Entrevista especial com Bernardo Ricupero
21 Novembro 2007
O pensamento sociológico brasileiro do século passado
parecia compreender as mudanças pela qual a estrutura da sociedade passava.
Cinco décadas depois, esse pensamento tomou novos rumos e parece ter descartado
a produção intelectual daquela geração de sociólogos e estudiosos do Brasil. Em
Sete lições sobre as interpretações do Brasil (São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2007), Bernardo Ricupero reflete sobre os meandros da formação do
pensamento social e político brasileiro, organizando as idéias centrais dos
principais pensadores da nossa sociedade. “O Brasil continua a ser um enigma, o
que provavelmente faz com que ainda sintamos a necessidade de voltar aos
autores que enfrentaram essa questão”, destacou Ricupero nesta entrevista que
segue, realizada por e-mail.
Bernardo Ricupero é sociólogo graduado pela Universidade de
São Paulo onde também realizou mestrado e doutorado em ciência política. É
vice-presidente da Associação Editorial Humanitas, pesquisador do Núcleo de
Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento (NADD) e, também, é
professor da USP. É autor de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no
Brasil (São Paulo: Editora 34, 2000) e O romantismo e a idéia de nação no
Brasil (1830 - 1870) (São Paulo: Martins Fontes, 2004).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que tipo de reflexão podemos fazer hoje sobre
o pensamento sociológico e político brasileiro se, desde que saímos da
ditadura, passamos por governos tão diferentes um do outro e que parecem nunca
satisfazer totalmente o povo?
Bernardo Ricupero - Não deixa de ser interessante perceber
que o tipo de trabalho que analiso no livro – as chamadas “interpretações do
Brasil” – também surge de uma insatisfação, posterior à proclamação da
República. Autores como Oliveira Vianna (1) notam o descompasso entre
proclamações grandiosas, que deveriam garantir a “coisa pública”, e a
persistência de práticas mesquinhas e particularistas. Vão, então, se lançar a
realizar grandes explicações do País, espécie de livro que não existiu durante
o Império. Outro momento de crise – o pós-1930 – será o mais fecundo para as
“interpretações do Brasil”. Não por acaso, são nesses anos que Gilberto Freyre
(2), Sérgio Buarque de Holanda (3) e Caio Prado Jr. (4) escrevem seus
principais livros.
Diria, portanto, que as crises têm se revelado momentos
especialmente frutíferos para nos pensarmos. É como se nessas situações
fossemos obrigados a nos perguntar: quem somos e o que queremos ser?
IHU On-Line - Você analisa o pensamento dos principais
estudiosos da sociedade e política brasileira. Como acha que Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado veriam, hoje, a educação, a sociedade
e a política feita por nós?
Bernardo Ricupero - Um ponto que esses autores e outros,
como Caio Prado Jr., Raymundo Faoro (5) e Florestan Fernandes (6), destacam é
como nossa história é feita sem rupturas significativas com o passado. Têm,
porém, diferentes perspectivas teóricas e políticas para analisar o fenômeno.
Assim, o marxista Caio Prado Jr. e o cepalino Celso Furtado (7) destacam a
grande continuidade entre a orientação econômica da colônia e da nação que
surgirá do pós-independência, que faz com que parte significativa da produção e
da vida brasileira estejam voltadas para fora. Já a análise de Sérgio Buarque
de Holanda é mais culturalista, insistindo que a proximidade das relações
sociais torna difícil constituir democracia e qualquer ordem mais racional no
Brasil. Raymundo Faoro, por sua vez, usando categorias weberianas: acredita que
um Estado patrimonialista, cuja origem remontaria a Portugal, oprimiria a
sociedade. A postura de Gilberto Freyre é, porém, diferente da dos demais
autores, ao encarar de maneira positiva o patriarcalismo que teria se formado
na colônia e que estaria desaparecendo com a urbanização.
IHU On-Line - Neste atual momento, o que é o Brasil?
Bernardo Ricupero - O Brasil continua a ser um enigma, o que
provavelmente faz com que ainda sintamos a necessidade de voltar aos autores
que enfrentaram essa questão. Mas talvez a melhor sugestão seja mesmo a do Tom
Jobim (8): “o Brasil não é para principiantes”.
IHU On-Line - Como você vê a influência do capitalismo nas
lutas políticas ocorridas no Brasil nestes últimos anos?
Bernardo Ricupero - Como Caio Prado Jr., diria que o Brasil
se forma no quadro do aparecimento do capitalismo como sistema mundial de
produção de mercadorias. É este o “sentido” de nossa colonização: produzir, em
grandes unidades trabalhadas pelo braço escravo, bens demandados pelo mercado
externo. As principais determinações da vida brasileira continuam a se dar pelo
capitalismo mundial, é verdade que transformado. Talvez o mais preocupante é
que hoje o horizonte da formação da nação – algo tão presente para a maior dos
autores com os quais trabalhei no livro – tenha se perdido...
IHU On-Line - Qual é a importância de retormarmos o
pensamento de certos pesquisadores da sociedade brasileira, para a entendermos
hoje?
Bernardo Ricupero - Retomo o que disse antes: nossa história
é uma história feita sem rupturas com o passado. Assim, em boa medida nossos
problemas também são os problemas do passado, com a agravante que não deixam de
surgir novos. Nesses termos, as questões colocadas por Oliveira Vianna,
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e
Florestan Fernandes continuam, em boa medida, atuais. Ainda hoje, não podemos
deixar de levar em conta problemas como a artificialidade de nossas
instituições, os efeitos da proximidade de nossas relações sociais, a
orientação da economia voltada para fora das necessidades de nossa população;
questões essas que foram levantados por esses autores.
Notas:
(1) Francisco José de Oliveira Vianna foi um professor,
jurista, historiador e sociólogo brasileiro, imortal da Academia Brasileira de
Letras. Suas obras, versando sobre a formação do povo brasileiro, tem o mérito
de ser das primeiras que tentaram abordar o tema sob um prisma sociológico e
diferenciado. Entretanto, a crítica que hoje é feita diz do cunho eminentemente
conservador das mesmas. Como jurista, especializou-se no Direito do trabalho,
ramo então nascente no Brasil, que ajudou a consolidar, além de haver sido o
organizador da legislação que criou o imposto sindical.
(2) Gilberto de Mello Freyre foi um sociólogo, antropólogo e
escritor brasileiro. E considerado um dos grandes nomes da história do Brasil.
Freyre estudou na Universidade de Columbia nos Estados Unidos, onde conheceu
Franz Boas, sua principal referência intelectual. Seu primeiro e mais
importante livro é Casa-grande & senzala, publicado no ano de 1933. Em
1946, Gilberto Freyre é eleito pela UDN para a Assembléia Constituinte e, em
1964, apóia o movimento cívico-militar que derruba João Goulart.
(3) Sérgio Buarque de Holanda foi um dos mais importantes
historiadores brasileiros. Publicou em
1945 e 1957, respectivamente, Monções e Caminhos e fronteiras, que consistem em
coletâneas de textos sobre a expansão oeste da colonização da América
Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. Viveu na Itália entre 1953 e 1955,
onde esteve a cargo da cátedra de estudos brasileiros da Universidade de Roma.
Em 1957, trabalhou na USP. O concurso para esta vaga motivou-o a escrever Visão
do paraíso, livro que publicou em 1958, no qual analisa aspectos do imaginário
europeu à época da conquista do continente americano. A partir de 1960, passou
a coordenar o projeto da História Geral da Civilização Brasileira. Em 1962,
assumiu a presidência do recém-fundado Instituto de Estudos Brasileiros. Entre
1963 e 1967, foi professor convidado em universidades no Chile e nos Estados
Unidos e participou de missões culturais da Unesco em Costa Rica e Peru. Em
1969, num protesto contra a aposentadoria compulsória de colegas da USP pelo
então vigente regime militar, decidiu encerrar a sua carreira docente. A
revista IHU On-Line número 205 foi dedicada a uma análise, por meio de entrevistas,
sobre a sua obra Raízes do Brasil.
(4) Caio da Silva Prado Júnior foi um historiador, geógrafo,
escritor, político e editor brasileiro. As suas obras inauguraram, no país, uma
tradição historiográfica identificada com o marxismo, buscando uma explicação
diferenciada da sociedade colonial brasileira. Em 1942, publicou o clássico
Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia, cujo objetivo inicial era traçar o
quadro de evolução histórica brasileira. Inicial, pois seria dividida em
partes, já visto que o primeiro livro versa sobre o período colonial, contudo,
as outras partes jamais foram escritas pelo autor. Foi eleito deputado estadual
pelo Partido Comunista Brasileiro (1945) e constituinte em 1947, tendo o seu
mandato sido cassado quando da decretação da ilegalidade do partido.
(5) Raymundo Faoro foi um escritor, advogado, cientista
político e historiador brasileiro. É autor de Os donos do poder, obra que
aponta o período colonial brasileiro como a origem da corrupção e burocracia no
País, colonizado por Portugal, então um Estado absolutista. De acordo com o
autor, toda a estrutura patrimonialista foi trazida para cá. No entanto,
enquanto isso foi superado em outros países, acabou sendo mantido no Brasil,
tornando-se a estrutura de nossa economia política. Faoro conclui que o que se
teve no Brasil foi um capitalismo politicamente orientado, conceito este de
inspiração weberiana. Negando-se em atribuir um papel hipostasiado à economia
com relação à política, Faoro no País uma forma pré-capitalista. Esta
característica pré-capitalista, no entanto, ainda será entendida no interior do
pensamento weberiano em que capitalismo é definido como uma aquisição racional
de lucros burocraticamente organizada, diferente do capitalismo politicamente
orientado em que tal aquisição será direcionada por interesses dos Estado e da
sua concorrência com outros estados.
(6) Florestan Fernandes foi um sociólogo e político
brasileiro. Nas obras em que defendeu, Florestan constrói a estrutura da tribo
dos Tupinambá, já desaparecida na época, por meio de documentos de viajantes.
Concluído o doutorado, Florestan passou a livre-docente da USP na cátedra de
Sociologia I, e posteriormente, tornou-se catedrático. Devido ao seu
engajamento na universidade, foi perseguido pela ditadura militar e foi cassado
com base no Ato Institucional nº 5. Fugiu então em exílio, em 1969, para o
Canadá, aonde assumiu lugar de professor de Sociologia na Universidade de
Toronto.
(7) Celso Monteiro Furtado foi um importante economista
brasileiro. Suas idéias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento
divergiram das doutrinas econômicas dominantes em sua época e estimularam a
adoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia. Na
década de 1950, Furtado presidiu o CEPAL-BNDES, que elaborou um estudo sobre a
economia brasileira que serviria de base para o Plano de Metas do governo de
JK. Mais tarde, foi convidado pelo professor Nicholas Kaldor ao King`s College
da Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde escreveu Formação econômica do
Brasil, clássico da historiografia econômica brasileira. Retornando ao Brasil,
assumiu uma diretoria do BNDE e participou da criação, em 1959, da
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Em 1962, no governo
João Goulart, foi nomeado o primeiro Ministro do Planejamento, elaborando o
Plano Trienal. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos
cassados por dez anos. De 1986 a 1988 foi o ministro da Cultura do governo José
Sarney.
(8) Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim foi um
compositor, maestro, pianista, cantor, arranjador e violonista brasileiro. É
considerado um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores do
movimento da Bossa Nova. Tom Jobim é um dos nomes que melhor representa a
música brasileira na segunda metade do século XX e é praticamente uma
unanimidade entre críticos e público, em termos de qualidade e sofisticação
musical.
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