terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Os caminhos da dominação burguesa no Brasil




Por: Karen | 28 Abril 2014

“A burguesia brasileira nunca teve impulsos revolucionários para realizar a revolução nacional e democrática. Trata-se de uma burguesia que articula o arcaico com o novo, que dissemina a ideia do Brasil como país de mercado moderno, mas sem abandonar a condição de dependência, pautada na experiência de um ‘capitalismo de periferia avançada’”, destaca Karen Albini , da equipe do CEPAT/CJCIAS, em síntese elaborada da obra “A Revolução Burguesa no Brasil”, de Florestan Fernandes, apresentada no dia 24 de abril de 2014, em Curitiba-PR, como parte da programação do Projeto Abrindo o Livro.

Eis a síntese.   

Ao ler e interpretar a obra A Revolução Burguesa no Brasil é possível compreender claramente os motivos dessa obra ser reconhecida como essencial para a compreensão da realidade brasileira. Ela parte da análise da sociedade brasileira, pautando a constituição do capitalismo dependente e, em seguida, o capitalismo monopolista que culminou no golpe civil militar em 1964.

O autor, Florestan Fernandes, professor e sociólogo (1920-1995), no prefácio de sua obra esclarece que “trata-se de um ensaio livre, que não poderia escrever se não fosse sociológico” (p.26). Também expressa os desejos de um socialista contra a ordem social competitiva.

No ensaio citado, Fernandes expressa seus estudos e reflexões como aluno, professor e militante, “que reflete os conhecimentos acumulados ao longo de toda carreira [...]” (p.425). É um ensaio sociológico completo, que permite a compreensão da realidade brasileira e como a burguesia se “apropriou” dessa história.

Iniciada em 1966 e concluída em 1974, a obra não é apenas uma análise do momento político vivenciado nos anos 1960 e 1970 no Brasil, é uma interpretação sócio-histórica da constituição da burguesia no Brasil.    O autor lembra que “[...] ao se apelar para a noção de ‘Revolução burguesa’, não se pretende explicar o presente do Brasil pelo passado dos povos europeus. Indaga-se, porém, quais foram e como se manifestaram as condições e os fatores histórico-sociais que explicam como e porque se rompeu, no Brasil, com o imobilismo da ordem tradicionalista e se originou a modernização como processo social” (p.20-21).

Para Fernandes, a Revolução Burguesa no Brasil foi constituída de quatro “momentos” sócio-históricos distintos que antecederam ao golpe de 1964: a) A Independência seguida dos acontecimentos da abolição da escravidão e da proclamação da República; b) A presença dos novos atores que permitiram grandes mudanças na realidade econômica, social e política do país; c) A mudança na relação entre capital internacional e a organização da economia interna; d) A expansão e universalização da chamada ordem social competitiva do capitalismo dependente no Brasil.

Seu ensaio é organizado em três partes: na primeira, as “origens da burguesia”, aborda a interpretação sociológica da independência do Brasil às origens da revolução burguesa, a imigração, os fazendeiros do café e a industrialização no Brasil; Na segunda parte, “a formação da ordem social competitiva [fragmento]”, Fernandes aborda a ordem social competitiva do capitalismo dependente; e na última, “Revolução burguesa e capitalismo dependente”, interpreta a concretização da revolução burguesa, com o mercado capitalista moderno, a expansão do capitalismo competitivo e o capitalismo monopolista.

Para esclarecer a Revolução Burguesa no Brasil, Fernandes analisa que houve um “antes e um depois”, por isso, na primeira parte traz elementos que permitem a percepção da constituição do capitalismo e o passado colonial do Brasil. Esclarece vários conceitos, por exemplo, distinguindo senhor do engenho de Burguês, burguesia de aristocracia agrária.

Fernandes define que no Brasil não houve “feudalismo” e nem burgo, o país era uma sociedade colonial. Para o autor, o “burguês já surge, no Brasil, como uma entidade especializada, [...]” (p. 34), que foi se estabelecendo lentamente dentro da ordem. A burguesia utilizou-se do estatuto colonial para ordenar sua lógica de dominação, nesse sentido, “as categorias de pensamento inerente ao liberalismo preenchiam uma função clara: cabia-lhes suscitar e ordenar, a partir de dentro e espontaneamente, através do estatuto nacional, mecanismos econômicos, sociais e políticos que produzissem efeitos equivalentes aos que eram atingidos antes, a partir de fora e compulsoriamente, através do estatuto colonial” (p. 54). Assim é que foram criadas as condições para o início da Revolução burguesa no Brasil. O liberalismo, a ideologia de dominação da burguesia, “adaptou-se” à dominação estamental e patrimonial, ao tradicionalismo e mandonismo presente na aristocracia agrária. E mais, agregou em sua “formação” todos esses traços do passado colonial brasileiro, com a sua lógica de dominação e opressão.

A Independência permitiu os primeiros traços da sociabilidade burguesa, bloqueada até então pelo estatuto colonial e o grande senhor do engenho. É clara a relação de como os ideais de justificação do capitalismo vão se estruturando dentro da ordem do estatuto colonial, constituindo lentamente uma nova ordem social. Nessa mesma lógica, as classes sociais vão pressionando a estrutura estamental, aparecendo no mercado, nas cidades e exportações, por meio das atividades mercantis e da presença de novos personagens - os banqueiros, o fazendeiro do café e o imigrante. O trabalho assalariado e a consolidação da “ordem econômica competitiva” são introduzidos no contexto social, econômico e político, em fins do século XIX.

Para o autor, “o que importa assinalar, em termos da análise sociológica, é o que representam essas funções histórico-sociais da acumulação estamental do capital para o desenvolvimento interno do capitalismo” (p.99). Além da acumulação capitalista conter traços da acumulação estamental, no que se refere ao “privilégio” de apenas um segmento, a burguesia se justificou dentro da ordem antiga mantendo sua estrutura desigual e nada democrática.

Ao introduzir a segunda parte do livro, Fernandes explica que em todas as relações de troca e produção se desenvolve uma ordem social, que permite a manutenção do sistema dessas relações. As relações capitalistas são compreendidas como ordem social competitiva. Fernandes esclarece que nas sociedades dependentes, o capitalismo é introduzido antes da ordem social competitiva e, assim, a ideologia vai se adaptando à ordem anterior. A chamada “ruptura” se dá pelas estruturas de dominação, de maneira gradual, por meio da economia mundial, o que condiciona a transição. No Brasil, “as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial não só moldaram a sociedade nacional subsequente: determinaram, a curto e a largo prazos, as proporções e o alcance dos dinamismos econômicos absorvidos do mercado mundial” (p.180).

Nesse contexto, a nova ordem social competitiva foi sendo introduzida a partir de brechas encontradas na organização estamental e estatuto colonial, ganhando força para extinção da ordem social colonial no sentido de alterar o regime senhorial, o que favoreceu a grande burguesia. Mesmo assim, a ordem social competitiva carrega traços da ordem social anterior, por isso, Fernandes a esboça como fragmentada. A competição capitalista da burguesia brasileira é vinculada aos valores e aos processos que concorreram para a manutenção do passado colonial do mandonismo. É isso o que justifica o capitalismo brasileiro vinculado ao passado patrimonialista e autocrático.

Não existiam relações de trabalho nos estamentos, era a escravidão. Já na nova ordem social competitiva fragmentada, apesar da existência do “trabalho livre”, configura-se “de modo mais cínico e brutal, como puro instrumento de espoliação econômica e de acumulação tão intensiva quanto possível de capital” (p.232-233). Mais ainda, “o elemento ou a dimensão humana bem como a ‘paz social’ são figuras de retórica, de explícita mistificação burguesa, e quando precisam ir além disso, o mandonismo e o paternalismo tradicionalistas cedem seu lugar à repressão policial e à dissuasão político militar” (p.233). É desse modo que Fernandes encerra a segunda parte do livro, retratando elementos para compreensão de como foi a “Revolução burguesa” e a lógica cruel de dominação do capitalismo no Brasil.

Na introdução à terceira parte, Fernandes expõe que não há um período exato que marca o fim do regime senhorial e o início da dominação burguesa, mas esclarece que o início dessa transição se dá ainda dentro de outra ordem social: na tradição colonial. Após a abolição houve uma “crise do poder oligárquico” e começam a surgir outros setores, como os industriais do Rio de Janeiro e de São Paulo, que Fernandes retrata como “setores insatisfeitos da grande burguesia”. Assim, a força política da velha oligarquia começa a perder e “ceder” espaço para uma nova força política. É nesses “choques” de conflitos e nas convergências “que repousa o que se poderia chamar de consolidação conservadora da dominação burguesa no Brasil” (p.245), que irá se culminar no que é a face mais cruel desse processo.

Trata-se de uma lógica que prevê relações de dominação e acumulação e que preserva as condições de acumulação herdadas da colônia, na forma de acumulação de capital e apropriação da riqueza socialmente produzida inerentes ao capitalismo. Nesse aspecto, é que se “funde”, nas palavras de Fernandes, o “velho” e o “novo”, “a aristocracia comercial com seus desdobramentos no “mundo dos negócios” e as elites dos imigrantes com seus descendentes, prevalecendo, no conjunto, a lógica de dominação burguesa dos grupos oligárquicos dominantes” (p. 247).

Dentro dessa lógica, se para a aristocracia o “inimigo” era o escravo (liberto), para a burguesia é o assalariado.

A burguesia instaurou no Brasil uma revolução dentro da ordem, como já destacado. Isso impôs, na década de 1930, com o Estado Novo, pressões para a concretização do capitalismo competitivo no Brasil. Nessa seara, destacam-se elementos como as pressões externas do capitalismo monopolista mundial, o proletariado nacional, as massas populares e a intervenção direta do Estado. Pressões que permitiram a consolidação do capitalismo competitivo e a aproximação com o mercado externo.

Nessa lógica de acumulação e dominação burguesa, o processo de industrialização foi realizado sem romper com a dependência e as influências externas, ocorrendo a crise do poder burguês a partir da transição do capitalismo comercial para o capitalismo industrial. “O problema central da investigação histórico-sociológica da Revolução Burguesa no Brasil consiste na crise do poder burguês, que se localiza na era atual e emerge como consequência da transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista” (p. 252).

Essa crise relacionada ao papel de setores externos do capitalismo e à aliança feita com forças políticas retrógradas alcança seu “ápice” de dominação em 1964, quando o modelo de burguesia brasileira passa a ser “autocrático burguês”. O resultado foi a instauração de uma ditadura altamente opressora e dominadora, que mostrou a verdadeira face da Revolução burguesa no Brasil, não democrática e antipopular. Por meio da “aliança” com o capital estrangeiro, através do capitalismo monopolista, constrói-se a imagem do moderno no mesmo espaço do atrasado. Daí, a manutenção da economia nacional na condição subalterna.
   
Na verdade, em 1964 houve uma “contrarrevolução” autodefensiva, marcando as características da dominação burguesa no Brasil. “A burguesia ganhava, assim, as condições mais vantajosas possíveis (em vista da situação interna): 1º) para estabelecer uma associação mais íntima com o capitalismo financeiro internacional; 2º) para reprimir, pela violência ou pela intimidade, qualquer ameaça operária ou popular de subversão da ordem (mesmo como uma ‘revolução democrático-burguesa’); 3º) para transformar o Estado em instrumento exclusivo do poder burguês, tanto no plano econômico, quanto nos planos sociais e político” (p. 255).

A Revolução Burguesa no Brasil ocorreu de cima para baixo. Tratou-se de uma revolução institucional de dominação política, econômica e social. O desenvolvimento do capitalismo contou com três fases diferenciadas: “a) fase de eclosão de um mercado capitalista especificamente moderno; b) fase de formação e expansão do capitalismo competitivo; c) fase de irrupção do capitalismo monopolista” (p. 263).

Em sua última parte do livro, Fernandes definiu como modelo autocrático burguês de dominação capitalista o processo que identificou como uma “contrarrevolução prolongada”. Enxerga o Brasil, a partir de uma lógica de dominação mundial, como país de periferia “moderna”, o que acentua e intensifica a industrialização e urbanização em favor da promoção do mercado capitalista. A burguesia é vista, assim, como “classe possuidora e privilegiada”, bem como instituição direcionadora da luta de interesses capitalistas que converte o Estado em “eixo político da recomposição do poder econômico, social e político” (p. 309) da mesma.

A burguesia brasileira nunca teve impulsos revolucionários para realizar a revolução nacional e democrática. Trata-se de uma burguesia que articula o arcaico com o novo, que dissemina a ideia do Brasil como país de mercado moderno, mas sem abandonar a condição de dependência, pautada na experiência de um “capitalismo de periferia avançada”.

Diante da exposição das ideias do autor, cabem alguns questionamentos ou talvez reflexões. Como, percebendo essas peculiaridades da dominação burguesa no Brasil, podemos pensar em uma organização das massas populares? Está claro que se trata de uma burguesia que se moldou a partir das mais arcaicas formas de dominação e opressão, preservando o mandonismo e o paternalismo, perpetuando em muitos casos a escravidão na aparência de “trabalho livre”. Tal burguesia consegue, por meio de seu poder de dominação e opressão, manipular os aparelhos do Estado.

 Uma vez submetidas à dominação burguesa, as massas populares são vítimas de espaços de organização sucateados e duramente reprimidos. Os espectros do passado, infelizmente, ainda impedem que os setores populares rompam com a conciliação por cima, forma costumeira em que a burguesia brasileira, nada democrática, costuma tomar as decisões em nome dos interesses pessoais, disfarçados como interesses nacionais.

Referência

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5 ed. São Paulo: Globo, 2005.


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