Por Guinen
Plumbeano
(Volmar Camargo Junior)
Avvena é um lugar inapropriado para quem gosta de sol e
calor, porque não há um único dia no ano em que não chova. É úmida, cinzenta,
encardida. Nas ruas, perambulam pessoas cabisbaixas e tristonhas. São raros os
dias festivos, e ainda assim, preenchidos de solenidades. Durante séculos,
Avvena foi um quartel gigantesco, e a maior parte da população era de soldados;
os que não eram militares trabalhavam para eles, e se lhes impunha um regime de
ordem e obediência, o que acabava, enfim, sendo a mesma coisa: todos seguiam um
regime militar. Depois que as conquistas ao território minguaram e o exército
foi incumbido de proteger as fronteiras, muito distantes do Mar, Avvena
tornou-se um pólo industrial, porque tinha algo difícil de encontrar em outras
províncias: uma massa de trabalhadores obedientes, histórica e culturalmente
incapaz de exigir melhores condições de trabalho. Assim, Avvena passou a ser um
atrativo, primeiro para as nascentes indústrias, depois, para pessoas que
viviam em situação de pobreza e miséria nas áreas rurais desta mesma província,
que vinham em busca de trabalho – ou, pelo menos, de um meio de se sustentar
- e por último, para moradores de outras
grandes cidades e do interior de outras províncias ao redor do Mar. Avvena
inchou, alastrou-se pelo vale que ocupava, tomou a região acidentada que
circundava a cidade-quartel, subiu a montanha e hoje é um monstro cinzento,
frio e empoeirado, insensível aos seus quatrocentos mil habitantes, e nada
convidativa para os visitantes. Eu era um visitante, mas não fui até lá por
causa dos atrativos inexistentes da cidade. Não tive muito tempo para me
preocupar com o mau-humor do clima avvenino, nem prestar atenção nas chaminés
quilométricas, nem nos rostos infelizes que compunham a classe trabalhadora às
seis da manhã e às sete da noite. Fui porque tinha um grande interesse na vida
de um cidadão ilustre, sobre o qual estive pesquisando desde que aprendi a ler:
General Petro Velasturvo, o Lobo Vermelho.
Meu contato físico
com Avvena começou na estação de trens. Teria começado antes, se eu estivesse
acordado, e teria visto praticamente toda a cidade, de cima, pela janela do
vagão: os trilhos fazem um percurso em espiral pelo perímetro da cidade velha,
pelas encostas da serra, por sobre a absurda muralha que a circunda.
Entretanto, os barbitúricos não recomendados pelo médico me fizeram dormir
feito um degrau das escadarias do Farol, e só fui acordado, a muito custo, pelo
fiscal do trem, quando já estávamos parados. Fui o último passageiro a descer.
Um funcionário do governo, muito prestativo e jovem, viera buscar-me com um
veículo oficial, desses carros sofisticados que se vêem pouco na Capital. O
rapaz apresentou-se com muita cordialidade, e quase nenhuma formalidade.
Chamava-se Platin. Eu teria me enganado se concluísse que todos os avveninos
eram como ele. Posteriormente, descobri que Platin era de um lugarejo perdido
na imensidão surenha, e que era tão avesso ao modo de viver avvenino quanto eu
e outros estrangeiros. O jovem encarregou-se de carregar minha pouca bagagem,
apenas duas malas pequenas, rindo da minha falta de cuidado com o frio que
costumava fazer, e em poucos minutos, fez comercial de duas lojas de roupas de
inverno de conhecidos seus. Convidou-me para entrar no carro, sem nenhuma
formalidade especial – não que eu precisasse de qualquer formalidade; apenas
achei aquilo estranho e divertido para um lugar que eu sabia ser o mais
antipático do mundo. Entrei pela porta lateral, e só então percebi que havia
mais alguém lá dentro. Era uma mulher.
— É um prazer,
Senhor Plumbeano. Entre. Está muito frio
aí. — e imediatamente, eu soube de quem se tratava. Era Agatha Pietra
Velasturvo, tataraneta e assistente pessoal do General.
Ela não parecia um
militar, pelo menos, não estava vestida como um. Ao telefone, sua voz era
melodiosa e grave, como a das pessoas que estudam técnica vocal. Em sua
presença, tive a impressão de que era uma personagem de rádio-romance, à imagem
que eu havia feito, quando criança, de heroínas como Semmpat de Ture ou
Felixcia Luna – com a diferença óbvia de que estas não eram humanas.
Entretanto, Agatha Velasturvo era, definitivamente, uma pessoa diferente,
talvez dotada de uma aura não-humana como a das heroínas de minha imaginação.
Lendo a respeito da história pessoal do General Petro, chega-se facilmente à
conclusão de que nunca confiara em ninguém, e que sempre fora assessorado por
um familiar. Ela, Agatha, estava como sua fiel escudeira desde os primeiros
passos. A mim, porém, lembrou-me uma diva do rádio.
Ao longo dos cinco
quilômetros entre a estação e o hotel, Agatha expôs-me a situação toda, de modo
muito sucinto, claro e objetivo. Em poucas palavras, agendou a primeira
entrevista para as sete da manhã em ponto do dia seguinte, durante o desjejum
do General. Deixou-me a par do estado de saúde do herói nacional, que já
avançava para a casa dos cento e vinte anos. Também deu-me algumas explicações,
sem espaço para dúvidas, sobre como referir-me aos tritões na presença do
General, porque jamais acatou os acordos de paz assinados mais de cinquenta
anos antes. Tampouco considera a confederação das províncias do Mar de Luna uma
única nação, e por isso, também é um assunto delicado. Por fim, quando o carro
já se encontrava diante das portas do hotel, Agatha estendeu-me a mão, ao que
correspondi, recebendo o aperto de mãos mais pesado que já havia recebido na
vida. “Amanhã”, disse ela, “Platin virá buscá-lo bem cedo. Não abuse dos
barbitúricos dessa vez”. O ângulo dos seus lábios me fez entender que se
tratava de uma piada. Talvez, o mais perto que um militar avvenino tenha
chegado de uma.
Choveu continuamente
durante toda a madrugada. O hotel tinha um sistema de calefação eficaz e
moderno, o que me possibilitou uma noite agradável, inevitavelmente sem sono. Dei-me
o luxo de pedir para o serviço de quarto levar-me um bule de café e alguns
biscoitos, para começar a esboçar minha entrevista sem precisar descer ao
restaurante. Enquanto esperava, tentei olhar pela janela, e tudo o que vi foi a
fachada da fábrica de botas que ocupava a metade da quadra do outro lado da
rua, e duas vezes a altura do hotel. Também não se via naquele quarteirão mais
do que a luz de um poste tímido permitia: uma imensa parede de tijolos, uma
guarita, um contêiner de lixo abarrotado, uns quantos gatos de rua embolados em
uma caixa de madeira que lhes servia de casa. Assim que o relógio do alto da
entrada da fábrica marcou meia-noite, um guarda caminhou de uma esquina até a
outra. Era um bovineu, que eram muito respeitados na infantaria do exército
avvenino, e ainda mais respeitados na guarda municipal. Já estaria aí o assunto
para um tratado, a diferença de tratamento dado aos bovineus, começando nas
caçadas da Capital, passando pela escravatura, culminando na posição de
destaque no exército e na polícia de Avvenin. Certamente trataria deles na
biografia do General Petro, já que um de seus companheiros no início da vida de
soldado, foi Unmonu, que veio a ser herói tanto de seu próprio povo quanto do
nosso, e que lhes garantiu a alforria oficial e definitiva, mas não o fim do
preconceito. Assim que chegaram o café, os biscoitos e potes com geléias – os
avveninos são pouco sociáveis, mas sabem comer bem – tomei meu bloco e uma
caneta. Esqueci-me completamente da rua, da chuva fina, do guarda bovineu que
caminhava pesada e silenciosamente na calçada em frente, e anotei minhas
perguntas.
Amanheceu. Tomei o
último gole de um café amargo e frio, e nem conseguia mais olhar para
biscoitos. Pude ver Platin e o carro oficial – cor-de-madeira-dourada com
detalhes em dourado nas extremidades, nos paralamas e nos faróis dianteiros,
luxuoso mesmo para um carro do governo – subindo a rua. O dia não estava muito
menos escuro nem menos chuvoso que a madrugada, e Avvena não era mais simpática
na claridade pálida do dia. Em uma hora
eu estaria dentro da mansão Velasturvo. A toca do abominável Lobo
Vermelho.
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