quinta-feira, 2 de março de 2017

tai chi na areia

Luiz Felipe Leprevost

tai chi na areia
ausência de sol junho
não chove mas o ar está molhado
dança em mim minha luta
executo mínimos movimentos circulares
não paro pra escrever
não tenho pressa
o sangue lava o organismo
enquanto há tempo
aumento um bocado as mãos
não paro pra escrever e escrevo
embora não saiba como fazê-lo
do modo que um dia, alfabeticamente, aprendi
arquejante, chamo os caminhantes lá do calçadão
eles se distanciam
obcecados que vão por suas atividades físicas
danço cortando o ar como lâmina que abrisse abrisse
e então abrisse a pedra do Tempo
agora meus alvéolos já não são capazes de me impulsionar
respiro mal
não há boca em meu rosto que use
a direção do som na atmosfera
meu caderno é a areia
a caneta os pés descalços
as solas, sendo o que há de mais embaixo nas pessoas, contribuem com o mistério do universo
cada parte quer deixar de existir
se decompor na neblina
sei, de todo modo, que somente existindo é que posso deixar de existir
memória, acúmulo de esquecimentos
impulsos, livres associações, pouco ou nenhum nexo
a paisagem pisca, apaga por segundos
eternidade
volta a acender
instantes que não administro, não calculo
a mente não dá conta
dos símbolos que tentam se agarrar à ela
não é um adeus, mas um chegar
portanto, ninguém se apiede
– se bem que melhor a piedade que o nojo
nojo, já que aos 37 anos
no inverno carioca
sou um Lázaro
– chagas, pústulas (mas só por dentro)
é internamente que me decomponho
e em alta velocidade
pra quem olha, sou apenas o praticante
de sutilíssimos movimentos
na praia praticamente vazia de tudo menos de pombos
o mar quebra pesado
eu, ao contrário, peso pouco
sem saber como ainda me segura o chão
o homem em pânico é o inventor de deus
o que dizer? tudo urge no meu estar tranquilo
ser qualquer coisa na vida
contato e improvisação
e isso é de uma exigência inevitável
conhecimento: o corpo é o único que sabe (mesmo quando eu não sei que ele sabe)
plantando a efemeridade no espaço
danço
constituído pela fragilidade, danço
a umidade me divide, me desmancha
e me espalha no ar
nos pés tenho as mãos que escrevem

nas mãos que voam, vai a voz

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