Quem se interessa pelo haicai descobre que é um poema
dedicado à
natureza, ao meio ambiente (para usar uma expressão da
atualidade).
O leitor de livros de haicai exigente procura saber mais do
pequeno
poema, conhece dele a estrutura (redondilhas menores e
maior), a
ausência de rimas, mas conta os sons na métrica, dispensa o
título,
privilegia a linguagem simples.
Nota que o poema traz um efeito, um sentido no leitor, nas
leituras
sugeridas, seja uma cena, uma ação, um gesto, um canto de
pássaro, o
zinir do vento, o prateado do orvalho.
O haicai é um diálogo.
O poeta já se foi e deixou um bilhete, o poema, aos olhos do
leitor.
Captar o sentido que nem sempre está explícito, porque pode
estar
sugerido, é o deleite de sua leitura.
O poeminha não é feito de mínimo para alcançar o máximo. A
pequenez de
seus três versos busca a brevidade do instantâneo, o
sucinto, o
essencial. Ele não busca o máximo de sentidos, mas tão
somente um
número limitado de efeitos de si para quem o lê. Às vezes
apenas
aponta para um cisco na cena. Os grãos amarelos de pólen nas
patas
pretas da abelha.
O fulgor do haicai, que pode durar séculos, é a de uma
estrela
cadente, o piscar do pirilampo na escuridão, o som da rã ao
mergulhar.
Quem quiser polissemia de palavras, múltiplos significados
metafóricos, infinitas leituras, deve buscar outro tipo de
poema. O
haicai não existe para significar issos e aquilos, não há
interpretação para se fazer, nem sentidos ocultos. O que
temos para
ler do poeminha está nele, brilhando como uma gota de
orvalho que de
súbito escorrega de cima de uma folha.
Se tivéssemos que conhecer todos os contextos, as cenas
haicaísticas,
os momentos, dos quais se capturaram os haicais, não
poderíamos ser
seus leitores.
O pertencimento a uma estação ou a outra é dado pelo kigo. O
termo
sazonal que nada explica, mas situa a vivência do poeta e a
ecologia
do poema. Mas ninguém é obrigado a saber a lista de termos
de estação
para ler haicai.
Um chavão entre os poetas do haicai, que soa como
advertência, é: o
haicai que precisa de explicação, não é um bom haicai.
Porém, confesso: como leitor eu gosto de explicações e
histórias a
respeito de haicais.
Assim, por exemplo, quando leio este haicai de Bashô:
-
vai-se a primavera –
os pássaros lamentam-se,
os peixes choram
-
O poema tem o suficiente, funciona sozinho e sustenta a
minha leitura.
Mas é inegável haver nele uma atmosfera dramática. Seria o
exagero
uma antevisão do inverno que se avizinha?
Um tradutor espanhol (Fuente) escreveu: “O final da primavera
entristece Bashô, que sente as aves e os peixes participarem
de seu
sentimento.” Pode ser.
Entretanto, este poema inaugura aquela que é considerada a
mais
importante viagem deste poeta peregrino. Quando está prestes
a partir,
ele sente tristeza e apreensão. Os amigos o acompanham em
barcos até o
início do caminho por terra. Ali ele se despede com
“lágrimas de
adeus”. Depois de anotar o poema, Bashô escreve no diário:
“Este poema
foi o primeiro de minha viagem. Pareceu-me que eu não
avançava ao
caminhar. Tampouco as pessoas que tinha ido se despedir de
mim se
afastavam, (...)”
Querer que o haicai seja outra coisa que não ele mesmo, com
suas
características técnicas e artísticas, é a pior forma de
leitura que
se faz, infelizmente do poema. Compará-lo, por exemplo, à
arte
plástica para dizer que o haicai é muito “figurativo” e
pouco
“abstrato”, é uma forma de ignorar a riqueza de sua
linguagem. Ou não
teríamos um haicai, por exemplo, como este de Bashô:
-
escurece o mar –
a voz dos patos selvagens
vagamente branca
-
Aqui o poeta contrasta o escuro do mar com o branco dos
gritos dos
patos, ou seja, utiliza da sinestesia, um recurso
sofisticado da
linguagem.
Não estou dizendo que o haicai tenha que ter sofisticação.
Sua
afirmação como poema específico na poesia universal é
secularmente
definida. Sua linguagem continua sendo simples, nossas
leituras é que
precisam ser aprimoradas.
-
noite de invernia –
o silêncio por pouco
sem o som do rio
-
josé marins
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