Filipa ainda
sentia o gosto da jabuticaba que pegava do pé. O que disse a Angel ao descrever
a casa onde cresceu, na Vila Mariana.
Quando nasceu, já
moravam na casa grande. Grande para uma família pequena, que, tijolo por
tijolo, aos poucos se construía. Com a chegada da irmã, improvisaram um quarto
de bebê no escritório. Quatro anos depois, nascia o irmão. O quarto de Filipa
Maria recebeu-o com seu nome pintado em verde-claro na parede. Titia apegava-se
à nova função. Dava as mãos aos dois com o zelo de mãe deitado em corpo de irmã
mais velha.
A casa ganhava
gente. Duas janelas com a luz sempre acesa, e um cheiro gostoso da cozinha,
sempre pronta a receber alguém. Era um sobrado com um quintal na frente e um
jardim nos fundos, enfeitado por flores, duas gaiolas vazias e uma
jabuticabeira. Nunca conseguiram prender um pássaro na gaiola. Meu tio
soltava-os todos, que morriam desacostumados à própria natureza.
A porta da casa
permanecia aberta. Titia crescera com a entrada e saída de vizinhos, parentes,
amigos e até mendigos, que tocavam a campainha por uns trocados. Vovô
compadecia-se dos que surgiam na casa, sujos, estômago vazio, rosto coberto de
tristeza e pó. Abria a porta, oferecia toalhas, sabão e alguma dignidade em
roupas limpas. Depois pedia à minha avó que preparasse um prato de comida.
Filipa Maria já
chegou a ver um mendigo em seu quarto, quase nu. Usava a toalha rosa bordada à
mão por minha avó e vestia as roupas do irmão de meu avô, que falecera por
aqueles dias.
— O coração
grande de papai. E ai de quem desobedecesse a esse coração grande e irascível.
Vovô sempre
deixava um quarto vago aos parentes e amigos que chegassem de outras cidades. A
casa grande da Vila Mariana era parada obrigatória a quem passasse por São
Paulo. Ajudava os familiares em aperto.
Minha tia
lembrou-se de quando um primo distante, com fama de preguiçoso, passou a morar
com eles. Vovô arrumou-lhe um cargo como contínuo, além de uma cama limpa na
casa grande.
Com a roupa social
emprestada de meu tio-avô — sua morte vestira muita gente —, o agregado saía de
casa cedo e voltava à noite. Para algum lugar partia. Todos os dias. Algum
canto abafado chamado trabalho, acreditavam.
Até que um dia
foi denunciado. Viram o primo deitado no banco de uma praça. Não era hora de
almoço ou fim de expediente. O folgado fingia que ia para a empresa quando, na
verdade, perambulava por São Paulo de manhã até o fim da tarde. Vovô ficou
vermelho até as orelhas quando soube, esmurrou a mesa e expulsou o novo
hóspede.
A casa parecia
sorrir com as explosões e a bondade repentinas de vovô. Aos domingos, todos se
juntavam para ouvir minha tia tocar piano. Momento em que cantavam e brigavam
juntos, quando melhor delineavam um verdadeiro retrato de família.
Com a morte dos
meus avós, os filhos permaneceram na casa por muito tempo, à sombra da
jabuticabeira, como se minha mãe e meus tios tivessem crescido dentro de uma
gaiola de portas abertas. Livres e, ao mesmo tempo, desacostumados a voar.
Meus pais
deixaram a casa para morar bem perto, em um apartamento quase vizinho.
Com cerveja no
corpo, titia tentou narrar a Angel a despedida da casa grande, mas a voz quase
não saiu. Uma lembrança difícil.
Seu cunhado, meu
pai, fora demitido, e precisávamos todos de dinheiro.
A irmã, minha
mãe, sugeriu à minha tia que se mudassem. “Vai ser bom pros dois”, o que disse,
sem se preocupar com as limitações de meu tio.
Já as primeiras
palavras ofenderam titia, preparada para a briga.
Ao se desentender
com a irmã, mamãe não viu outra saída que não a justiça. A briga arrastou-se
por anos, com mandados judiciais, advogados, além do silêncio funesto entre
irmãs.
Tempos depois,
quando já não precisávamos, eu havia me mudado, e papai ganhava estabilidade em
outro emprego, a casa foi finalmente vendida e o dinheiro repartido em três.
Titia largou o
copo e pediu um cigarro a Angel. Tossiu nas primeiras tragadas. Com as tosses,
soltou junto a fumaça do que se tornou a casa grande.
— Passei lá dia
desses. Uma imobiliária conseguiu demolir a casa. Mas a jabuticabeira continua
de pé. É onde quero ser enterrada. À sombra daquela jabuticabeira.
Vera Saad
Autora dos
romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio(Patuá, 2014) e do livro
de contos Mind the gap (Patuá, 2011), Vera Saad é jornalista, mestre em
Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e
Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre
Jornalismo Literário em 2012. Tem participações na Revista Cult, Revista Língua
Portuguesa, Revista Metáfora, Portal Cronópios e Revista Zunái. Vencedora do
concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola
Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem
Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa
das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger.
Nenhum comentário:
Postar um comentário