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03 Dezembro 2019
A contribuição originalíssima de Caio Prado é a de que o
sentido do Brasil, o que nos tornamos, se encontra na colonização. Esse evento
– violento - nos definiu e nos aprisionou, escreve Cesar Sanson, professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eis o artigo.
Ninguém interpretou tão bem o Brasil, a essência de sua
formação social, como Caio Prado Jr. Retomar o pensamento caiopradiano em
tempos atuais é importante para compreender o que está em curso na sociedade
brasileira.
Policiais batendo em jovens encurraladas nas ruas de
Paraisópolis, indígenas sendo dizimados, direitos de trabalhadores sendo
pulverizados, Amazônia sendo queimada por ruralistas não se constituem em
pontos fora da curva, mas sim no leito ‘normal’ do que sempre fomos.
A contribuição originalíssima de Caio Prado é a de que o
sentido do Brasil, o que nos tornamos, se encontra na colonização. Esse evento
– violento - nos definiu e nos aprisionou.
O Brasil surge, diz o historiador-geógrafo-economista
paulista, como uma vasta empresa territorial voltada para fora e controlada de
fora. O sistema que aqui se montou, e até hoje não foi desmontado, se assenta
no tripé: grande propriedade, monocultura e trabalho escravo.
Em sua obra explicativa sobre o Brasil Formação do Brasil
Contemporâneo (1942), Caio Prado afirma: “Se vamos à essência da nossa formação
veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns
outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café
para o comércio europeu. Nada mais que isto” [1].
Continuamos séculos e décadas depois fornecedores: carne de
todo o tipo (bovina, frango, suína), minérios, soja, etanol... Fala-se
reprimarização de uma economia que nunca deixou de ser primária.
O sistema-colonização-empresa, sugere Caio Prado, se constituiu
numa violenta espoliação da natureza e de pessoas. O real interesse sempre foi
o da pilhagem das riquezas com o trabalho recrutado entre indígenas e negros
africanos importados. Foi o trabalho braçal escravo que derrubou, arou, lavrou,
plantou, colheu. Como recorda Giberto Freye, o negro era o faz-tudo: “escravos
para plantarem a cana; para a cortarem; para colocarem a recortada entre as
moendas impelidas a roda de água; limparem depois o sumo das caldeiras de
cocção; fazerem coalhar o caldo, purgarem e branquearem o açúcar nas formas de
barro; destilarem a aguardente” [2]. Ou ainda como diz Darcy Ribeiro, “o negro
era como um saco de carvão, acabou um, pega outro”.
Constituímo-nos, alerta Caio Prado, numa dualidade: Um setor
orgânico: sistema produtivo voltado para fora e um setor inorgânico: os que se
constituem como apêndice do processo produtivo. Esse sistema configurou a
inexistência de uma sociedade, não há integração entre produção e consumo
porque não há renda. Pior ainda: não há direitos.
O Brasil nasce com a negação de direitos. Aos pobres,
primeiro escravos, depois os trabalhadores rurais e hoje os que vivem nas
periferias foi negado o direito de terem direitos. Essa ‘originalidade’
perversa afirma Caio Prado nos impossibilitou de nos tornamos uma nação.
Há, porém, outra particularidade deletéria em nossa
formação: a violência das elites contra os mais pobres. A violência do Senhor
do engenho, dos coronéis, dos fazendeiros, dos patrões, dos banqueiros. Na
esteira de Caio Prado, quem dá ênfase a essa particularidade é Florestan
Fernandes para quem “a oligarquia rural comboiou os demais setores da classe
dominante, selecionando a luta de classes e a repressão do proletariado como
eixo da Revolução Burguesa no Brasil” [3].
O que Florestan diz é que as elites brasileiras carregam em
seu DNA a violência como prática e método contra os mais pobres, contra aqueles
que ameaçam os seus interesses. Essa recomposição de poder entre a oligarquia
rural atrasada e a burguesia conservadora resultou num Estado avesso e
refratário às demandas e participação popular.
Pobre, preto, favelado, trabalhador, indígena tem que ser
tratado a ferro e fogo. Servem apenas como mão de obra barata, hoje nem mais
isso, de um sistema que se reproduz. Nem a esquerda em seu pequeno respiro de
poder após séculos do sistema-colonização-empresa conseguiu trincar esse
modelo, sequer o arranhou.
Agora, passado essa lufada de sonho de um outro modelo,
retornamos ao que sempre fomos, um país em seu insuperável tripé: monocultura,
latifúndio e trabalho não mais escravo, mas precário.
Como diz Caio Prado ainda nos anos 1970, “deixamos de ser,
em nossos dias, o engenho e a ‘casa grande e senzala’ do passado, para nos
tornarmos a empresa, a usina, o palacete e o arranha-céus; mas também o
cortiço, a favela, o mocambo, o pau-a-pique (...) O sistema colonial brasileiro
se perpetuou e continua muito semelhante (...) Somos hoje o que nós éramos
ontem” [4].
Notas
1. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo,
1942, pp. 239-240
2. FREYRE, Gilberto. Casa Grande. Casa Grande & Senzala,
2003, p. 517
3. FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil, p.209
4. PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira, 1978, pp.
239-240
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