quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

À CAROLINA HOMENAGEANDO MACHADO DE ASSIS



A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Machado de Assis

1

“São pensamentos idos e vividos”
Que tanto traduzindo vida e morte,
Permitem cada alento que conforte,
Trazendo dias mortos e esquecidos.

Assiduamente sigo a cada dia
Imensos turbilhões, momentos vagos,
E neles percebendo calmos lagos
Ou forte e inquestionável ventania.

Porquanto nos ensina a vida assim,
Errando e consertando e novo engodo,
A chuva traz alento e trama o lodo,
Regando ou destruindo algum jardim.

Libertos caminheiros, prisioneiros,
Farsantes tanto quanto verdadeiros.

2

“Pensamentos de vida formulados,”
Gerando contra-sensos e verdades,
Por vezes sonegando realidades,
Momentos em tormentos disfarçados.

Alçamos nossos últimos segundos
Em luzes variáveis ou sombrias,
No todo que destróis ou que recrias
Se mostram universos, tantos mundos.

Cadenciando a vida passo a passo,
Moldando uma verdade questionável,
O solo muitas vezes mais arável,
Traduz este plantio que desfaço.

Somando os meus acertos, meus enganos,
Mudando a cada instante velhos planos.

3

“Que eu, se tenho nos olhos malferidos”
Ainda continue a caminhada
Sabendo quão diversa seja a estrada
E nela se percebem mil sentidos,

Partícipe da festa feita em vida,
Sonoras discrepâncias me permito,
E quando se percebe ser finito
O mundo preparando a despedida

Servindo como ponto início e fim,
O precipício aguarda este tropeço,
Quem dera se tivesse um recomeço,
Só sei que nada sei, nem de onde vim.

Aguarda-me o vazio? Eternidade?
A dúvida transcende à realidade.

4

“E ora mortos nos deixa e separados”
Os mais complexos passos rumo ao que?
No quanto tanto creio e o quanto vê
Medonhos os abismos já traçados.

A neve ultrapassando algum inverno,
Calor adentra insano o meu outono,
O rumo vez em quando eu abandono,
E quando veraneio, mais hiberno.

Estranhas decisões, errôneos traços,
Mergulhos em vazios, cataclismo,
Ainda sem destino teimo e cismo,
Por mais que os pensamentos morram lassos,

Ardentes ou tão gélidas montanhas,
Perfazem nesta vida, minhas sanhas...

5

“Da terra que nos viu passar unidos”
Sequer o pó carrego nos meus pés,
Aonde se previra outras galés,
Momentos mais felizes são urdidos.

Esqueço-me da dor quando me entranho
Nos antros mais vorazes do prazer,
Mas logo depois disso posso ver
O quanto se perdeu em pouco ganho.

Edênico ou hedônico, portanto,
Dicotomias traço em cada verso,
E sei que quanto mais em mim imerso,
Maior será decerto o desencanto.

Desertos que criei, árida imagem,
Oásis não passando de miragem?

6

“Trago-te flores, - restos arrancados”
Dos meus momentos vários de emoção,
E neles adivinho se verão
Meus olhos novamente meus enfados.

Acrescentando o nada ao nada ser,
Perpetuando em mim cada vazio,
E quando do passado me recrio,
Pereço um pouco mais, e posso crer

No quanto se faz frágil uma existência
Certezas que não tenho nem terei,
Talvez ainda creia numa lei
Aonde possa haver luz, penitência.

Assaz maravilhosa a vida passa,
Por mais que tênue seja, qual fumaça...

7

“E num recanto pôs um mundo inteiro”
Num átimo, um mergulho ou cordilheira,
Abismos que encontrei, quer ou não queira
Traduzem variedade do tinteiro.

E sinto ser audaz enquanto medro,
Nefastas as manhãs, claras as noites,
Carinhos se misturam com açoites,
Transporto uma nobreza feita em cedro.

E quando em disparada perco o rumo,
Mesquinho, muitas vezes, me abandono,
E tendo necessários paz e sono
Errôneo caminheiro; não assumo.

Perfaço com percalços, mas acerto,
Gerando dentro em mim, caos e deserto.

8

“Fez a nossa existência apetecida”
O sonhar fabuloso ou tanto inglório,
O quanto se fazendo em torpe empório
Aquilo que pensei moldasse a vida,

Esgotam-se os caminhos por si sós,
E vastas as planícies, charcos tantos,
Por vezes mais profusos desencantos,
E neles vejo insólitos tais nós.

Apedrejado ou mesmo apedrejando,
Seguindo num hermético vagar,
Bebendo cada raio do luar,
Volvendo ao meu início em contrabando.

Esparsos versos, veios tão diversos,
Dispersos os meus tantos universos...

9

“Que, a despeito de toda a humana lida,”
Jamais se poderia crer na sorte,
Que tanto amaldiçoe e nos conforte,
Porquanto em treva e luz se faz urdida.

Ascetas ou profanos navegantes,
Espúrias criaturas, sacrossantas,
Diversidades ditam cores tantas
E nelas as belezas deslumbrantes.

Fantasmas de nós mesmos recriamos,
E temos a certeza de um incerto
Caminho que nos leve longe ou perto,
Das imaginações, servos ou amos.

Temíveis feras; somos, ou pacíficos
Retratos distorcidos e magníficos...

10

“Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro”
Enquanto algum farsante sentimento
Trazendo tempestade ou mesmo alento,
Macabro por ser claro e corriqueiro.

Aspectos tão diversos deste prisma,
E nele incomparáveis maravilhas,
Porquanto se percebem armadilhas,
Uma alma sem destino ainda cisma.

E tento ver após o que não creio,
E creio no que tanto se sonega,
A vida sendo assim, imensa e cega,
Proclama a cada passo outro receio.

E vejo-me espelhando no vazio,
Que tanto quanto posso, desafio...

11

“Trazer-te o coração do companheiro”
Depois de navegar mares imensos,
Às vezes dias calmos, frios, tensos,
Entranham nos meus olhos, vou inteiro.

Acasos são comuns, mas a desdita
Percebe-se no quanto se reluta,
A vida não passando de uma luta,
Verdade não se cala, um dia grita.

Sufoca-me deveras a gravata,
Disfarço uma nudez em rico terno,
Preparo a cada passo um novo inferno
Sabendo quanto a sorte é tão ingrata.

A queda se anuncia e desta escada
Degrau após degrau desvendo o nada...

12

“Aqui venho e virei, pobre querida,”
Trazer qualquer alento, um lenitivo,
Das ânsias do viver eu sobrevivo,
Por mais que dolorida seja a vida.

E traço sobre traços mais distintos
Caminhos tão diversos, mesmo fim.
Por vezes um demônio ou querubim
Obedecendo à luz de meus instintos.

Adentrando os umbrais do que não vejo
Escrevo com penúria, dor e glória
Aos poucos o resumo de uma história
Marcada pelo anseio e por desejo.

Só sei que no final venço e vencido,
Somente dos meus pés, um ledo olvido.

13

“Em que descansas dessa longa vida”
Após as velhas curvas costumeiras,
As chuvas que tu bebes, derradeiras,
E nelas com certeza tudo acida.

O parto se refaz em nova esfera?
É tudo o que desejo, esteja certo,
Mas quando o meu caminho eu já deserto,
Aonde se escondeu a primavera?

Esgarçam-se momentos dia a dia,
E traço do vazio esta esperança
Na qual o amanhecer novo se lança,
E a morte eternamente já se adia.

Pudesse desvendar cada segredo,
Mas como, se deveras nunca cedo?

14

“Querida, ao pé do leito derradeiro”
Somando os meus enganos e tormentas,
Enquanto com palavras apascentas
Do fim ainda tento e não me esgueiro.

Escarpas que venci, quedas terríveis,
Imensos precipícios, cordilheiras,
Assim ao desfiar minhas bandeiras,
Os dias se mostrando em vários níveis.

O peso se alivia, mas quem dera
Se todo o caminhar se resumisse
No quanto a própria história já desdisse
Gerando a imensidão da amarga fera,

Aonde se funéreo fez caminho,
Eternizando ali, último ninho...



Marcos Loures 

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