terça-feira, 10 de dezembro de 2019

À sombra da jabuticabeira


  

     Filipa ainda sentia o gosto da jabuticaba que pegava do pé. O que disse a Angel ao descrever a casa onde cresceu, na Vila Mariana.
     Quando nasceu, já moravam na casa grande. Grande para uma família pequena, que, tijolo por tijolo, aos poucos se construía. Com a chegada da irmã, improvisaram um quarto de bebê no escritório. Quatro anos depois, nascia o irmão. O quarto de Filipa Maria recebeu-o com seu nome pintado em verde-claro na parede. Titia apegava-se à nova função. Dava as mãos aos dois com o zelo de mãe deitado em corpo de irmã mais velha.
     A casa ganhava gente. Duas janelas com a luz sempre acesa, e um cheiro gostoso da cozinha, sempre pronta a receber alguém. Era um sobrado com um quintal na frente e um jardim nos fundos, enfeitado por flores, duas gaiolas vazias e uma jabuticabeira. Nunca conseguiram prender um pássaro na gaiola. Meu tio soltava-os todos, que morriam desacostumados à própria natureza.
    A porta da casa permanecia aberta. Titia crescera com a entrada e saída de vizinhos, parentes, amigos e até mendigos, que tocavam a campainha por uns trocados. Vovô compadecia-se dos que surgiam na casa, sujos, estômago vazio, rosto coberto de tristeza e pó. Abria a porta, oferecia toalhas, sabão e alguma dignidade em roupas limpas. Depois pedia à minha avó que preparasse um prato de comida.
    Filipa Maria já chegou a ver um mendigo em seu quarto, quase nu. Usava a toalha rosa bordada à mão por minha avó e vestia as roupas do irmão de meu avô, que falecera por aqueles dias.
     — O coração grande de papai. E ai de quem desobedecesse a esse coração grande e irascível.
     Vovô sempre deixava um quarto vago aos parentes e amigos que chegassem de outras cidades. A casa grande da Vila Mariana era parada obrigatória a quem passasse por São Paulo. Ajudava os familiares em aperto.
     Minha tia lembrou-se de quando um primo distante, com fama de preguiçoso, passou a morar com eles. Vovô arrumou-lhe um cargo como contínuo, além de uma cama limpa na casa grande.
    Com a roupa social emprestada de meu tio-avô — sua morte vestira muita gente —, o agregado saía de casa cedo e voltava à noite. Para algum lugar partia. Todos os dias. Algum canto abafado chamado trabalho, acreditavam.
     Até que um dia foi denunciado. Viram o primo deitado no banco de uma praça. Não era hora de almoço ou fim de expediente. O folgado fingia que ia para a empresa quando, na verdade, perambulava por São Paulo de manhã até o fim da tarde. Vovô ficou vermelho até as orelhas quando soube, esmurrou a mesa e expulsou o novo hóspede.
     A casa parecia sorrir com as explosões e a bondade repentinas de vovô. Aos domingos, todos se juntavam para ouvir minha tia tocar piano. Momento em que cantavam e brigavam juntos, quando melhor delineavam um verdadeiro retrato de família.
    Com a morte dos meus avós, os filhos permaneceram na casa por muito tempo, à sombra da jabuticabeira, como se minha mãe e meus tios tivessem crescido dentro de uma gaiola de portas abertas. Livres e, ao mesmo tempo, desacostumados a voar.
      Meus pais deixaram a casa para morar bem perto, em um apartamento quase vizinho.
     Com cerveja no corpo, titia tentou narrar a Angel a despedida da casa grande, mas a voz quase não saiu. Uma lembrança difícil.
      Seu cunhado, meu pai, fora demitido, e precisávamos todos de dinheiro.
     A irmã, minha mãe, sugeriu à minha tia que se mudassem. “Vai ser bom pros dois”, o que disse, sem se preocupar com as limitações de meu tio.
      Já as primeiras palavras ofenderam titia, preparada para a briga.
     Ao se desentender com a irmã, mamãe não viu outra saída que não a justiça. A briga arrastou-se por anos, com mandados judiciais, advogados, além do silêncio funesto entre irmãs.
     Tempos depois, quando já não precisávamos, eu havia me mudado, e papai ganhava estabilidade em outro emprego, a casa foi finalmente vendida e o dinheiro repartido em três.
    Titia largou o copo e pediu um cigarro a Angel. Tossiu nas primeiras tragadas. Com as tosses, soltou junto a fumaça do que se tornou a casa grande.
    — Passei lá dia desses. Uma imobiliária conseguiu demolir a casa. Mas a jabuticabeira continua de pé. É onde quero ser enterrada. À sombra daquela jabuticabeira.

Vera Saad

     Autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio(Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), Vera Saad é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações na Revista Cult, Revista Língua Portuguesa, Revista Metáfora, Portal Cronópios e Revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.




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