quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Libertinagem




by Jú Blasina

Tudo começou, como sempre – mensagem anônima no celular:

Sexta-feira – 21:00 hs
Você sabe o que e aonde....
O champagne é por tua conta.
A surpresa é por minha...
Ele sorriu, apagando imediatamente a mensagem – já fazia tempo, muito tempo, desde o último encontro. Tanto que a simples menção de “surpresa” associada com a lembrança de Val, seminua em meias 7/8, bastou para excitá-lo. Olhou discretamente as mesas ao redor – era hora de almoço, o escritório quase vazio, silencioso – o som de uma nova mensagem – “Ah, celular barulhento” ele resmunga fazendo ainda mais barulho na tentativa de ser discreto.
E então, garanhão?
Posso te considerar... dentro?
“Ah... cachorra sem vergonha” – ele ria, sem perceber que pensava alto, enquanto caminhava em direção ao banheiro, apagando, aflito, a nova mensagem. Lá passaria o resto do seu intervalo, lendo e apagando, lendo e apagando, sucessivamente, mais rápido, gradualmente mais excitado, lendo e apagando, lendo e ahh... pagando. Era hora de responder:
Confirmando:
Mesma hora, local, Pau – ops!
(risos) E não esqueça as meias!
Bjs - Cris

Ele passou o dia tão ansioso, tão absorto em pensamentos obscenos que quase se esqueceu de comprar o champagne. Tudo o que precisava levar era: um bom champagne, o corpo disposto e alguma imaginação – agora a lista estava completa!
Val sempre se encarregava dos detalhes – e como era boa nisso... Perfeccionista ao extremo! Ela e sua maleta hermeticamente organizada de onde saiam as mais diversas e inesperadas coisas. Segundo Cris, aquilo era o “chapéu mágico do sexo”. Mal sabia ele quanto tempo e dinheiro ela gastava para manter seu arsenal abastecido, atualizado e principalmente organizado. E ele ainda insistia em lembretes do tipo “não esqueça as meias” – uma piadinha interna, pois ela nunca esquecia nada.
Em cima da hora, ele chegou ao flat. Funcionava como um esconderijo secreto e compartilhado, que há meses alugavam para seus encontros – nunca ao acaso – apenas, sempre e somente mediante aviso por ela enviado, como havia ocorrido hoje pela manhã.
Ao abrir a porta, Cris notou as pequenas mudanças que renovavam o ambiente, “como sempre”. Cada vez que visitava o local, encontrava-o redecorado, habito que ela mantinha, não apenas com o flat – Val era cheia de surpresas e a ansiedade por encontrá-la o deixava louco...
Havia velas acesas espalhadas por toda a parte, iluminando e perfumando o ambiente. A música já estava tocando. Era algo envolvente, mas não apelativo “Moby? talvez”, pensou ele, largando o champagne no balde de gelo que o aguardava sobre a mesa de centro. Tirou o casaco, tentando aparentar tranqüilidade, até que ouviu o som do salto se aproximando – toc, toc, toc – virou-se e lá estava ela: espartilho, salto agulha e meias... ah... meias 7/8 pretas, arrastão.
O champagne esquentou e não foi o único: a combustão imediata daqueles corpos fez com que as roupas saltassem quase que espontaneamente. Depois de algum tempo, prazeroso tempo, até as amadas meias sumiram. O flat, antes tão arrumado, agora parecia ter sido atingido por um terremoto ou furacão. E de certa forma o foi. Lá estavam os sobreviventes, nus, enrolados em corpos e lençóis, bebendo o champagne já quente, cujo gelo havia ganhado outras finalidades durante o processo. Agora, recuperado o fôlego, conversavam sobre as supostas e postiças vidas que um apresentava de forma mais mirabolante ao outro. E entre mentiras e risadas recíprocas, as coisas pareciam funcionar – e satisfazer muito bem – a ambos.
“Mais barato que terapia” dizia ela às amigas
“Melhor que uma esposa ou prostituta qualquer” dizia ele a si mesmo.
Ao amanhecer, após dormir, comer, mentir, rir, banheira e sexo, em repedidas e desordenadas vezes, era chegada a hora de montar o “quebra-cabeças” do quarto.
— Viu minha camisa?
— Na sala – respondia ela, enquanto reorganizava sua maleta.
— Viu minha cueca?
— Hum... aqui! Toma aqui – alcançava ela, enquanto terminava de se vestir, de maneira muito mais comportada do que havia se apresentado na noite anterior.
— E minha meia, viu?
— Qual? Esta que está no seu ombro, Cris?
Ele riu — Esta também. E a outra?
Olharam em volta e nada da meia. Começou então a procura – ela revirava as cobertas já arrumadas, enquanto ele, parado, olhava para os móveis, sem mover um dedo, como se pudesse enxergar através deles – ela, agora de joelhos, procurava por todo o canto, atrás a cômoda, na poltrona, sob a cama.
— Achei!
Gritou ele, orgulhoso, de algum lugar da sala.
Ela permanecia ajoelhada no mesmo local, apreensiva com algo que trazia nas mãos.
Cris voltava ao quarto, já de meias, fechando a camisa, enquanto ela levantava lentamente – uma expressão fria, nenhuma palavra.
— O que foi Val? Ah, achou a tua meia também?
— Não.
— Como não? E o que é isso na tua mão? Parece até eu. Haha, te peguei agora, perdendo coisas!
Ela permanecia com o semblante fechado. Largou a meia 7/8 preta, vagarosamente, no centro da cama, sobre o lençol vermelho. Ainda sem captar o que estava acontecendo, ele se aproximou, analisando de perto a situação. Olhou para Val, para a meia, Val, meia, perguntando-se o porquê de tanto mistério, Val, meia, Val, meia... até que, enfim, percebeu! Quando seus olhos encontraram os dela, que o fitavam atentamente, não se sentia muito seguro quanto ao que dizer. Agarrava-se àquele silêncio, em busca de uma boa explicação, quando o silêncio foi rompido:
— E então, Cris? Caso não tenhas escutado, ou entendido, eu repito: Não, essa meia vagabunda não é e nunca foi minha. As minhas, já estão na maleta, e, além disso, coisas vagabundas não fazem o meu estilo, mas, pelo visto, fazem o teu, ou estou enganada?
Ele engoliu a seco, arregalou os olhos, “pensa rápido, pensa rápido... ah, merda! Ela sabe ou só tá blefando? Ah, merda! Melhor eu falar a verdade, dane-se”
— Não, eu não trouxe ninguém aqui, se é isso que tu tá insinuando.
— Ah, sim, claro! Então, acompanhe o meu raciocínio: Se essa meia não é minha, nem de outra qualquer, eu presumo que seja de quem?... tua?
Uma gota de suor ameaçava escorrer denunciando o pavor de Cris diante aquela afirmação. Tentando manter a calma, ele reavaliava a situação:
De um lado Val: vestida sobriamente, tailleur cinza, camisa branca, sapatos impecáveis, cabelo perfeitamente arrumado. De outro ele, Cris: calça ainda aberta, camisa mal abotoada, calçando um sapato só, cabelo bagunçado, barba mal feita. Entre eles, sobre a cama, aquela cama, naquele quarto que é dos dois, estava ela: aquela meia – maldita meia – que não podia pertencer a nenhum dos dois.
“É isso!” pensa ele “É o que ela espera que eu diga: a resposta lógica - é perfeita!”
— Não, claro que não é minha. É de uma amiga... Já faz um tempo, a gente não se encontrava mais, tu não ligavas nunca! Aconteceu... Não achei que isso fosse te incomodar tanto, afinal, a gente não tem compromisso... e foi só sexo.... e...
— Chega. Não preciso ouvir mais nada. Primeiro: “só sexo” é o que nós temos. Segundo: pouco me importa o que tu faz ou deixa de fazer aqui, na minha ausência, mas me incomodo, e muito, a tua falta de consideração, ao deixar os restos das tuas vagabundas espalhados pelo nosso quarto.
— Val... foi só uma meia!
— Pois é, Cris. Não é a perna que estava nela que me importa. É o teu descaso.
— Desculpa, mas como eu ia adivinhar?
— A gente não adivinha Cris, a gente pensa, organiza e se certifica de que tudo esteja perfeito.
Sabe o que isso me mostra, Cris? Essa meia é uma mancha no teu caráter!
Cris pensa: “Droga, parece até que ela sabe”
Val pensa: “Ótimo, acho que fui convincente”
—Tá certo Val, se é isso o que tu pensas... Eu já vou... tô atrasado para o trabalho. Vou juntar minhas “manchas” e te deixar aqui no teu “santuário” de organização e retidão.
— Ironia não vai ajudar agora, Cris. E DEIXA ESSA MEIA AÍ!
Gritou ela, enquanto ele, cuidadosamente, enrolava o precioso achado.
— Por quê? Não é minha... minha falta de caráter?
— É. E eu vou guardar, de recordação.
— Tu é louca, sabia? Gostosa, mas louca.
— E tu é burro, sabia, gostoso, mas burro.
Indignado, ele saiu, juntando suas coisas pelo caminho, bufando e batendo com as portas.
Já no carro Cris sente-se aliviado, extremamente aliviado, por ela ter engolido a mentira mais sensata. Apesar de todo o drama e ofensas, antes sair de um quarto com fama de mal caráter do que revelar o tamanho de sua paixão por meias 7/8 . Isso seria mais embaraçoso que qualquer coisa!
Ainda no flat Val joga-se em cima da cama, rindo e brincando com a meia, recém encontrada. Pega o telefone e manda uma mensagem. Dessa vez o remetente é outro:
Cherrie, sua cachorra!
Eu sei o que tu fez e sei que foi de propósito.
E sim, ele foi embora, mas só por enquanto...
E se quiser tua meia de volta: Vem pegar - hoje, 21hs.
Te espero faminta – E traga o champagne!

E assim, ambos seguiram, compartilhando um mesmo alívio ao cobrir as verdades impróprias, com um mesmo pensamento: “A meia de baixo da cama, não é minha”

Fonte Samizdat

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