de Sérgio
Rodrigues
O homem chegou num fim de tarde de sábado, tipo cinco horas.
O Moraes tinha inventado aquele dia de fazer uma moqueca mas, típico, perdeu o
pique e a Ritinha teve que assumir. Moqueca atrasada, todo mundo faminto e
quase de porre da cerveja na barriga vazia, um táxi Opala novo e de banho
tomado para na estradinha de terra e me desce um cara de terno preto carregando
um violão.
Eu ri. Fazia um calor de melar cocaína, quase todo mundo no
banho de mangueira, neguinho de sunga, Teresa Olho de Peixe, Baby e Pepita nuns
deliciosos biquínis quase teóricos, de repente me desce do táxi a porra de um
coroa de terno preto carregando um violão. De olhar, só olhar, pinicava o
cocoruto. O táxi engatou uma ré e sumiu. Lembro de pensar, sujou, mas não deu
tempo de ir longe na paranoia porque de repente o tempo parou.
Sei lá quanto tempo o tempo ficou parado. Uma pausa de mil
compassos do Paulinho, alguma coisa assim.
O primeiro que abriu a boca foi outro Paulinho, o nosso.
Caralho, ele falou, cantando a palavra.
O cara de terno tarra em pé no portãozinho capenga
entreaberto como se estivesse encabulado de entrar, sorrindo de leve. O sol
bateu de chapa nos óculos dele, ricocheteou na buganvília que emoldurava o
portão, foi terminar de chispar lá longe. Os gêmeos vieram engatinhando os dois
ao mesmo tempo na grama em direção ao sujeito. Balbuciavam: Ho-ba-la-lá,
ho-ba-la-lá. O velho Pirata, que tarra deitado perto do balanço da mangueira,
também convergiu pro portão. O recém-chegado era um ímã.
De repente o Pepeu veio de dentro da casa esbaforido atrás
dos gêmeos e levou um susto ao dar de cara com a cena. Falou: Epa!
Só aí o Moraes levantou a cabeça, piscando muito.
Naquele sábado o Moraes já tinha fumado três charros da
grossura da canela da Ritinha e tarra há umas duas horas afundado em si. Sentou
de lado na rede e tarra tentando calçar o chinelo quando um sorriso aberto
iluminou a cara dele em sinal de caimento de ficha, e aí o andamento mudou
radical. Com um salto ágil que eu nunca tinha visto ele dar, o Moraes ficou em
pé e começou a gritar de braços abertos: João, meu rei, João, lá vem meu rei
João, meu rei, cantando. Era a primeira vez que eu via esse comportamento de fã
no Moraes, um cara no geral bem altivo e tal. Comecei a entender que normal era
uma coisa que aquele dia não ia ser.
Decidi ir pegar o cavaquinho que eu tinha deixado em cima da
cama e aproveitei pra dar uma mijada. Quando voltei tarra todo mundo abraçado
em fila dupla em volta do visitante. O Paulinho chorava, a Baby e a Pepita não
paravam de rir, a Ritinha tipo olhando de fora meio incrédula meio enternecida
e eu pensei, essa maconha que o Espectro trouxe ontem é veneno demais. Todo
mundo mutcho louco, aquele não era o maluco chato da bossa nova, vozinha
sussurrada, cara de contador ou de crente? Por que caceta tarra todo mundo
tipo, vi Jesus agora?
O Moraes beijou a mão dele, o Galvão também. A Pepita, aliás
Pepita Montez, ninguém menos, a famosa atriz da pornochanchada que eu não sei
bem o que fazia lá, a Pepita beijou estalado as duas bochechas, no que foi
imitada pela Baby. A Teresa entendeu mal e tentou patolar o cara, mas foi
contida pela Ritinha. Quando chegou a minha vez de abraçar o João, porque eu
saquei que pegava mal não pagar meus cumprimentos e tal, eu era o mais novo
ali, dei um tapinha no ombro e falei: Sou desafinado também. O que é verdade,
cantando eu sou uma saracura baleada. Ha, he, hi, hi, hi, hi, o Paulinho riu.
A Rita avisou que a moqueca tarra pronta. Chegou na hora
certinha, ela disse pro João, depois falam que baiano é atrasado. Fomos andando
pra mesa da varanda. O pessoal comentava com o João como tinha sido legal uma
outra vez que eles se encontraram, parece que num apartamento na cidade, mas
que agora, no sítio, ia ser muito melhor. Eu não sabia nada daquilo de encontro
em apartamento, não andava com o pessoal na época. Vi que os gêmeos tinham
caído no sono no canto embaixo do nicho onde ficava a imagem de São Jorge. Pirata
montava guarda junto deles.
Enquanto a Ritinha e a Tê traziam as panelas de barro com
sua rabiola de fumaça, um perfume de enfeitiçar a vizinhança se ali tivesse
vizinhança, apertei em cima da mesa uma tora que tarra mais pra canela da Baby
que da Ritinha e ergui uma oração ao Espectro, que na véspera quando apareceu
no sítio de moto com sua matula tinha contado a história do irmãozinho doente
dele. A parada era tipo filme de terror, o irmãozinho do Espectro ia morrer se
não aparecesse um doador de um tipo de sangue lá que só ele mais doze pessoas
no mundo tinham, e o Espectro contou que por isso andava metido naquele negócio
de vender bagulho, necessidade.
O pessoal começou a se servir de moqueca, arroz e pirão.
Risquei um fósforo da marca Olho, acendi a tora e passei pro João. Ele pegou,
olhou o beque com bitola de charuto. Botou na boca, tragou fundo e prendeu a
fumaça. Quando soltou o ar, quase não tinha fumaça mais. Repetiu a operação
mais duas vezes.
Depois de finalmente passar o baiano pra Pepita, João abriu
a boca pela primeira vez desde sua aparição no Opala amarelo. Disse que um
médico de Nova York que ele conhecia podia ajudar o irmãozinho do Espectro.
Isto é, talvez.
Amém, eu falei.
Manera nessa pimenta aí, mestre, disse o Galvão.
O João tinha enfiado uma colher de sopa na cumbuca de
dedo-de-moça curtida em azeite, pimenta de matar cavalo.
Nossa, verdade, disse a Ritinha.
A colher voltou da pimenteira com uma pequena piscina de
lava. Três ou quatro gotas davam conta do serviço e ali tinha um laguinho.
Cagando pro pessoal, o cara despejou aquilo em cima do seu arroz com pirão,
misturou tudo e deu uma garfada com vontade.
Todo mundo fez silêncio. Ficamos esperando o incomparável
gênio da bossa nova cuspir o arroz com pirão num jato aqui, jato acolá. Nada.
Ah, tudo bem, mas então vai fazer uma careta engraçadona, pelo menos. Só que
careta nenhuma. Porra, o cara é duro na queda, mas das lágrimas ele não escapa.
E nada. O João engoliu aquilo com expressão serena e meteu na boca outra
garfada letal como se fosse papinha de neném. De repente eu percebi que tarra
prendendo a respiração e soltei ela caindo na risada.
O Moraes riu também. Propôs um brinde e se levantou pra ir
buscar no armário a cachaça de moringa que tinha trazido de Pernambuco. Botou
ela na roda.
Quando chegou a vez dele, o João virou a moringa no gargalo.
Ali eu resolvi que gostava do cara.
A Baby emendou uma história comprida que eu apaguei. Tinha a
ver com Rajneesh, que ainda não era Osho.
Seguiu o almoço, a moqueca da Ritinha tarra bem boa, e eu
fui entendendo que o João não falava. Indicar o médico americano pro irmãozinho
do Espectro tinha sido a única manifestação verbal dele, no mais o cara só
ouvia, sorria, comia, bebia, fumava e soltava uns arrotinhos minimalistas.
Rolou um campeonato, e lógico que os bemóis dele foram humilhados pelos famosos
dós de peito do Pepeu. Ah, mas com que precisão de ritmo, com que sutilezas
harmônicas as eructaçõezinhas do homem se encaixavam no lusco-fusco da tarde
que ia virando noite como se tivesse pressa, temperatura baixando para um
calorzinho temperado pelos primeiros grilos.
A sobremesa foi goiabada cascão com queijo minas e um doce
de abóbora meio palha que a Baby tinha inventado de fazer com mais voluntarismo
que ciência. Antes de chegar o café que a Ritinha passava, convidei a Tê pra
colher mexerica no pomar. Tarra com desejo, falei, de caipirinha de mexerica. O
que até era verdade mas não era o principal. Eu só pedia quinze minutos com a
Tê na penumbra da noitinha no pomar.
Passamos das mexeriqueiras. Conduzi Teresa Olho de Peixe pro
leito de relva seca perto do jambo, protegido por um limoeiro baixo e folhudo.
Deitei de costas ali, ela veio por cima me beijar e foi nessa hora que eu vi a
luz no céu.
Caralho! Olha aquilo, Tê!
Ela se virou pra ver.
Tá vendo?
Claro que eu tô vendo. Que porra é essa, satélite?
A luz era verde-limão, forte e firme feito uma lâmpada, e
estava parada no meio do céu. As bordas tremelicavam um pouco, leitosas. A
coisa apagou, voltou a acender. Começou a se deslocar devagarzinho pro poente,
de repente deu um cavalo de pau e zuniu pra leste. Parou de novo.
A Teresa, olhos ainda mais arregalados que o normal:
Balão? Satélite? Farol?
Porra nenhuma, eu falei. O nome disso é disco voador.
Ficamos ali, olhando o céu, de boca aberta. A luz foi se
distanciando até desaparecer no horizonte.
Esse disco voador me deu tesão, disse a Tê.
Já era noite fechada. A gente acabou esquecendo de colher
mexerica.
Foi essa ida com Teresa Olho de Peixe no pomar, que deve ter
levado uma hora ou pouco mais, que me fez perder alguma coisa. Quando voltamos,
eu já não entendia nada direito. O João tarra numa cadeira no meio da sala com
o violão, de frente pro sofá onde todo mundo se amontoava em silêncio total,
evitando até respirar, de olhos pregados nele. O cara de terno cantava: Bim,
bom, bim, bim, bom. Só isso: Bim, bom, bim, bim, bom. E depois: Bim, bom, bim,
bim, bom, bim, bim. Como o sofá tarra cheio, eu e a Tê sentamos no chão. Fiquei
esperando aquilo acabar. Cinco minutos, dez, vinte e não acabava.
Bim, bom, bim, bim, bom. Bim, bom, bim, bim, bom, bim, bim.
Bim, bom, bim, bim, bom. Bim, bom, bim, bim, bom, bim, bom. Bim, bom, bim, bim,
bom, bim, bim. Bim, bom, bim, bim, bom. Bim, bom, bim, bim, bom, bim, bim. Bim,
bom, bim, bim, bom, bim, bom. Bim, bom, bim, bim, bom, bim, bim.
Eu comecei a ter vontade de rir. Me segurei por causa do
silêncio de igreja que pairava na sala. Olhei pra Tê: ela acompanhava o ritmo
com a cabeça, olhos fixos no cantor, parecia achar tudo normal. Olhei pra cara
da geral no sofá, Moraes, Baby, Paulinho, Ritinha, Pepeu, Galvão, Pepita. Todos
siderados. Vi que, sentados num canto, os gêmeos tinham deixado de lado a bola
de plástico e também ouviam com atenção. Perto deles, deitado com a cabeça
erguida e a língua de fora, Pirata marcava o ritmo com a cauda. O que acontecia
ali? Não era possível que estivesse todo mundo de sacanagem.
Veja bem: não é que eu não entendesse. Claro que eu
entendia. Via o que o cara tarra fazendo, o lance do ritmo perfeito, mão de
metrônomo, voz reduzida a uma ideia de voz, sentido verbal totalmente evaporado
já. Eu entendia mas, cacete, era chato. Chato? Não, não era chato. Era chato
pra caralho. Era chatíssimo. Chatissississíssimo. Chato de tirar a cueca pela
cabeça. Chato de morrer de combustão espontânea. Chato-chato-chato-chato.
Antes que o meu sangue virasse pedra, levantei e fui dar uma
volta. Fumei dois cigarros do lado de fora. Quando voltei o cara tinha parado
de cantar. Geral dispersa atrás de banheiro ou geladeira, o Moraes dedilhando
seu violão no sofá, balbuciando pra si: Marimbondo, marimbondinho.
Demoraram, disse a Ritinha. Cadê as mexericas?
Passarinho comeu tudo.
Sei, ela riu.
Nós vimos um disco voador, anunciei. Isso atraiu a atenção
de todo mundo.
O quê?
Eles viram um disco voador no pomar.
Opa, gritou o Paulinho antes de sair correndo na direção do
pomar.
O Moraes deixou o violão de lado e veio se juntar aos outros
que nos cercavam, perguntando:
Tem um disco voador no pomar?
Não tem mais, foi embora.
O disco voador não tarra no pomar, eu expliquei. A gente é
que tarra no pomar quando viu ele.
Que que cês foram fazer no pomar?
Colher mexerica.
Cadê?
Passarinho não deixou uma.
Por que não chamou?, o Moraes parecia magoado de verdade. Eu
adoro disco voador.
A Pepita começou a rir. Riu tanto que desabou em cima do
João. Abraçou ele e deitou a cabeça em seu ombro.
Vieram buscar você, vieram buscar você!
E erguendo a cabeça, o mais luminoso dos sorrisos:
Você tá pronto, não tá?
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