Há muito que os homens saíram da selva. Não lhes servia
tanta incerteza, tanto perigo de vida. Aos poucos, com avanços e recuos,
organizaram-se para autodefesa, assistência mútua, caça. Criaram normas de
funcionamento coletivo do grupo, muitas vezes tácitas, outras bem expressas.
Para evitar aproveitamentos egoístas. Para que o grupo fosse o lar de cada um.
E afastaram-se da selva e das suas práticas ferozes.
Sem que o percebessem, os animais observavam-nos, curiosos,
e acabaram por conseguir copiar o Conselho da Tribo. Pelo menos em alguns dos
seus aspetos formais. Chamaram-lhe o Conselho da Selva e funciona desde então.
Reúne-se uma vez por ano, ou a qualquer momento, em sessão extraordinária, a
pedido de algum grupo. Geralmente, é apresentado um problema, levantada uma
questão, feita uma queixa ou uma reivindicação. Segue-se alguma troca de
ideias, muita algazarra, mas por fim o Conselho costuma concluir com uma
declaração por maioria absoluta.
Muitas e muitas reuniões do Conselho já aconteceram ao longo
dos milénios. Da maioria não restou memória, mas de outras foram guardados
registos, geralmente em cascas de árvores ou numa escrita indecifrável em
campos pedregosos. Por exemplo, há uns sessenta anos, foi realizada uma reunião
a pedido dos castores. Decorreu numa mata contígua a um rio nórdico. Dado o
início, um castor barbado com ar envelhecido, tomou a palavra:
— Caros companheiros silvícolas, estamos fartos de cortar e
transportar árvores de sol a sol, sem a ajuda de ninguém. Há milénios que o
fazemos, sem lamúrias da nossa parte, nem razão de queixa, da vossa. As
barragens vão-se construindo, com esforço nosso, que ninguém reconhece, mas com
grande beneficio para todos. Continuaríamos a fazê-lo sem queixumes, se as
condições não estivessem a mudar. Mas estão. Os nossos filhos precisam de
acompanhamento, as nossas famílias precisam de atenção. Os tempos são de
cuidados e apoio ao desenvolvimento dos jovens e de maior convívio familiar.
Não podemos, não queremos, chegar a casa tão tarde e de ânimo derrubado por
tanto trabalho. Daí, que chegámos a esta situação limite, em que temos de ser
bem claros. Das duas, uma: ou algum dos excelentíssimos grupos aqui presentes
se compromete a ajudar-nos a construir as barragens, ou não cortamos nem mais
um galho depois das 17 horas. Gostaria que refletissem bem se querem os rios
represados, de modo a servirem todos, ou se querem deixar a água ir-se embora.
Gerou-se um burburinho, mas que era habitual em cada
Conselho. Algumas poucas vozes manifestaram-se a favor dos castores, mas a
grande maioria estava até escandalizada com a desfaçatez daquela reivindicação.
Ao fim de pouco mais de meia hora estava o consenso formado. Um gato gordo e
lanudo foi o encarregado de resumir a superior posição conjunta do Conselho:
— Oiçam, amigos dentolas — declarou ele —, não venham para
aqui com essa moda dos homens, das oito horas de trabalho, que aqui não há
regras nem regulações; aqui é a selva!
A reunião foi dada por encerrada e não se falou mais nisso.
Há quarenta anos, foi a vez da passarada granívora pedir a
reunião do Conselho. Decorreu num campo de centeio ressequido e já ceifado. Um
pardal empertigado, mas nervoso, explicou a reivindicação da classe:
— Como sabem, recentes acontecimentos da área humana e suas
decorrências provocaram uma grave rutura na já enfraquecida produção agrícola.
Semeou-se muito menos, pelo que houve poucas searas. Temos estado a viver à
míngua. Esquadrinhamos campos e mais campos, mas, entre grãos soltos e
respigos, não conseguimos enganar a fome. O que reivindicamos é uma mesada, um
papo mínimo de grãos, para podermos viver com dignidade, sem andar a pedir nem
a roubar.
Como sempre, muito burburinho, alguma discussão e a sábia
decisão do Conselho.
— Ó companheiros dos bicos direitos — explicou o falcão
encarregado de divulgar a determinação —, vocês até podem ter muita razão, mas
não se percebe aonde se iria armazenar tanto grão, quem iria administrá-lo, nem
quem iria buscá-lo, nem aonde... Um tal pacto social obrigaria à criação de uma
organização enorme, que iria agravar o problema. Além disso, vêm aqui fazer
reivindicações, mas nenhum ser que viva na selva pode reivindicar quaisquer
direitos. Isso de salários mínimos são modas dos homens. Aqui, cada um que
trate de si; é a selva. Quem não aguenta arreia… Por que não se tornam
carnívoros?
A reunião terminou com muitos piados tristes e outros
irados, mas a vida na selva prosseguiu como antes.
Outras vezes se reuniu entretanto o Conselho da Selva, mas o
plenário doano passadofoi especialmente participado e demorado. Fora solicitado
por um amplo conjunto de animais, com as seguintes queixas:
— Tem havido muitos incêndios, há zonas em que o pasto
desapareceu, mas há outras que se mantêm férteis — expôs um coelho. Seria
sensato que se reservasse uma parte do pasto das zonas fartas, para apoiar as
que o não têm.
Antes que houvesse oportunidade de se iniciar a vozearia, o
presidente da mesa — um javali —, mandou avançar o segundo orador.
— Há muitos rios poluídos — alegou um sável —, os nossos
irmãos têm que se deslocar para águas não poluídas, mas onde a comida não dá
para todos — os que estão e os que chegam. Seria inteligente criar uma bolsa de
comida para distribuir pelos carenciados.
Novo gesto rápido do javali, novo orador.
— A população cresceu, mas cada vez são menos as zonas
livres de pesticidas, que envenenam larvas, insetos e minhocas — explicou um
melro. — Os recursos, como estão distribuídos, não dão para todos. Deveríamos
encontrar uma solução que permitisse que todos pudéssemos viver. Não faz
sentido, nos tempos tão civilizados em que estamos, que uns vivam bem, sem
dificuldades, sem preocupações de aonde ir buscar a comida, e que outros
sobrevivam cada dia na angústia da fome.
“Sabem o que ouço dizer aos homens? — continuou o melro. —
Como é público, eles inventaram máquinas para tudo, de modo que muitos serviços
são feitos por elas, e os trabalhos que exigem mão humana já não chegam para
todos. Não se trata de não quererem trabalhar; é que ora uns, ora outros,
muitos são obrigados a ficar sem trabalho. E os subsídios de desemprego, que
deviam tapar os buracos no sistema, afunilam e deixam muitos homens de fora. Em
risco de fome. Como nós. Ouço-os discutir e dizer que as sociedades humanas e
organizadas não deviam ser tão ferozes com os seus desempregados; que têm a
obrigação humanitária e lógica de criar condições de vida para todos; que
deviam inventar um sistema em que cada cidadão tivesse acesso a uma
distribuição mínima, só por estar vivo. Para se manter vivo. Quer trabalhasse
ou não. Se trabalhasse, juntaria essa remuneração extra ao tal rendimento
incondicional e poderia viver mais desafogado. Posso garantir-vos que eles
estão a pensar seriamente nisso. Mas, é claro, eles são inteligentes.
Gerou-se uma algazarra diluvial. O caso não era para menos e
suscitava o desagrado, quando não a revolta, de grande parte do auditório. Foi
precisa a intervenção áspera do presidente, para trazer alguma contenção à
reunião.
— Tanto quanto sei — disse um cão —, eles gostariam de
conseguir aplicar essa solução, mas não sabem aonde ir buscar tantos recursos
para distribuir por todos. Alguns dizem que reservando metade de todos os
rendimentos individuais, para distribuição equitativa geral, se conseguiria pôr
o modelo em funcionamento.
— Isso não faz nenhum sentido, na selva! — adiantou-se um
lobo. — Nós nascemos na selva e nela queremos continuar a viver. É na selva que
desenvolvemos o nosso estado natural. Alimentamo-nos, procriamos, sobrevivemos.
Conhecemos os nossos amigos, conhecemos os nossos inimigos, sabemos aonde procurar
comida, sabemos onde nos esconder. Nós devemos manter impoluta a nossa
natureza. Leis, direitos, proteções especiais só viriam desvirtuar-nos. A nossa
lei é a da sobrevivência, que não é uma lei; é um estado. Os mais fortes comem
os mais fracos, os mais espertalhões sobrevivem melhor do que os menos astutos.
Com genuinidade, com luta pela vida, com ferocidade e esperteza. E é assim que
deve ser.
Esta intervenção provocou um ribombar de aplausos e clamores
de entusiasmo, perante os olhares desanimados dos queixosos, e praticamente
determinou o parecer final do Conselho.
— Meus amigos — leu a coruja, muito compenetrada —, todos
sabemos que a vida é difícil para quem vive na selva e que por isso muitos
gostariam de experimentar soluções abstrusas, que lhes parecem boas, mas
sabemos que é o idealismo a falar. Sempre assim vivemos, sempre preferimos a
selva às malucas derivas dos homens. Não há nenhum homem que goste de viver na
selva mais do que nós. A selva é um ambiente natural. Não tem leis. A preocupação
que temos com os outros é se pertencem à nossa cadeia alimentar. E se os
comemos é sem rebates de consciência, sem hesitações, sem rancor. E ninguém
fica incomodado com isso. Cada um faz o que quer, se puder. Cada um tenta
sobreviver como pode. É o nosso amado modo de vida. Sabemos que pode parecer
cruel, mas tem a beleza inigualável da autorregulação. Nem todos vivem bem, nem
todos sobrevivem, mas é assim; é a selva.
Desde então, não tem havido reuniões extraordinárias do
Conselho.
Joaquim Bispo
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