NALDOVELHO
No cais um navio, chegou faz um tempo. A campainha da porta
há tempos não toca e o telefone quando toca: desculpe, é engano! Nas esquinas:
muita pressa, poucos sonhos, muito medo, pouca conversa e o navio no cais
permanece ancorado, quieto, em silêncio.
...
Da janela percebo o outono, mês de março, abandono, pássaros
em debandada, prenúncio de chuva, vento varrendo a cidade, trânsito
engarrafado, e o sinal demora, quando fechado; ônibus lotado, e aqui em meu
quarto: apreensão! No cais o navio, ainda ancorado.
Ligo a televisão e as notícias que chegam já não causam
espanto, mas ainda assim doem! Crianças marginalizadas, prostituídas, de arma
em punho, soldados indigentes de uma guerra sem escolha, sete corpos
encontrados e quatro deles nem tinham quinze anos! E o navio no cais, ancorado,
sem sinal de partida, nada que explique a demora.
Aqui em meu peito a dor de saber o quanto somos coniventes,
o quanto somos responsáveis por ação ou omissão, por termos permitido que nos
pusessem à deriva, por termos aceitado a merda desse navio ancorado, em
silêncio, nada que justifique tanta passividade. Resultado: nenhuma novidade no
cais!
Anoitece, agora chove, e dos longes mais notícias... Parece
que as coisas por lá, também, não andam nada boas. Guerra, fome, desrespeito a
natureza, risco de epidemia cada vez mais presente e as pessoas ancoradas, já
tem um bom tempo, em silêncio.
Pego um livro de poesia e leio a dor de uma partida: o poeta
se fez de louco enclausurado em seu quarto, nostalgia sem tamanho, mazelas de um
coração. Quanta beleza ainda encontro nas palavras de um tolo, de um bardo sem
consolo que se alimenta da ilusão.
No cais a multidão se aglomera, ora a Deus por um sinal, que
o navio parta bem depressa... Mas o navio permanece ancorado, impossibilitado
de navegar, já faz tanto tempo, sem comando, não tem rumo, lugar nenhum pra
chegar.
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