terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O pensamento sociológico brasileiro: uma reflexão.


 Entrevista especial com Bernardo Ricupero


21 Novembro 2007
O pensamento sociológico brasileiro do século passado parecia compreender as mudanças pela qual a estrutura da sociedade passava. Cinco décadas depois, esse pensamento tomou novos rumos e parece ter descartado a produção intelectual daquela geração de sociólogos e estudiosos do Brasil. Em Sete lições sobre as interpretações do Brasil (São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2007), Bernardo Ricupero reflete sobre os meandros da formação do pensamento social e político brasileiro, organizando as idéias centrais dos principais pensadores da nossa sociedade. “O Brasil continua a ser um enigma, o que provavelmente faz com que ainda sintamos a necessidade de voltar aos autores que enfrentaram essa questão”, destacou Ricupero nesta entrevista que segue, realizada por e-mail.

Bernardo Ricupero é sociólogo graduado pela Universidade de São Paulo onde também realizou mestrado e doutorado em ciência política. É vice-presidente da Associação Editorial Humanitas, pesquisador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento (NADD) e, também, é professor da USP. É autor de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil (São Paulo: Editora 34, 2000) e O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830 - 1870) (São Paulo: Martins Fontes, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que tipo de reflexão podemos fazer hoje sobre o pensamento sociológico e político brasileiro se, desde que saímos da ditadura, passamos por governos tão diferentes um do outro e que parecem nunca satisfazer totalmente o povo?

Bernardo Ricupero - Não deixa de ser interessante perceber que o tipo de trabalho que analiso no livro – as chamadas “interpretações do Brasil” – também surge de uma insatisfação, posterior à proclamação da República. Autores como Oliveira Vianna (1) notam o descompasso entre proclamações grandiosas, que deveriam garantir a “coisa pública”, e a persistência de práticas mesquinhas e particularistas. Vão, então, se lançar a realizar grandes explicações do País, espécie de livro que não existiu durante o Império. Outro momento de crise – o pós-1930 – será o mais fecundo para as “interpretações do Brasil”. Não por acaso, são nesses anos que Gilberto Freyre (2), Sérgio Buarque de Holanda (3) e Caio Prado Jr. (4) escrevem seus principais livros.

Diria, portanto, que as crises têm se revelado momentos especialmente frutíferos para nos pensarmos. É como se nessas situações fossemos obrigados a nos perguntar: quem somos e o que queremos ser?

IHU On-Line - Você analisa o pensamento dos principais estudiosos da sociedade e política brasileira. Como acha que Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado veriam, hoje, a educação, a sociedade e a política feita por nós?

Bernardo Ricupero - Um ponto que esses autores e outros, como Caio Prado Jr., Raymundo Faoro (5) e Florestan Fernandes (6), destacam é como nossa história é feita sem rupturas significativas com o passado. Têm, porém, diferentes perspectivas teóricas e políticas para analisar o fenômeno. Assim, o marxista Caio Prado Jr. e o cepalino Celso Furtado (7) destacam a grande continuidade entre a orientação econômica da colônia e da nação que surgirá do pós-independência, que faz com que parte significativa da produção e da vida brasileira estejam voltadas para fora. Já a análise de Sérgio Buarque de Holanda é mais culturalista, insistindo que a proximidade das relações sociais torna difícil constituir democracia e qualquer ordem mais racional no Brasil. Raymundo Faoro, por sua vez, usando categorias weberianas: acredita que um Estado patrimonialista, cuja origem remontaria a Portugal, oprimiria a sociedade. A postura de Gilberto Freyre é, porém, diferente da dos demais autores, ao encarar de maneira positiva o patriarcalismo que teria se formado na colônia e que estaria desaparecendo com a urbanização.

IHU On-Line - Neste atual momento, o que é o Brasil?

Bernardo Ricupero - O Brasil continua a ser um enigma, o que provavelmente faz com que ainda sintamos a necessidade de voltar aos autores que enfrentaram essa questão. Mas talvez a melhor sugestão seja mesmo a do Tom Jobim (8): “o Brasil não é para principiantes”.

IHU On-Line - Como você vê a influência do capitalismo nas lutas políticas ocorridas no Brasil nestes últimos anos?

Bernardo Ricupero - Como Caio Prado Jr., diria que o Brasil se forma no quadro do aparecimento do capitalismo como sistema mundial de produção de mercadorias. É este o “sentido” de nossa colonização: produzir, em grandes unidades trabalhadas pelo braço escravo, bens demandados pelo mercado externo. As principais determinações da vida brasileira continuam a se dar pelo capitalismo mundial, é verdade que transformado. Talvez o mais preocupante é que hoje o horizonte da formação da nação – algo tão presente para a maior dos autores com os quais trabalhei no livro – tenha se perdido...

IHU On-Line - Qual é a importância de retormarmos o pensamento de certos pesquisadores da sociedade brasileira, para a entendermos hoje?

Bernardo Ricupero - Retomo o que disse antes: nossa história é uma história feita sem rupturas com o passado. Assim, em boa medida nossos problemas também são os problemas do passado, com a agravante que não deixam de surgir novos. Nesses termos, as questões colocadas por Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e Florestan Fernandes continuam, em boa medida, atuais. Ainda hoje, não podemos deixar de levar em conta problemas como a artificialidade de nossas instituições, os efeitos da proximidade de nossas relações sociais, a orientação da economia voltada para fora das necessidades de nossa população; questões essas que foram levantados por esses autores.

Notas:

(1) Francisco José de Oliveira Vianna foi um professor, jurista, historiador e sociólogo brasileiro, imortal da Academia Brasileira de Letras. Suas obras, versando sobre a formação do povo brasileiro, tem o mérito de ser das primeiras que tentaram abordar o tema sob um prisma sociológico e diferenciado. Entretanto, a crítica que hoje é feita diz do cunho eminentemente conservador das mesmas. Como jurista, especializou-se no Direito do trabalho, ramo então nascente no Brasil, que ajudou a consolidar, além de haver sido o organizador da legislação que criou o imposto sindical.

(2) Gilberto de Mello Freyre foi um sociólogo, antropólogo e escritor brasileiro. E considerado um dos grandes nomes da história do Brasil. Freyre estudou na Universidade de Columbia nos Estados Unidos, onde conheceu Franz Boas, sua principal referência intelectual. Seu primeiro e mais importante livro é Casa-grande & senzala, publicado no ano de 1933. Em 1946, Gilberto Freyre é eleito pela UDN para a Assembléia Constituinte e, em 1964, apóia o movimento cívico-militar que derruba João Goulart.
  
(3) Sérgio Buarque de Holanda foi um dos mais importantes historiadores brasileiros.  Publicou em 1945 e 1957, respectivamente, Monções e Caminhos e fronteiras, que consistem em coletâneas de textos sobre a expansão oeste da colonização da América Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII. Viveu na Itália entre 1953 e 1955, onde esteve a cargo da cátedra de estudos brasileiros da Universidade de Roma. Em 1957, trabalhou na USP. O concurso para esta vaga motivou-o a escrever Visão do paraíso, livro que publicou em 1958, no qual analisa aspectos do imaginário europeu à época da conquista do continente americano. A partir de 1960, passou a coordenar o projeto da História Geral da Civilização Brasileira. Em 1962, assumiu a presidência do recém-fundado Instituto de Estudos Brasileiros. Entre 1963 e 1967, foi professor convidado em universidades no Chile e nos Estados Unidos e participou de missões culturais da Unesco em Costa Rica e Peru. Em 1969, num protesto contra a aposentadoria compulsória de colegas da USP pelo então vigente regime militar, decidiu encerrar a sua carreira docente. A revista IHU On-Line número 205 foi dedicada a uma análise, por meio de entrevistas, sobre a sua obra Raízes do Brasil.

(4) Caio da Silva Prado Júnior foi um historiador, geógrafo, escritor, político e editor brasileiro. As suas obras inauguraram, no país, uma tradição historiográfica identificada com o marxismo, buscando uma explicação diferenciada da sociedade colonial brasileira. Em 1942, publicou o clássico Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia, cujo objetivo inicial era traçar o quadro de evolução histórica brasileira. Inicial, pois seria dividida em partes, já visto que o primeiro livro versa sobre o período colonial, contudo, as outras partes jamais foram escritas pelo autor. Foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (1945) e constituinte em 1947, tendo o seu mandato sido cassado quando da decretação da ilegalidade do partido.

(5) Raymundo Faoro foi um escritor, advogado, cientista político e historiador brasileiro. É autor de Os donos do poder, obra que aponta o período colonial brasileiro como a origem da corrupção e burocracia no País, colonizado por Portugal, então um Estado absolutista. De acordo com o autor, toda a estrutura patrimonialista foi trazida para cá. No entanto, enquanto isso foi superado em outros países, acabou sendo mantido no Brasil, tornando-se a estrutura de nossa economia política. Faoro conclui que o que se teve no Brasil foi um capitalismo politicamente orientado, conceito este de inspiração weberiana. Negando-se em atribuir um papel hipostasiado à economia com relação à política, Faoro no País uma forma pré-capitalista. Esta característica pré-capitalista, no entanto, ainda será entendida no interior do pensamento weberiano em que capitalismo é definido como uma aquisição racional de lucros burocraticamente organizada, diferente do capitalismo politicamente orientado em que tal aquisição será direcionada por interesses dos Estado e da sua concorrência com outros estados.

(6) Florestan Fernandes foi um sociólogo e político brasileiro. Nas obras em que defendeu, Florestan constrói a estrutura da tribo dos Tupinambá, já desaparecida na época, por meio de documentos de viajantes. Concluído o doutorado, Florestan passou a livre-docente da USP na cátedra de Sociologia I, e posteriormente, tornou-se catedrático. Devido ao seu engajamento na universidade, foi perseguido pela ditadura militar e foi cassado com base no Ato Institucional nº 5. Fugiu então em exílio, em 1969, para o Canadá, aonde assumiu lugar de professor de Sociologia na Universidade de Toronto.

(7) Celso Monteiro Furtado foi um importante economista brasileiro. Suas idéias sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiram das doutrinas econômicas dominantes em sua época e estimularam a adoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia. Na década de 1950, Furtado presidiu o CEPAL-BNDES, que elaborou um estudo sobre a economia brasileira que serviria de base para o Plano de Metas do governo de JK. Mais tarde, foi convidado pelo professor Nicholas Kaldor ao King`s College da Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde escreveu Formação econômica do Brasil, clássico da historiografia econômica brasileira. Retornando ao Brasil, assumiu uma diretoria do BNDE e participou da criação, em 1959, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Em 1962, no governo João Goulart, foi nomeado o primeiro Ministro do Planejamento, elaborando o Plano Trienal. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados por dez anos. De 1986 a 1988 foi o ministro da Cultura do governo José Sarney.

(8) Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim foi um compositor, maestro, pianista, cantor, arranjador e violonista brasileiro. É considerado um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores do movimento da Bossa Nova. Tom Jobim é um dos nomes que melhor representa a música brasileira na segunda metade do século XX e é praticamente uma unanimidade entre críticos e público, em termos de qualidade e sofisticação musical.


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