sábado, 4 de março de 2017

O BARCO VIKING

Quando Alberto Saraiva criou a rede Habib’s, certamente não imaginaria a cena.
Dois meninos, 9 e 11 anos.
Moradores do mesmo bairro onde está instalada a loja de comida árabe mais famosa do mundo.
Os brinquedos lá fora são atrativos, divertem os filhos dos clientes, que pagam pouco mais de cinqüenta centavos por esfiha. Entre eles está um escritor e sua esposa.
Os dois meninos olham os brinquedos.
Ficaram na fila, mas a funcionária não os deixou embarcarem no barco viking.
Ficam presos à sua realidade.
O cigarro talvez, o baseado não. Cuidar de carro talvez, roubar não.
O pai de um é pernambucano – filho meu se aprontar eu quebro no pau. O pai de outro é mineiro – sempre dei bom exemplo pra esse menino, se virá coisa ruim não é culpa minha.
A funcionária, que também é do bairro, não hesita, separa da fila.
Cara de maloqueiro? Talvez foi isso que os barrou na fila.
Mas a desculpa é padrão.
– Desculpe, meninos, mas é só para quem está consumindo.
Consumir.
Consumir.
Consumir.
Eles me veem.
E aí? Tudo bem?
São da minha vila.
Chamo pra minha mesa.
- Quer algo?
Não.
- Pede aí uma esfiha, um refri.
Os dois abaixam a cabeça.
Não.
Então quando levantam a cabeça, percebo o olhar.
O barco viking.
- Já, sei... garçom... faz favor.
- Sim, senhor.
- Leva eles aí no barco, eles querem brincar.
O garçom os acompanha, com um grande sorriso no rosto.
Consumir.
Consumir.
Consumir.
Alguns minutos e olho eles no barco, um cutuca o outro.
- Chapado... que louco!
Lembrei de quando era pequeno, fui numa excursão da escola para o playcenter, um amigo meu deu um soco num cara vestido de Mickey. Quando a diretora veio lhe chamar a atenção, ele gritou.
- Era um cara, porra, é apenas um cara vestido de Mickey.
É, garoto, eles sempre mentem pra nós, eu pensei, assim como tudo nessa vida, política, escândalos, carros, cerveja, sexo, um grande elo, não devia ser assim.
Mas as crianças no barco viking não filosofam, elas apenas sorriem, e cutucam uma a outra.
- Que louco, puta que pariu, que chapado!
Eu consumi, paguei, fingi que estava feliz, era sábado né?, dia de trabalhador curtir com a esposa. Estampei um sorriso padrão na cara, dei tchau pros meninos, furamos o sistema, eles estão no barco ainda.
Pra sempre.
Depois talvez a rua, a rua cria, a vida determina.


FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo, 2006.

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