sem
captar o que estava acontecendo, ele se aproximou, analisando de perto a
situação. Olhou para Val, para a meia, Val, meia, perguntando-se o porquê de
tanto mistério, Val, meia, Val, meia... até que, enfim, percebeu! Quando seus
olhos encontraram os dela, que o fitavam atentamente, não se sentia muito
seguro quanto ao que dizer. Agarrava-se àquele silêncio, em busca de uma boa
explicação, quando o silêncio foi rompido:
— E então, Cris? Caso não tenhas escutado, ou entendido, eu
repito: Não, essa meia vagabunda não é e nunca foi minha. As minhas, já estão
na maleta, e, além disso, coisas vagabundas não fazem o meu estilo, mas, pelo
visto, fazem o teu, ou estou enganada?
Ele engoliu a seco, arregalou os olhos, “pensa rápido, pensa
rápido... ah, merda! Ela sabe ou só tá blefando? Ah, merda! Melhor eu falar a
verdade, dane-se”
— Não, eu não trouxe ninguém aqui, se é isso que tu tá
insinuando.
— Ah, sim, claro! Então, acompanhe o meu raciocínio: Se essa
meia não é minha, nem de outra qualquer, eu presumo que seja de quem?... tua?
Uma gota de suor ameaçava escorrer denunciando o pavor de
Cris diante aquela afirmação. Tentando manter a calma, ele reavaliava a
situação:
De um lado Val: vestida sobriamente, tailleur cinza, camisa
branca, sapatos impecáveis, cabelo perfeitamente arrumado. De outro ele, Cris:
calça ainda aberta, camisa mal abotoada, calçando um sapato só, cabelo
bagunçado, barba mal feita. Entre eles, sobre a cama, aquela cama, naquele
quarto que é dos dois, estava ela: aquela meia – maldita meia – que não podia
pertencer a nenhum dos dois.
“É isso!” pensa ele “É o que ela espera que eu diga: a
resposta lógica - é perfeita!”
— Não, claro que não é minha. É de uma amiga... Já faz um
tempo, a gente não se encontrava mais, tu não ligavas nunca! Aconteceu... Não
achei que isso fosse te incomodar tanto, afinal, a gente não tem compromisso...
e foi só sexo.... e...
— Chega. Não preciso ouvir mais nada. Primeiro: “só sexo” é
o que nós temos. Segundo: pouco me importa o que tu faz ou deixa de fazer aqui,
na minha ausência, mas me incomodo, e muito, a tua falta de consideração, ao
deixar os restos das tuas vagabundas espalhados pelo nosso quarto.
— Val... foi só uma meia!
— Pois é, Cris. Não é a perna que estava nela que me
importa. É o teu descaso.
— Desculpa, mas como eu ia adivinhar?
— A gente não adivinha Cris, a gente pensa, organiza e se
certifica de que tudo esteja perfeito.
Sabe o que isso me mostra, Cris? Essa meia é uma mancha no
teu caráter!
Cris pensa: “Droga, parece até que ela sabe”
Val pensa: “Ótimo, acho que fui convincente”
—Tá certo Val, se é isso o que tu pensas... Eu já vou... tô
atrasado para o trabalho. Vou juntar minhas “manchas” e te deixar aqui no teu
“santuário” de organização e retidão.
— Ironia não vai ajudar agora, Cris. E DEIXA ESSA MEIA AÍ!
Gritou ela, enquanto ele, cuidadosamente, enrolava o precioso
achado.
— Por quê? Não é minha... minha falta de caráter?
— É. E eu vou guardar, de recordação.
— Tu é louca, sabia? Gostosa, mas louca.
— E tu é burro, sabia, gostoso, mas burro.
Indignado, ele saiu, juntando suas coisas pelo caminho,
bufando e batendo com as portas.
Já no carro Cris sente-se aliviado, extremamente aliviado,
por ela ter engolido a mentira mais sensata. Apesar de todo o drama e ofensas,
antes sair de um quarto com fama de mal caráter do que revelar o tamanho de sua
paixão por meias 7/8 . Isso seria mais embaraçoso que qualquer coisa!
Ainda no flat Val joga-se em cima da cama, rindo e brincando
com a meia, recém encontrada. Pega o telefone e manda uma mensagem. Dessa vez o
remetente é outro:
Cherrie, sua cachorra!
Eu sei o que tu fez e sei que foi de propósito.
E sim, ele foi embora, mas só por enquanto...
E se quiser tua meia de volta: Vem pegar - hoje, 21hs.
Te espero faminta – E traga o champagne!
E assim, ambos seguiram, compartilhando um mesmo alívio ao
cobrir as verdades impróprias, com um mesmo pensamento: “A meia de baixo da
cama, não é minha”
Fonte Samizdat
O Lobo Vermelho (primeira parte)
Por Guinen
Plumbeano
(Volmar Camargo Junior)
Avvena é um lugar inapropriado para quem gosta de sol e
calor, porque não há um único dia no ano em que não chova. É úmida, cinzenta,
encardida. Nas ruas, perambulam pessoas cabisbaixas e tristonhas. São raros os
dias festivos, e ainda assim, preenchidos de solenidades. Durante séculos,
Avvena foi um quartel gigantesco, e a maior parte da população era de soldados;
os que não eram militares trabalhavam para eles, e se lhes impunha um regime de
ordem e obediência, o que acabava, enfim, sendo a mesma coisa: todos seguiam um
regime militar. Depois que as conquistas ao território minguaram e o exército
foi incumbido de proteger as fronteiras, muito distantes do Mar, Avvena
tornou-se um pólo industrial, porque tinha algo difícil de encontrar em outras
províncias: uma massa de trabalhadores obedientes, histórica e culturalmente
incapaz de exigir melhores condições de trabalho. Assim, Avvena passou a ser um
atrativo, primeiro para as nascentes indústrias, depois, para pessoas que
viviam em situação de pobreza e miséria nas áreas rurais desta mesma província,
que vinham em busca de trabalho – ou, pelo menos, de um meio de se sustentar
- e por último, para moradores de outras
grandes cidades e do interior de outras províncias ao redor do Mar. Avvena
inchou, alastrou-se pelo vale que ocupava, tomou a região acidentada que
circundava a cidade-quartel, subiu a montanha e hoje é um monstro cinzento,
frio e empoeirado, insensível aos seus quatrocentos mil habitantes, e nada
convidativa para os visitantes. Eu era um visitante, mas não fui até lá por
causa dos atrativos inexistentes da cidade. Não tive muito tempo para me
preocupar com o mau-humor do clima avvenino, nem prestar atenção nas chaminés
quilométricas, nem nos rostos infelizes que compunham a classe trabalhadora às
seis da manhã e às sete da noite. Fui porque tinha um grande interesse na vida
de um cidadão ilustre, sobre o qual estive pesquisando desde que aprendi a ler:
General Petro Velasturvo, o Lobo Vermelho.
Meu contato físico
com Avvena começou na estação de trens. Teria começado antes, se eu estivesse
acordado, e teria visto praticamente toda a cidade, de cima, pela janela do
vagão: os trilhos fazem um percurso em espiral pelo perímetro da cidade velha,
pelas encostas da serra, por sobre a absurda muralha que a circunda.
Entretanto, os barbitúricos não recomendados pelo médico me fizeram dormir
feito um degrau das escadarias do Farol, e só fui acordado, a muito custo, pelo
fiscal do trem, quando já estávamos parados. Fui o último passageiro a descer.
Um funcionário do governo, muito prestativo e jovem, viera buscar-me com um
veículo oficial, desses carros sofisticados que se vêem pouco na Capital. O
rapaz apresentou-se com muita cordialidade, e quase nenhuma formalidade.
Chamava-se Platin. Eu teria me enganado se concluísse que todos os avveninos
eram como ele. Posteriormente, descobri que Platin era de um lugarejo perdido
na imensidão surenha, e que era tão avesso ao modo de viver avvenino quanto eu
e outros estrangeiros. O jovem encarregou-se de carregar minha pouca bagagem,
apenas duas malas pequenas, rindo da minha falta de cuidado com o frio que
costumava fazer, e em poucos minutos, fez comercial de duas lojas de roupas de
inverno de conhecidos seus. Convidou-me para entrar no carro, sem nenhuma
formalidade especial – não que eu precisasse de qualquer formalidade; apenas
achei aquilo estranho e divertido para um lugar que eu sabia ser o mais
antipático do mundo. Entrei pela porta lateral, e só então percebi que havia
mais alguém lá dentro. Era uma mulher.
— É um prazer,
Senhor Plumbeano. Entre. Está muito frio
aí. — e imediatamente, eu soube de quem se tratava. Era Agatha Pietra
Velasturvo, tataraneta e assistente pessoal do General.
Ela não parecia um
militar, pelo menos, não estava vestida como um. Ao telefone, sua voz era
melodiosa e grave, como a das pessoas que estudam técnica vocal. Em sua
presença, tive a impressão de que era uma personagem de rádio-romance, à imagem
que eu havia feito, quando criança, de heroínas como Semmpat de Ture ou
Felixcia Luna – com a diferença óbvia de que estas não eram humanas.
Entretanto, Agatha Velasturvo era, definitivamente, uma pessoa diferente,
talvez dotada de uma aura não-humana como a das heroínas de minha imaginação.
Lendo a respeito da história pessoal do General Petro, chega-se facilmente à
conclusão de que nunca confiara em ninguém, e que sempre fora assessorado por
um familiar. Ela, Agatha, estava como sua fiel escudeira desde os primeiros
passos. A mim, porém, lembrou-me uma diva do rádio.
Ao longo dos cinco
quilômetros entre a estação e o hotel, Agatha expôs-me a situação toda, de modo
muito sucinto, claro e objetivo. Em poucas palavras, agendou a primeira
entrevista para as sete da manhã em ponto do dia seguinte, durante o desjejum
do General. Deixou-me a par do estado de saúde do herói nacional, que já
avançava para a casa dos cento e vinte anos. Também deu-me algumas explicações,
sem espaço para dúvidas, sobre como referir-me aos tritões na presença do
General, porque jamais acatou os acordos de paz assinados mais de cinquenta
anos antes. Tampouco considera a confederação das províncias do Mar de Luna uma
única nação, e por isso, também é um assunto delicado. Por fim, quando o carro
já se encontrava diante das portas do hotel, Agatha estendeu-me a mão, ao que
correspondi, recebendo o aperto de mãos mais pesado que já havia recebido na
vida. “Amanhã”, disse ela, “Platin virá buscá-lo bem cedo. Não abuse dos
barbitúricos dessa vez”. O ângulo dos seus lábios me fez entender que se
tratava de uma piada. Talvez, o mais perto que um militar avvenino tenha
chegado de uma.
Choveu continuamente
durante toda a madrugada. O hotel tinha um sistema de calefação eficaz e
moderno, o que me possibilitou uma noite agradável, inevitavelmente sem sono. Dei-me
o luxo de pedir para o serviço de quarto levar-me um bule de café e alguns
biscoitos, para começar a esboçar minha entrevista sem precisar descer ao
restaurante. Enquanto esperava, tentei olhar pela janela, e tudo o que vi foi a
fachada da fábrica de botas que ocupava a metade da quadra do outro lado da
rua, e duas vezes a altura do hotel. Também não se via naquele quarteirão mais
do que a luz de um poste tímido permitia: uma imensa parede de tijolos, uma
guarita, um contêiner de lixo abarrotado, uns quantos gatos de rua embolados em
uma caixa de madeira que lhes servia de casa. Assim que o relógio do alto da
entrada da fábrica marcou meia-noite, um guarda caminhou de uma esquina até a
outra. Era um bovineu, que eram muito respeitados na infantaria do exército
avvenino, e ainda mais respeitados na guarda municipal. Já estaria aí o assunto
para um tratado, a diferença de tratamento dado aos bovineus, começando nas
caçadas da Capital, passando pela escravatura, culminando na posição de
destaque no exército e na polícia de Avvenin. Certamente trataria deles na
biografia do General Petro, já que um de seus companheiros no início da vida de
soldado, foi Unmonu, que veio a ser herói tanto de seu próprio povo quanto do
nosso, e que lhes garantiu a alforria oficial e definitiva, mas não o fim do
preconceito. Assim que chegaram o café, os biscoitos e potes com geléias – os
avveninos são pouco sociáveis, mas sabem comer bem – tomei meu bloco e uma
caneta. Esqueci-me completamente da rua, da chuva fina, do guarda bovineu que
caminhava pesada e silenciosamente na calçada em frente, e anotei minhas
perguntas.
Amanheceu. Tomei o
último gole de um café amargo e frio, e nem conseguia mais olhar para
biscoitos. Pude ver Platin e o carro oficial – cor-de-madeira-dourada com
detalhes em dourado nas extremidades, nos paralamas e nos faróis dianteiros,
luxuoso mesmo para um carro do governo – subindo a rua. O dia não estava muito
menos escuro nem menos chuvoso que a madrugada, e Avvena não era mais simpática
na claridade pálida do dia. Em uma hora
eu estaria dentro da mansão Velasturvo. A toca do abominável Lobo
Vermelho.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Barco à deriva
Meu mar interno
intenso fica.
Águas profundas
inconscientes (se)mentes
& revelações.
Em descompasso
navego.
Nada sei da margem
ou da foz.
Último round
Poesia
é peso-leve
no tablado das Artes.
Frágil
etérea
não tem a robustez
das narrativas longas.
Nutre-se de metáforas
aliterações
onomatopéias.
Proteína pouca
para ávida luta.
No quase-nocaute
o gongo soa...
Cobrança
Devolvam-me
certas paisagens
passagens voláteis
na memória.
Devolvam-me
tantos acordes
em dissonância
a vida agora só diz sim.
Devolvam-me
todas as cores
fragrâncias
Cobrem-me as contas
depois...
Ricardo Mainieri
Criança
Pedir pra criança não gritar
é o mesmo que pedir
pra cachorro não latir.
Pedir pra criança não correr
é o mesmo que pedir
para a borboleta não voar.
Paulo Henrique Frias
OS HOMENS
Em água e vinho se definem os homens.
Homem água. É aquele fácil e comunicativo.
Corrente, abordável, servidor e humano.
Aberto a um pedido, a um favor,
ajuda em hora difícil de um amigo, mesmo estranho.
Dá o que tem
— boa vontade constante, mesmo dinheiro, se o tem.
Não espera restituição nem recompensa.
É como a água corrente e ofertante,
encontradiça nos descampados de uma viagem.
Despoluída, límpida e mansa.
Serve a animais e vegetais.
Vai levada a engenhos domésticos em regueiras,
represas e açudes.
Aproveitada, não diminui seu valor, nem cobra preço.
Conspurcada seja, se alimpa pela graça de Deus
que assim a fez, servindo sempre
e à sua semelhança fez certos homens que encontramos
na vida
— os Bons da Terra — Mansos de Coração.
Água pura da humanidade.
Há também, lado a lado, o homem vinho.
Fechado nos seus valores inegáveis e nobreza
reconhecida.
Arrolhado seu espírito de conteúdo excelente em todos
os sentidos.
Resguardados seus méritos indiscutíveis.
Oferecido em pequenos cálices de cristal a amigos
e visitantes excelsos, privilegiados.
Não abordável, nem fácil sua confiança.
Correto. Lacrado.
Tem lugar marcado na sociedade humana.
Rigoroso.
Não se deixa conduzir — conduz.
Não improvisa — estuda, comprova.
Não aceita que o golpeiem,
defende-se antecipadamente.
Metódico, estudioso, ciente.
Há de permeio o homem vinagre,
uma réstia deles,
mas com esses não vamos perder espaço.
Há lugar na vida para todos.
Relógios demais
Há relógios demais nas esquinas do mundo.
Também nas vitrinas
em todos os pulsos
em cada corpo
em cada cômodo da casa
nas repartições aeroportos e hospitais.
Alguns têm rubis
outros são de ouro e diamante
e há os que não obstante a ansiedade do instante
têm os horários vários
em todos os quadrantes.
Tantos relógios!
como se não bastassem
a clepsidra em nossas veias
o relógio do Sol em nossas testas
e os carrilhões da consciência
lembrando que atrasados estamos
com o bilhete equivocado
no vôo
para a inabarcábel eternidade.
Há relógios demais atando
o peito e o pulso
da angústia humana
ruas inteiras vitrinas ostensivas
na Quinta Avenida, Corrientes, na Gran Via de Madrid,
Regent Street em Londres
e nos boulevares de Paris
sem falar nos formidáveis shoppings
de Tóquio e de Pequim.
De que valem seus alarmes
e despertadores se
não mais despertamos se
não nos alarmamos
com o horror
que neste instante explode
na dupla face do mundo
e chegaremos sempre tarde
para salvar o outro da bala
do vírus
e da fome de amor?
Boqueirão
no canal
de águas
guardadas
foto do fa
rol grama
de silêncio
rebento
Diniz Gonçalves Júnior
À CAROLINA HOMENAGEANDO MACHADO DE ASSIS
A CAROLINA
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.
Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
Machado de Assis
1
“São pensamentos idos e vividos”
Que tanto traduzindo vida e morte,
Permitem cada alento que conforte,
Trazendo dias mortos e esquecidos.
Assiduamente sigo a cada dia
Imensos turbilhões, momentos vagos,
E neles percebendo calmos lagos
Ou forte e inquestionável ventania.
Porquanto nos ensina a vida assim,
Errando e consertando e novo engodo,
A chuva traz alento e trama o lodo,
Regando ou destruindo algum jardim.
Libertos caminheiros, prisioneiros,
Farsantes tanto quanto verdadeiros.
2
“Pensamentos de vida formulados,”
Gerando contra-sensos e verdades,
Por vezes sonegando realidades,
Momentos em tormentos disfarçados.
Alçamos nossos últimos segundos
Em luzes variáveis ou sombrias,
No todo que destróis ou que recrias
Se mostram universos, tantos mundos.
Cadenciando a vida passo a passo,
Moldando uma verdade questionável,
O solo muitas vezes mais arável,
Traduz este plantio que desfaço.
Somando os meus acertos, meus enganos,
Mudando a cada instante velhos planos.
3
“Que eu, se tenho nos olhos malferidos”
Ainda continue a caminhada
Sabendo quão diversa seja a estrada
E nela se percebem mil sentidos,
Partícipe da festa feita em vida,
Sonoras discrepâncias me permito,
E quando se percebe ser finito
O mundo preparando a despedida
Servindo como ponto início e fim,
O precipício aguarda este tropeço,
Quem dera se tivesse um recomeço,
Só sei que nada sei, nem de onde vim.
Aguarda-me o vazio? Eternidade?
A dúvida transcende à realidade.
4
“E ora mortos nos deixa e separados”
Os mais complexos passos rumo ao que?
No quanto tanto creio e o quanto vê
Medonhos os abismos já traçados.
A neve ultrapassando algum inverno,
Calor adentra insano o meu outono,
O rumo vez em quando eu abandono,
E quando veraneio, mais hiberno.
Estranhas decisões, errôneos traços,
Mergulhos em vazios, cataclismo,
Ainda sem destino teimo e cismo,
Por mais que os pensamentos morram lassos,
Ardentes ou tão gélidas montanhas,
Perfazem nesta vida, minhas sanhas...
5
“Da terra que nos viu passar unidos”
Sequer o pó carrego nos meus pés,
Aonde se previra outras galés,
Momentos mais felizes são urdidos.
Esqueço-me da dor quando me entranho
Nos antros mais vorazes do prazer,
Mas logo depois disso posso ver
O quanto se perdeu em pouco ganho.
Edênico ou hedônico, portanto,
Dicotomias traço em cada verso,
E sei que quanto mais em mim imerso,
Maior será decerto o desencanto.
Desertos que criei, árida imagem,
Oásis não passando de miragem?
6
“Trago-te flores, - restos arrancados”
Dos meus momentos vários de emoção,
E neles adivinho se verão
Meus olhos novamente meus enfados.
Acrescentando o nada ao nada ser,
Perpetuando em mim cada vazio,
E quando do passado me recrio,
Pereço um pouco mais, e posso crer
No quanto se faz frágil uma existência
Certezas que não tenho nem terei,
Talvez ainda creia numa lei
Aonde possa haver luz, penitência.
Assaz maravilhosa a vida passa,
Por mais que tênue seja, qual fumaça...
7
“E num recanto pôs um mundo inteiro”
Num átimo, um mergulho ou cordilheira,
Abismos que encontrei, quer ou não queira
Traduzem variedade do tinteiro.
E sinto ser audaz enquanto medro,
Nefastas as manhãs, claras as noites,
Carinhos se misturam com açoites,
Transporto uma nobreza feita em cedro.
E quando em disparada perco o rumo,
Mesquinho, muitas vezes, me abandono,
E tendo necessários paz e sono
Errôneo caminheiro; não assumo.
Perfaço com percalços, mas acerto,
Gerando dentro em mim, caos e deserto.
8
“Fez a nossa existência apetecida”
O sonhar fabuloso ou tanto inglório,
O quanto se fazendo em torpe empório
Aquilo que pensei moldasse a vida,
Esgotam-se os caminhos por si sós,
E vastas as planícies, charcos tantos,
Por vezes mais profusos desencantos,
E neles vejo insólitos tais nós.
Apedrejado ou mesmo apedrejando,
Seguindo num hermético vagar,
Bebendo cada raio do luar,
Volvendo ao meu início em contrabando.
Esparsos versos, veios tão diversos,
Dispersos os meus tantos universos...
9
“Que, a despeito de toda a humana lida,”
Jamais se poderia crer na sorte,
Que tanto amaldiçoe e nos conforte,
Porquanto em treva e luz se faz urdida.
Ascetas ou profanos navegantes,
Espúrias criaturas, sacrossantas,
Diversidades ditam cores tantas
E nelas as belezas deslumbrantes.
Fantasmas de nós mesmos recriamos,
E temos a certeza de um incerto
Caminho que nos leve longe ou perto,
Das imaginações, servos ou amos.
Temíveis feras; somos, ou pacíficos
Retratos distorcidos e magníficos...
10
“Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro”
Enquanto algum farsante sentimento
Trazendo tempestade ou mesmo alento,
Macabro por ser claro e corriqueiro.
Aspectos tão diversos deste prisma,
E nele incomparáveis maravilhas,
Porquanto se percebem armadilhas,
Uma alma sem destino ainda cisma.
E tento ver após o que não creio,
E creio no que tanto se sonega,
A vida sendo assim, imensa e cega,
Proclama a cada passo outro receio.
E vejo-me espelhando no vazio,
Que tanto quanto posso, desafio...
11
“Trazer-te o coração do companheiro”
Depois de navegar mares imensos,
Às vezes dias calmos, frios, tensos,
Entranham nos meus olhos, vou inteiro.
Acasos são comuns, mas a desdita
Percebe-se no quanto se reluta,
A vida não passando de uma luta,
Verdade não se cala, um dia grita.
Sufoca-me deveras a gravata,
Disfarço uma nudez em rico terno,
Preparo a cada passo um novo inferno
Sabendo quanto a sorte é tão ingrata.
A queda se anuncia e desta escada
Degrau após degrau desvendo o nada...
12
“Aqui venho e virei, pobre querida,”
Trazer qualquer alento, um lenitivo,
Das ânsias do viver eu sobrevivo,
Por mais que dolorida seja a vida.
E traço sobre traços mais distintos
Caminhos tão diversos, mesmo fim.
Por vezes um demônio ou querubim
Obedecendo à luz de meus instintos.
Adentrando os umbrais do que não vejo
Escrevo com penúria, dor e glória
Aos poucos o resumo de uma história
Marcada pelo anseio e por desejo.
Só sei que no final venço e vencido,
Somente dos meus pés, um ledo olvido.
13
“Em que descansas dessa longa vida”
Após as velhas curvas costumeiras,
As chuvas que tu bebes, derradeiras,
E nelas com certeza tudo acida.
O parto se refaz em nova esfera?
É tudo o que desejo, esteja certo,
Mas quando o meu caminho eu já deserto,
Aonde se escondeu a primavera?
Esgarçam-se momentos dia a dia,
E traço do vazio esta esperança
Na qual o amanhecer novo se lança,
E a morte eternamente já se adia.
Pudesse desvendar cada segredo,
Mas como, se deveras nunca cedo?
14
“Querida, ao pé do leito derradeiro”
Somando os meus enganos e tormentas,
Enquanto com palavras apascentas
Do fim ainda tento e não me esgueiro.
Escarpas que venci, quedas terríveis,
Imensos precipícios, cordilheiras,
Assim ao desfiar minhas bandeiras,
Os dias se mostrando em vários níveis.
O peso se alivia, mas quem dera
Se todo o caminhar se resumisse
No quanto a própria história já desdisse
Gerando a imensidão da amarga fera,
Aonde se funéreo fez caminho,
Eternizando ali, último ninho...
São sóis, são sós...
somos nós e nossos nós.
Um abarcar, um vôo de albatroz
e livres de qualquer algoz,
recapitular... refazer nossos cursos...
Opostos.
Distantes.
Inseridos num antes,
que jamais
morrerá...
algo estranho,
visonho.
Um paralelo caminhar.
Diferentes estradas.
Buscas.
O tudo ou o nada.
São sóis, somos nós.
Somos sós,
nós e nossos nós.
josemir(aolongo...)
Vida
"Nada de nosso temos senão o tempo; de que gozam
justamente aqueles que não tem paradeiro" Baltasar Graciàn
Não sei se vou embora,
mas o instante que me guia
é o mesmo que me angustia.
Não direi (a)Deus!
Tudo que sinto
é um ânsia de morte.
E se não voltar, procurem-me
em algum túmulo à sombra
de uma laranjeira prateada.
Dois Destinos
mecânica de afetos molha o fotograma
Valério Zurlini , estação Mastroianni
um gesto dispersa palavras
recolhe despedidas
tatuadas nas sombras
Diniz Gonçalves Júnior
Sobre a Roda de Dança Para Santo Antônio
Dias atrás comentei, na Internet, sobre a Roda de Dança para
Santo Antônio e algumas pessoas me escreveram para que eu explicasse melhor
sobre esta manifestação cultural do Brasil. Mas que, infelizmente, está sendo
esquecida. As Rodas de Danças chegaram ao nosso país através dos imigrantes
portugueses, no Brasil-Colônia.
Uma roda de dança milagrosa é um evento, com coreografias de
balé, dedicadas a algum santo para pedir, ou, agradecer uma graça alcançada.
Quem acompanhou a novela chamada Velho Chico, deste ano de 2016, deve lembrar
que a personagem Leonor fez uma Roda de Dança Para São Gonçalo para agradecer
um milagre alcançado. Este tipo de evento funciona do mesmo jeito que apareceu
na novela.
Anos atrás, no mês de junho era comum, as moças fazerem as
Rodas de Santo Antônio para alcançar um casamento. Este evento era organizado
da seguinte forma: uma jovem donzela se vestia com roupas medievais como: saia
rodada, anágua, espartilho e flores na cabeça. Então ela dançava no meio das
mulheres que desejavam um matrimônio, jogando pétalas de rosa, fazendo o balé
do anel e da bandeira de Santo Antônio. As jovens que pegavam as pétalas,
conseguiam o anel e encostavam na bandeira conseguiam casar. Na verdade, este
evento é uma adaptação de um ritual egípcio conhecido como: A Dança da Vestal
para as Irmãs Conseguirem um Casamento, onde as virgens bailavam para que as
outras jovens conseguissem casar. Porém, na Idade Média, este evento foi
adaptado e virou a Dança da Roda Para Santo Antônio.
Agora, só falta vocês organizarem uma Roda de Dança nas
cidades.
Luciana do Rocio Mallon
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
FÉRIAS
agora terei tempo de me esconder e chorar sozinho no meu
canto
terei tempo de ouvir aqueles pássaros, saborear aquela letra
cochilarei enquanto sentir cheiro de café
terei tempo de reclamar do tempo.
Tonho França
A LUZ DESPOSSUÍDA
Geração de luzes apagadas
escuros palcos periféricos
som
movimento
corpos
esperados gestos inacabados
não há amor entretanto
acredita no começo
e nas luzes enquanto acesas.
(Pedro Du Bois, A LUZ DESPOSSUÍDA, Ed. do Autor)
Fatalidade
Era aficionada por livros. Destino traçado: seria uma
intelectual. No entanto, foi encontrada morta sobre um livro. A indigestão
matou a traça.
Vera Pedrosa Martins de Almeida (Rio de Janeiro, 1936)
é
carioca, poeta, crítica de arte, diplomada em filosofia e foi uma das nossas
mais destacadas diplomatas durante a primeira fase do governo Lula, tendo
encerrado a carreira como Embaixadora em Paris, onde participou da realização
de um espetacular Ano do Brasil na França (que teve pouca repercussão na nossa
imprensa). Foi, também, embaixadora do Brasil no Equador e na Dinamarca. É
filha de Mario Pedrosa, militante político (um dos fundadores do PT),
considerado como iniciador da crítica de arte moderna do Brasil, em especial do
movimento concretista, tendo sido colaborador e diretor dos mais importantes
museus de arte do Rio e de SP. Além de dar um importante testemunho vivido
sobre os elementos que separam ou aproximam os povos, a Ministra Vera Pedrosa
propõe a Arte como o melhor "atalho" para a comunicação entre os
corações e as mentes das pessoas - estejam onde estiverem. Livros publicados Poemas
(Rio de janeiro, 1964), Perspectivas naturais (Lima, 1978), De onde voltamos o
rio desce (Lima, 1979; re-editado e relançado em 2011, pela Bem-te-vi).
(Os poemas abaixo foram retirados do livro "26 poetas
hoje", organizado por Heloísa Buarque de Hollanda no ano de 1975).
PARA LÍVIA
Pensar que tua avó
criou-se nessa chácara
(onde ao pé da
mangueira desenterraram uma vez
um caco)
com todos os córregos
e os brinquedos chegavam
da Europa numa mala.
Os pés de lichi o bisavô
mandara trazer da índia
(se dizia líxia).
Faz frio no jardim
descido da mata
(flanco que ilumina e
umedece
esse cansaço de retorno).
Onde tua tia-avó
delimitava áreas
de horror e solidão.
Pensar que passavam os dias
encolhidas
(embaixo dessas árvores)
em pontos de sombra.
Vera Pedrosa Martins de Almeida
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
Sai se esgueira
pela sala adentro
pelo corredor
de onde volta
trazendo o leite do irmão
Fez um frio súbito
teve fome
como um gato
céu abaixo se despeja
uma água de chumbo
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
Não se ouvem mais o vozerio, as intermitências,
clamores ou batida de martelos, pregos,
alguém que lixa uma tábua.
Estou um instante só na sala.
Batalhei para fechar a janela.
Vera Pedrosa Martins de Almeida
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
FIM DE DIA
Quando choveu o ar está
com água pesando
e passam aves rápidas
manchas indecisas
sombras
concentração de névoa
e do alto se vê
o topo da árvore
e as flores laranjas
desse flamboyant
vibram com o movimento
acelerado
do esôfago ao estômago.
O dia desenrolou
vagaroso o tédio recolhido
armado
sob um prisma de cristal ao lado
de um paralelepípedo de vidro verde
sobre a mesa preta
com objetos de prata.
A noite se aproxima.
Você pediu chocolate
veio na bandeja
os biscoito meio moles.
Faz-se o gesto de afastar.
cinco jornais amarfanhados
de cima do pano claro do sofá.
Que fazer com a tomada solta
a lâmpada queimada
o passepartout amarelecido?
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
FARS
Foi há tanto tempo e entre amores
decisivos
cataclismas
criações confinamentos jaulas
aeronaves
trens.
Foi antes das exposições de motivos.
Houve uma época
tão descansada em que
desde que se tivesse
uma janela em movimento
ele era imagem
deslizando ante folhas.
Se estendia embaixo de árvores
entrava em corredores
saía de portas.
Na areia ele era
as manhãs do desejo mais difuso.
Quando havia cinza no mar
era ele que estava
(de sueter)
na antepenumbra molhada.
Quando era noite
ele era quase raiva, na espera.
Doce e nu, sentado no banquete
numa horta de alfaces
sonhei com ele esta noite.
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
CORTEJO
Tendo estado
toda uma tarde
ouvindo
um tempo branco
sentindo dedos de água
descidos da noite.
Figuras
surgem paralelas
como saídas agora
da cal da parede.
Ali onde a sombra joga
na brisa de outra água.
De perto,
a superfície do muro
pára:
distração.
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
EDIFÍCIO
Veio no cartão postal da ponte
aquela luz branca demais brumosa
e de repente me vi
diante. do mesmo edifício branco
corpos se separando
na maresia
Marcadores:
vera pedrosa martins de almeida
Narciso no país das maravilhas
- "A maioria dos objetos são drogas: satisfazem um
anseio parecido com o do toxicômano"
-=-
ESSE É o subtítulo de um estudo publicado recentemente
(2006) pela Routledge, "The Self Psychology of Addiction and its
Treatment" (a psicologia-do-self da adicção e de seu tratamento). Os
autores, Richard Ulman e Harry Paul, são psicanalistas (da psicologia do self,
a escola de Heinz Kohut), terapeutas de toxicômanos e eles mesmos drogadictos
em remissão.
O estudo, embora estritamente clínico, propõe uma visão da
toxicomania que, ao meu ver, vale como interpretação geral da modernidade.
Explico.
Na laboriosa tentativa de encontrar um lugar no mundo, cada
um de nós se alimenta de duas fontes: 1) as aspirações, as normas e os brasões
transmitidos por nossos ascendentes, coisas que podem nos dar a sensação de que
temos uma missão na vida; 2) o amor, mais ou menos incondicional, que nos
acolhe e agasalha nos primórdios de nossa existência permitindo, aliás, que ela
vingue.Em suma: legados paternos e cuidados maternos (é óbvio que qualquer um
pode fazer função de pai ou de mãe).
Ora, na modernidade, bebemos sobretudo na segunda fonte. Por
isso, somos todos narcisos, ou seja, mais preocupados em sermos gostados,
amados e admirados pelos outros do que com deveres e princípios.
Problema: em geral, o modelo do amor graças ao qual seríamos
"alguém" (que sempre significa "alguém muito especial") é o
momento em que, pendurados ao peito materno, ou melhor, com a mãe pendurada aos
nossos lábios, estaríamos ao centro de um mundo controlado por nós: basta
chamar, chorar etc. para que ela apareça e nos faça felizes.
Logicamente, com esse sonho narcisista encravado no nosso
âmago, torna-se difícil lidar com separações, frustrações etc. E, infelizmente,
o mundo é um pouco mais cruel do que a mãe-padrão e sempre muito mais cruel do
que a mãe mítica e escrava que gostaríamos de ter tido.
Como aprendemos a encarar perdas, danos e fracassos? Quem
lia as tiras de Charlie Brown, de Charles Schultz, deve se lembrar do cobertor
que Linus carregava sempre consigo: quando as coisas não iam bem, ele agarrava
o cobertor e chupava o dedo; era seu jeito de reencontrar, momentaneamente, a
felicidade perdida. O cobertor de Linus é um exemplo perfeito do que D. W.
Winnicott, um grande psicanalista, chamou de "objetos transicionais":
são objetos inanimados, mas que representam um amor do qual não conseguimos
ainda nos separar.
Eles funcionam como o lápis entre os dentes do fumante que
quer parar de fumar: não substitui o cigarro, mas, na luta para deixar o vício,
oferece conforto nas crises de abstinência. Ou como a mamadeira da noite quando
o desmame acabou há tempos, mas ainda bate, digamos assim, uma "nostalgia
amorosa".
À força de brincar com cobertores e chupetas, a gente
deveria aprender a 1) dispensar cobertores e chupetas, 2) lidar com a
precariedade da presença e do amor dos outros. Mas não é tão simples assim, até
porque, nessa tarefa, o mundo não nos ajuda. Narciso vive no país das
maravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o
seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admiração e (por que não) a
inveja de todos. E alcançá-los é fácil -basta comprar: chocolate, relógios,
charutos ou pacotes de férias.
Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de
objetos "transicionais" que as representem? Os objetos do consumo são
a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto.
As drogas propriamente ditas oferecem algumas vantagens
marginais: são baratas e, graças à crise de abstinência, garantem a ilusão de
dominar perfeitamente a alternância de insatisfação e contentamento. Mas, na
verdade, para Narciso no país das maravilhas, qualquer objeto de consumo serve.
Poderia ser o melhor dos mundos, se não fosse por dois
detalhes. 1) Se hesito entre um carro e uma amizade ou um amor, é bem provável
que minha experiência afetiva seja miserável; 2) se espero a felicidade dos
objetos, desaprendo a agir e a desejar. No próximo domingo é a primeira fase da
Fuvest, e passei o ano dormindo no cursinho? Não é o caso de me desesperar, vou
para o shopping comprar um sapato simplesmente "divino".
Agora, falando sério, por que se opor à liberação das
drogas? Afinal, a maioria dos objetos em venda livre satisfaz, no fundo, um
anseio parecido com o do toxicômano. Relaxe e goze...
CONTARDO CALLIGARIS, in Folha de São Paulo (22/11/2007)
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