João Vitor Santos | Tradução: Juan Luis Hermida
Guido Liguori recupera conceitos do pensador italiano em sua
gênese e propõe reflexões que atualizam suas perspectivas como forma de tentar
compreender o contexto do mundo hoje
Antonio Gramsci foi uma figura importante do Partido
Comunista da Itália, mas, além de seu legado para a construção dessa
perspectiva política, é interessante observar seus movimentos de revisão do
pensamento sobre o Partido e dos próprios conceitos. É mais ou menos o que faz
quando produz suas anotações na prisão, vítima do regime de Benito Mussolini.
“Gramsci desde dentro de uma prisão fascista tinha visto melhor e mais longe, e
o movimento comunista internacional e também o seu partido tiveram, no final,
que lhe dar a razão, pelo menos parcialmente”, destaca o professor de História
do Pensamento Político, o italiano Guido Liguori. “A Internacional Comunista
teve que abandonar a política sectária e extremista do final dos anos ‘20 e do
início dos anos 30’, reavaliar a questão do consentimento, das alianças, da
democracia, reaproximando-se assim do pensamento gramsciano”, explica.
Tal movimento pode ser interessante, por exemplo, para
pensar o papel e o lugar da esquerda no mundo de hoje. “A esquerda perdeu, em
muitos países, a capacidade de uma proposta independente, cultural, bem como
econômica, distintamente diferente daquela das classes dominantes”, aponta
Liguori, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, o maior
equívoco é apostar num mesmo remédio que a direita usa para enfrentar as
crises. É “curar um sistema doente (o capitalismo), embora com diferentes
medicamentos”. Assim, o professor destaca que o partido o qual Gramsci “pensa
está de mãos dadas com os movimentos”, pois “sabe que não deve apenas ‘ensinar’
para as massas, mas também aprender com elas”. E aponta: “hoje a política e os
partidos me parecem pouco dispostos a fazê-lo”.
Guido Liguori é professor de História do Pensamento Político
na Universidade da Calábria, Itália e, atualmente, presidente da International
Gramsci Society Italia (IGS Italia). Juntamente com Pasquale Voza, organizou
Dicionário Gramsciano (São Paulo: Boitempo, 2017), recentemente lançado no
Brasil. Liguori também é autor de Gramsci conteso. Storia di um dibattito
1922-1996 (Editori Riuniti, 1996) e Sentieri gramsciani (Carocci, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o pensamento de Antonio Gramsci pode
inspirar-nos a pensar sobre as crises do nosso tempo?
Guido Liguori – Há certas categorias de Cadernos do Cárcere
que são muito úteis para ler a realidade contemporânea. As categorias de
“Estado Expandido”, de “revolução passiva”, bem como a de “hegemonia”, a mais
conhecida entre as categorias de Gramsci, e outras, parecem-me as mais úteis
atualmente.
A categoria gramsciana que hoje tem mais necessidade de
“tradução” (outra palavra que faz parte do vocabulário de Gramsci) é aquela de
“príncipe moderno”, ou seja, a sua ideia de um partido político, que me parece
em crise. Mas talvez até mesmo por este aspecto, penso que Gramsci não estaria
errado: o partido o qual ele pensa está de mãos dadas com os movimentos, com as
classes mais baixas: ele sabe que não deve apenas “ensinar” para as massas, mas
também aprender com elas. E hoje a política e os partidos me parecem pouco dispostos
a fazê-lo. Obviamente sobre o significado desses conceitos, dos quais não posso
estender-me aqui, referencio o Dicionário Gramsciano (São Paulo: Boitempo,
2017), que fiz com Pasquale Voza, e que acaba de ser traduzido no Brasil.
IHU On-Line – Que associações – e dissociações – podemos
fazer entre o que hoje chamamos de crise da esquerda no mundo com o
enfraquecimento do movimento comunista e o fracasso da revolução Ocidental
analisados – e vividos – por Gramsci?
Guido Liguori – Eles são, sem dúvida, diferentes períodos
históricos: Gramsci, apesar de escrever em uma prisão fascista, tinha imaginado
a superação do fascismo, mas não o fim da União Soviética. Nós, especialmente
na Europa, temos em comum com Gramsci o ponto de partida: viemos de uma derrota
histórica. Devemos ter, como ele, a capacidade de repensar toda a situação e,
como consequência, as nossas categorias.
IHU On-Line – A ideia de classe de Gramsci nos ajuda a
entender a ascensão e a queda de governos progressistas na América Latina (como
na Argentina e até mesmo no Brasil)? Por que e como?
Guido Liguori – A meu ver, a categoria gramsciana que nos
ajuda a este respeito é a de classes baixas e classes hegemônicas: não meras
aglomerações socioeconômicas de tipo sociológico, mas um conjunto de interesses
e ideias, valores, aspirações, mesmo mitos.
A esquerda perdeu em muitos países a capacidade de uma
proposta independente, cultural, bem como econômica, distintamente diferente
daquela das classes dominantes. Não é que não há diferenças entre as receitas
anticrise de direita e de esquerda, mas elas permanecem no mesmo recinto: curar
um sistema doente (o capitalismo), embora com diferentes medicamentos. Nas
classes populares, só temos desprezo, protestos e, em seguida, a derrota.
IHU On-line – Como os conceitos de hegemonia, sociedade
civil, classes mais baixas, revolução passiva e consenso são atualizados hoje?
E que outros conceitos gramscianos ganham força no tempo em que vivemos?
Guido Liguori – Entre essas categorias, a de sociedade civil
não é exatamente gramsciana. Gramsci pensa no Estado e na sociedade civil como
um todo não indiferenciado, e sim intimamente relacionado. Ele diz
explicitamente que o Estado-sociedade civil é uma dicotomia liberal, que ele
critica.
Resta sempre atual a categoria de revolução passiva, mas
lembrando que ela descreve os processos a partir de cima, que neutralizam a
iniciativa das massas, mas têm conteúdo progressivo. Hoje, no entanto, as
classes dominantes neoliberais agem brutalmente, pelos seus próprios
interesses, sem fazer avançar a sociedade como um todo. A hegemonia da
categoria continua a ser o mais comum, porque os processos culturais,
ideológicos, de produção de sentido comum, portanto de consenso, estão se
tornando mais penetrantes. Muita sorte teve, nos últimos anos, a categoria das
classes mais baixas, uma vez que é mais rica do que a do proletariado clássico:
a subordinação não é só econômica, ou em termos de força, mas é também
cultural, e às vezes psicológica.
IHU On-Line – A leitura não determinista do marxismo, de
Gramsci em diante, é importante para entender e atualizar o pensamento de Karl
Marx ? E quais são os desafios para pensar o marxismo na pós-modernidade?
Guido Liguori – Com Marx, Gramsci é hoje o pensador marxista
mais conhecido no mundo, porque o seu marxismo não é economicista, não vê a
economia como seu único fator determinante. Por isso, eu diria que o único
marxismo à altura do nosso tempo é o marxismo de Gramsci. Não esquecendo,
claro, que ele parte especificamente de Marx, de alguns dos seus escritos, de
uma leitura dos seus escritos, de fato uma leitura antieconomicista.
IHU On-Line – Que conceitos de Gramsci são adotados de forma
errada? A que o senhor atribui estes desvios interpretativos?
Guido Liguori – Como eu disse, o conceito de “príncipe
moderno” que Gramsci teve é, hoje, o menos próximo de nós entre os seus grandes
conceitos. Porque a forma partido está em crise em toda parte. Devemos
perguntar-nos se a confiança excessiva no sistema parlamentar (que Gramsci não
desprezava, mas não absolutizava) não é uma das causas que levaram a esta
crise.
IHU On-Line – Como foi o trabalho da reconstrução do sentido
das palavras e dos conceitos presentes nos Cadernos do Cárcere? Quais são os
maiores desafios para entender o léxico gramsciano?
Guido Liguori – Os Cadernos do Cárcere não são um livro
bonito e acabado, entregue pelo autor para impressão. Eles são um laboratório,
um work in progress (trabalho em andamento), um conjunto de notas tomadas no
decurso de seis a sete anos. É importante datar, tanto quanto possível, as
reflexões individuais de Gramsci, conectando-as com o desenvolvimento
histórico; isto é, com o que estava acontecendo fora da prisão, com o que
refletiu Gramsci, reconstruir o desenvolvimento e evolução dos termos e
conceitos. Para as condições em que foram escritos (da prisão, a supervisão
fascista, a incapacidade de dispor de livros e cadernos para escrever sem
limitação), os Cadernos do Cárcere são textos aparentemente simples, mas, na
verdade, muito difíceis de entender corretamente.
IHU On-Line – O senhor pode afirmar que, em seus últimos
escritos, Gramsci faz crítica do seu próprio pensamento? Por quê? E como fazer
esses movimentos?
Guido Liguori – Eu acredito que em Gramsci há um
desenvolvimento, um progresso, não uma autocrítica. Porque os fatos lhe davam a
razão: a Internacional Comunista teve que abandonar a política sectária e
extremista do final dos anos ‘20 e do início dos anos 30’ (que Gramsci desde a
prisão rejeitou), reavaliar a questão do consentimento, das alianças, da
democracia, reaproximando-se assim do pensamento gramsciano. Gramsci desde
dentro de uma prisão fascista tinha visto melhor e mais longe, e o movimento
comunista internacional e também o seu partido tiveram, no final, que lhe dar a
razão, pelo menos parcialmente.■
Leia mais
- Gramsci, 70 anos depois. Revista IHU On-Line, número 231,
de 13-8-2007.
- Daniel Blake encontra Antonio Gramsci. Artigo de Tarso
Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Sul21,
reproduzido nas Notícias do Dia de 28-3-2017, Instituto Humanitas Unisinos –
IHU.
- A revanche de Gramsci. As derrotas da esquerda e batalha
cultural. Reportagem publicada pela revista francesa La Vie, reproduzida nas
Notícias do Dia de 5-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- Iglesias: Hegemonia, Gramsci e eleições na Espanha. Texto
de Achille Mbembe, publicado pelo sítio Outras Palavras, reproduzido nas
Notícias do Dia de 21-5-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
- O Brasil no interregno de Gramsci. Artigo de Célio Turino,
publicado por Outras Palavras, reproduzido nas Notícias do Dia de 21-6-2016, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
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