domingo, 26 de março de 2017

Incorporar a morte


é como integrar o lado de fora no dentro da gente
ou então assimilar o silêncio de Pascal
no burburinho de um supermercado.
Incorporar a morte é mastigar cacos do caos,
ferindo as gengivas de um rubro de vida vivida.
Incorporar a morte não é invocar ou evocar espíritos.
A morte não é espírito.
A morte é uma coisa grave e dura
como uma pedra na algibeira da consciência. A morte é incontornável:
árvore caída no meio da rua
depois de um temporal. Úlcera
que vai crescendo e devorando os livros da biblioteca.
Incorporar a morte
é teimar em viver, teimar em estar ainda aqui
depois que os convidados começaram a partir.
Beber um vermute
é incorporar a morte.
Pensar na cicatriz da coxa de Ulisses é incorporar a morte.
Rir, chorar, beber, defecar, lanhar a carne
nos exercícios diários da vida
é incorporar a morte.
Assim a morte vira corpo no corpo da gente.
E quando chegar a hora do parto,
quando chegar a hora de quebrar o último copo,
expelir a morte não será problema.
Será, isso sim, como tirar a poeira
do ser. Como abrir os olhos ainda uma vez
e ver que o mundo, apesar de tudo,
foi um cálido lugar.

Otto Leopoldo Winck

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