Por: Karen | 28 Abril 2014
“A burguesia brasileira nunca teve impulsos revolucionários
para realizar a revolução nacional e democrática. Trata-se de uma burguesia que
articula o arcaico com o novo, que dissemina a ideia do Brasil como país de
mercado moderno, mas sem abandonar a condição de dependência, pautada na
experiência de um ‘capitalismo de periferia avançada’”, destaca Karen Albini , da equipe do CEPAT/CJCIAS, em síntese elaborada da obra “A Revolução
Burguesa no Brasil”, de Florestan Fernandes, apresentada no dia 24 de abril de
2014, em Curitiba-PR, como parte da programação do Projeto Abrindo o Livro.
Eis a síntese.
Ao ler e interpretar a obra A Revolução Burguesa no Brasil é
possível compreender claramente os motivos dessa obra ser reconhecida como
essencial para a compreensão da realidade brasileira. Ela parte da análise da
sociedade brasileira, pautando a constituição do capitalismo dependente e, em
seguida, o capitalismo monopolista que culminou no golpe civil militar em 1964.
O autor, Florestan Fernandes, professor e sociólogo
(1920-1995), no prefácio de sua obra esclarece que “trata-se de um ensaio
livre, que não poderia escrever se não fosse sociológico” (p.26). Também
expressa os desejos de um socialista contra a ordem social competitiva.
No ensaio citado, Fernandes expressa seus estudos e
reflexões como aluno, professor e militante, “que reflete os conhecimentos
acumulados ao longo de toda carreira [...]” (p.425). É um ensaio sociológico
completo, que permite a compreensão da realidade brasileira e como a burguesia
se “apropriou” dessa história.
Iniciada em 1966 e concluída em 1974, a obra não é apenas
uma análise do momento político vivenciado nos anos 1960 e 1970 no Brasil, é
uma interpretação sócio-histórica da constituição da burguesia no Brasil. O autor lembra que “[...] ao se apelar para
a noção de ‘Revolução burguesa’, não se pretende explicar o presente do Brasil
pelo passado dos povos europeus. Indaga-se, porém, quais foram e como se
manifestaram as condições e os fatores histórico-sociais que explicam como e
porque se rompeu, no Brasil, com o imobilismo da ordem tradicionalista e se
originou a modernização como processo social” (p.20-21).
Para Fernandes, a Revolução Burguesa no Brasil foi
constituída de quatro “momentos” sócio-históricos distintos que antecederam ao
golpe de 1964: a) A Independência seguida dos acontecimentos da abolição da
escravidão e da proclamação da República; b) A presença dos novos atores que
permitiram grandes mudanças na realidade econômica, social e política do país;
c) A mudança na relação entre capital internacional e a organização da economia
interna; d) A expansão e universalização da chamada ordem social competitiva do
capitalismo dependente no Brasil.
Seu ensaio é organizado em três partes: na primeira, as
“origens da burguesia”, aborda a interpretação sociológica da independência do
Brasil às origens da revolução burguesa, a imigração, os fazendeiros do café e
a industrialização no Brasil; Na segunda parte, “a formação da ordem social
competitiva [fragmento]”, Fernandes aborda a ordem social competitiva do
capitalismo dependente; e na última, “Revolução burguesa e capitalismo
dependente”, interpreta a concretização da revolução burguesa, com o mercado
capitalista moderno, a expansão do capitalismo competitivo e o capitalismo
monopolista.
Para esclarecer a Revolução Burguesa no Brasil, Fernandes
analisa que houve um “antes e um depois”, por isso, na primeira parte traz
elementos que permitem a percepção da constituição do capitalismo e o passado
colonial do Brasil. Esclarece vários conceitos, por exemplo, distinguindo
senhor do engenho de Burguês, burguesia de aristocracia agrária.
Fernandes define que no Brasil não houve “feudalismo” e nem
burgo, o país era uma sociedade colonial. Para o autor, o “burguês já surge, no
Brasil, como uma entidade especializada, [...]” (p. 34), que foi se
estabelecendo lentamente dentro da ordem. A burguesia utilizou-se do estatuto
colonial para ordenar sua lógica de dominação, nesse sentido, “as categorias de
pensamento inerente ao liberalismo preenchiam uma função clara: cabia-lhes
suscitar e ordenar, a partir de dentro e espontaneamente, através do estatuto
nacional, mecanismos econômicos, sociais e políticos que produzissem efeitos
equivalentes aos que eram atingidos antes, a partir de fora e compulsoriamente,
através do estatuto colonial” (p. 54). Assim é que foram criadas as condições
para o início da Revolução burguesa no Brasil. O liberalismo, a ideologia de
dominação da burguesia, “adaptou-se” à dominação estamental e patrimonial, ao
tradicionalismo e mandonismo presente na aristocracia agrária. E mais, agregou
em sua “formação” todos esses traços do passado colonial brasileiro, com a sua
lógica de dominação e opressão.
A Independência permitiu os primeiros traços da
sociabilidade burguesa, bloqueada até então pelo estatuto colonial e o grande
senhor do engenho. É clara a relação de como os ideais de justificação do
capitalismo vão se estruturando dentro da ordem do estatuto colonial,
constituindo lentamente uma nova ordem social. Nessa mesma lógica, as classes
sociais vão pressionando a estrutura estamental, aparecendo no mercado, nas
cidades e exportações, por meio das atividades mercantis e da presença de novos
personagens - os banqueiros, o fazendeiro do café e o imigrante. O trabalho
assalariado e a consolidação da “ordem econômica competitiva” são introduzidos
no contexto social, econômico e político, em fins do século XIX.
Para o autor, “o que importa assinalar, em termos da análise
sociológica, é o que representam essas funções histórico-sociais da acumulação
estamental do capital para o desenvolvimento interno do capitalismo” (p.99).
Além da acumulação capitalista conter traços da acumulação estamental, no que
se refere ao “privilégio” de apenas um segmento, a burguesia se justificou
dentro da ordem antiga mantendo sua estrutura desigual e nada democrática.
Ao introduzir a segunda parte do livro, Fernandes explica
que em todas as relações de troca e produção se desenvolve uma ordem social,
que permite a manutenção do sistema dessas relações. As relações capitalistas
são compreendidas como ordem social competitiva. Fernandes esclarece que nas
sociedades dependentes, o capitalismo é introduzido antes da ordem social
competitiva e, assim, a ideologia vai se adaptando à ordem anterior. A chamada
“ruptura” se dá pelas estruturas de dominação, de maneira gradual, por meio da
economia mundial, o que condiciona a transição. No Brasil, “as estruturas
econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial não só moldaram a
sociedade nacional subsequente: determinaram, a curto e a largo prazos, as
proporções e o alcance dos dinamismos econômicos absorvidos do mercado mundial”
(p.180).
Nesse contexto, a nova ordem social competitiva foi sendo
introduzida a partir de brechas encontradas na organização estamental e
estatuto colonial, ganhando força para extinção da ordem social colonial no
sentido de alterar o regime senhorial, o que favoreceu a grande burguesia.
Mesmo assim, a ordem social competitiva carrega traços da ordem social
anterior, por isso, Fernandes a esboça como fragmentada. A competição
capitalista da burguesia brasileira é vinculada aos valores e aos processos que
concorreram para a manutenção do passado colonial do mandonismo. É isso o que
justifica o capitalismo brasileiro vinculado ao passado patrimonialista e
autocrático.
Não existiam relações de trabalho nos estamentos, era a
escravidão. Já na nova ordem social competitiva fragmentada, apesar da
existência do “trabalho livre”, configura-se “de modo mais cínico e brutal,
como puro instrumento de espoliação econômica e de acumulação tão intensiva
quanto possível de capital” (p.232-233). Mais ainda, “o elemento ou a dimensão
humana bem como a ‘paz social’ são figuras de retórica, de explícita
mistificação burguesa, e quando precisam ir além disso, o mandonismo e o
paternalismo tradicionalistas cedem seu lugar à repressão policial e à dissuasão
político militar” (p.233). É desse modo que Fernandes encerra a segunda parte
do livro, retratando elementos para compreensão de como foi a “Revolução
burguesa” e a lógica cruel de dominação do capitalismo no Brasil.
Na introdução à terceira parte, Fernandes expõe que não há
um período exato que marca o fim do regime senhorial e o início da dominação
burguesa, mas esclarece que o início dessa transição se dá ainda dentro de
outra ordem social: na tradição colonial. Após a abolição houve uma “crise do
poder oligárquico” e começam a surgir outros setores, como os industriais do
Rio de Janeiro e de São Paulo, que Fernandes retrata como “setores
insatisfeitos da grande burguesia”. Assim, a força política da velha oligarquia
começa a perder e “ceder” espaço para uma nova força política. É nesses
“choques” de conflitos e nas convergências “que repousa o que se poderia chamar
de consolidação conservadora da dominação burguesa no Brasil” (p.245), que irá
se culminar no que é a face mais cruel desse processo.
Trata-se de uma lógica que prevê relações de dominação e
acumulação e que preserva as condições de acumulação herdadas da colônia, na
forma de acumulação de capital e apropriação da riqueza socialmente produzida
inerentes ao capitalismo. Nesse aspecto, é que se “funde”, nas palavras de
Fernandes, o “velho” e o “novo”, “a aristocracia comercial com seus
desdobramentos no “mundo dos negócios” e as elites dos imigrantes com seus
descendentes, prevalecendo, no conjunto, a lógica de dominação burguesa dos
grupos oligárquicos dominantes” (p. 247).
Dentro dessa lógica, se para a aristocracia o “inimigo” era
o escravo (liberto), para a burguesia é o assalariado.
A burguesia instaurou no Brasil uma revolução dentro da
ordem, como já destacado. Isso impôs, na década de 1930, com o Estado Novo,
pressões para a concretização do capitalismo competitivo no Brasil. Nessa
seara, destacam-se elementos como as pressões externas do capitalismo
monopolista mundial, o proletariado nacional, as massas populares e a
intervenção direta do Estado. Pressões que permitiram a consolidação do
capitalismo competitivo e a aproximação com o mercado externo.
Nessa lógica de acumulação e dominação burguesa, o processo
de industrialização foi realizado sem romper com a dependência e as influências
externas, ocorrendo a crise do poder burguês a partir da transição do
capitalismo comercial para o capitalismo industrial. “O problema central da
investigação histórico-sociológica da Revolução Burguesa no Brasil consiste na
crise do poder burguês, que se localiza na era atual e emerge como consequência
da transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista” (p.
252).
Essa crise relacionada ao papel de setores externos do
capitalismo e à aliança feita com forças políticas retrógradas alcança seu
“ápice” de dominação em 1964, quando o modelo de burguesia brasileira passa a
ser “autocrático burguês”. O resultado foi a instauração de uma ditadura
altamente opressora e dominadora, que mostrou a verdadeira face da Revolução
burguesa no Brasil, não democrática e antipopular. Por meio da “aliança” com o
capital estrangeiro, através do capitalismo monopolista, constrói-se a imagem
do moderno no mesmo espaço do atrasado. Daí, a manutenção da economia nacional
na condição subalterna.
Na verdade, em 1964 houve uma “contrarrevolução”
autodefensiva, marcando as características da dominação burguesa no Brasil. “A
burguesia ganhava, assim, as condições mais vantajosas possíveis (em vista da
situação interna): 1º) para estabelecer uma associação mais íntima com o
capitalismo financeiro internacional; 2º) para reprimir, pela violência ou pela
intimidade, qualquer ameaça operária ou popular de subversão da ordem (mesmo
como uma ‘revolução democrático-burguesa’); 3º) para transformar o Estado em
instrumento exclusivo do poder burguês, tanto no plano econômico, quanto nos
planos sociais e político” (p. 255).
A Revolução Burguesa no Brasil ocorreu de cima para baixo.
Tratou-se de uma revolução institucional de dominação política, econômica e
social. O desenvolvimento do capitalismo contou com três fases diferenciadas:
“a) fase de eclosão de um mercado capitalista especificamente moderno; b) fase
de formação e expansão do capitalismo competitivo; c) fase de irrupção do
capitalismo monopolista” (p. 263).
Em sua última parte do livro, Fernandes definiu como modelo
autocrático burguês de dominação capitalista o processo que identificou como
uma “contrarrevolução prolongada”. Enxerga o Brasil, a partir de uma lógica de
dominação mundial, como país de periferia “moderna”, o que acentua e
intensifica a industrialização e urbanização em favor da promoção do mercado
capitalista. A burguesia é vista, assim, como “classe possuidora e
privilegiada”, bem como instituição direcionadora da luta de interesses
capitalistas que converte o Estado em “eixo político da recomposição do poder
econômico, social e político” (p. 309) da mesma.
A burguesia brasileira nunca teve impulsos revolucionários
para realizar a revolução nacional e democrática. Trata-se de uma burguesia que
articula o arcaico com o novo, que dissemina a ideia do Brasil como país de
mercado moderno, mas sem abandonar a condição de dependência, pautada na
experiência de um “capitalismo de periferia avançada”.
Diante da exposição das ideias do autor, cabem alguns
questionamentos ou talvez reflexões. Como, percebendo essas peculiaridades da
dominação burguesa no Brasil, podemos pensar em uma organização das massas
populares? Está claro que se trata de uma burguesia que se moldou a partir das
mais arcaicas formas de dominação e opressão, preservando o mandonismo e o
paternalismo, perpetuando em muitos casos a escravidão na aparência de
“trabalho livre”. Tal burguesia consegue, por meio de seu poder de dominação e
opressão, manipular os aparelhos do Estado.
Uma vez submetidas à
dominação burguesa, as massas populares são vítimas de espaços de organização
sucateados e duramente reprimidos. Os espectros do passado, infelizmente, ainda
impedem que os setores populares rompam com a conciliação por cima, forma
costumeira em que a burguesia brasileira, nada democrática, costuma tomar as
decisões em nome dos interesses pessoais, disfarçados como interesses
nacionais.
Referência
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio
de interpretação sociológica. 5 ed. São Paulo: Globo, 2005.
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